terça-feira, janeiro 12, 2021

O gambito da rainha

 




Walter Tevis faleceu em 1984 tendo publicado 6 romances. Ele viveu para ver The Hustler (Desafio à corrupção, 1961) e The Man Who Fell to Earth (O homem que caiu na Terra, 1976) transpostos para o cinema, pelos diretores Robert Rossen e Nicolas Roeg, respectivamente.

Em 1986, postumamente, a continuação de The Hustler, e último romance de Tevis, The Color of Money, ganhou as telonas sob a batuta de ninguém menos que Martin Scorsese.

Trinta e quatro anos depois, a obra dele já havia sido esgotada em termos multimidiáticos?

Ledo engano.




Eis que como quem tira um coelho da cartola, a Netflix lança O gambito da rainha, minissérie inspirada no penúltimo romance de Tevis, homônimo, lançado em 1983.

And guess what?

A minissérie pode ser considerada o mais estrondoso sucesso de 2020, não apenas em se tratando de televisão, mas em termos culturais, mesmo.

Este post tem a intenção de se debruçar sobre o fenômeno e tentar explicá-lo.

Por que motivos O gambito da rainha se tornou uma influência tão poderosa mundialmente, a ponto de aumentar o interesse por xadrez de um modo astronômico?




O que explica essa atração que o público sentiu por Beth Harmon?

Tevis declarou que o livro era um "tributo às mulheres cerebrais". Esse é um bom ponto de partida para justificar o sucesso do produto.

O texto original tem estofo, tem um valor intrínseco até então inexplorado pelo show business, mas antes tarde do que nunca.

Quando foi publicado, era um livro à frente de seu tempo. 

Tudo tem sua hora certa. Em 2020 o mundo estava pronto para conhecer Beth Harmon (Anya Taylor-Joy), para que o intelecto multifacetado desta moça cerebral fosse apresentado às massas.





O segundo motivo que explica o sucesso é o modo como o conteúdo foi envelopado e involucrado. 

Uma direção de arte estupenda, com uma atenção aos detalhes esplendorosa, que remete os espectadores ao glamour dos torneios internacionais de xadrez da década de 1960.

Mérito dos realizadores da minissérie, Scott Frank e Allan Scott.

Excelência no conteúdo, excelência na forma. 



A fórmula do sucesso parece simples...

Mas o cuidado aos detalhes exige humildade.

O autor Walter Tevis não só estudou profundamente o jogo de xadrez como também entregou o manuscrito a um grande mestre de xadrez, Bruce Pandolfini, que sugeriu mudanças para aumentar a verossimilhança.

Por sua vez, o diretor de arte da minissérie, Uli Hanisch, construiu sets incríveis em Berlim, após minuciosas pesquisas.

Esses esforços se refletem nos resultados. 

Por fim, um comentário de quem saboreia uma pitada de teoria literária.






O gambito da rainha é um Bildungsroman, gênero literário que focaliza o crescimento psicológico e moral do protagonista, da infância à vida adulta. Em inglês, o termo é "coming of age".

No Brasil, esse termo foi cunhado como "romance de formação". Vide este estudo sobre o gênero no Brasil. Assim de cabeça eu citaria duas sagas, a de José Lins do Rego (começada em Menino de Engenho) e a de José Mauro de Vasconcelos (começada em Meu pé de laranja-lima) como bons exemplos desse tipo de romance.

Os 7 episódios da minissérie O gambito da rainha mostram como o caráter e o intelecto de Beth Harmon se formam, e como Beth consegue crescer em meio às dificuldades, e isso conquistou o público.

 






segunda-feira, janeiro 11, 2021

O homem de palha

 




O autor de peças teatrais Anthony Schaffer, roteirista dos filmes Frenesi e Jogo mortal, coassina o texto deste envolvente mistério dirigido por Robin Hardy, que escreveu este artigo no The Guardian explicando como o filme foi realizado.

Não é à toa que O homem de palha está na lista do guia 1001 filmes para ver antes de morrer, editado por Steven Jay Schneider.


A trama é muito curiosa e traz elementos evocativos e sensuais.

Um sargento pousa com seu hidroavião numa remota ilha escocesa para investigar o sumiço de uma garota.



Ninguém parece colaborar com a investigação e todo mundo se remete ao proprietário da ilha, o Lorde Summerisle (Christopher Plummer), com uma aura de respeito e estranheza.

O bizarro comportamento do povo local a princípio deixa o investigador intrigado e, com o andar do tempo, perturbado.

Numa famosa e insinuante sequência, a atraente filha do estalajadeiro tenta seduzir o sargento Howie (Edward Woodward) num excruciante jogo de tensão sexual.

Todos os habitantes da ilha parecem levar suas vidas de modo lascivo, o que deixa o pudico sargento, que alega estar noivo e não acreditar em sexo antes do casamento, extremamente chocado.

Um ritual está prestes a acontecer no dia 1º de maio, mas o sargento resolve decolar para buscar reforços.





O homem de palha é um filme bastante gráfico, visualmente forte, e com estofo suficiente para provocar debates.

Acirrados ou não, esses debates ultimamente focam a existência de várias versões, ou "cortes", com os críticos discutindo qual delas é mais eficiente do ponto de vista fílmico.

E qual a versão que eu pude ver?

A que estava disponível, com 92 minutos de metragem.






Comprei em VHS do acervo da Zílvia, locadora passo-fundense, por R$1,00, e mandei converter para DVD por R$25,00.

Alguns dizem que a versão mais curta funciona melhor que as versões estendidas, pois a ausência de algumas cenas ajuda a preservar o suspense e a não entregar as reviravoltas.

Outros dizem que as cenas cortadas desfiguram a obra. Na opinião deles, a versão mais recente, a "Director's Cut", é a melhor, e não atrapalha o plot twist.

Sobre esse debate eu não posso opinar. Sei que a versão do VHS já é suficientemente interessante para justificar toda essa logística.

Trailer: 







domingo, janeiro 10, 2021

Scanners: sua mente pode destruir

 

 Scanners - Vintage Movie Posters

David Cronenberg tem uma queda pela morbidez que me atrai. Filmes como A mosca, Gêmeos: mórbida semelhança e Na hora da zona morta (adaptação de Stephen King) funcionam até hoje. Sou do tipo de cinéfilo que pensa que filme bom não "envelhece".

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Scanners pertence à essa estirpe de filmes de Cronenberg cujo principal objetivo é fazer mergulhos nos mistérios do cérebro humano, investigações sobre a nossa natureza e os limites sensoriais.

O que torna o filme ainda muito atual é que os efeitos especiais, vanguardistas para a década de 80, hoje permanecem chocantes e verdadeiros.

Scanners: Mind and Matter | The Current | The Criterion Collection

Assim, a trama ganha verossimilhança, e Cronenberg deita e rola em suas viagens alucinógenas.

Além de ousado, um bom cineasta precisa ter "feeling" e acreditar em sua intuição. 

Assistiu ao filme e não gostou da sequência final.

O orçamento já estava estourado.

Mostrando perfeccionismo e coragem, o diretor canadense contratou um expert em efeitos e chamou os atores principais para refazer o final.

 Por sinal, Michael Ironside, um dos protagonistas, conta que ganhou uma ninharia para fazer o filme. Mas construiu um currículo para depois em Hollywood fazer o pé-de-meia.

Este filme de Cronenberg persiste em sua capacidade de nos fazer meditar sobre a força do pensamento.

vScanners (1981) directed by David Cronenberg • Reviews, film + cast •  Letterboxd

 

A cena mais representativa de Scanners é a que Darryl Revock (Ironside) explode o cérebro de um interlocutor diante de uma atônita, aturdida e acachapada plateia. 

Por essas e outras, o adjetivo "mind-blowing" cai como uma luva para descrever Scanners.

É um filme importante na vasta e um tanto irregular filmografia de Cronenberg, mas serviu para renovar minha admiração pelo trabalho do canadense.

Cogito até a hipótese de dar uma nova chance a outro filme dele (Naked Lunch), cuja sessão, num dia muito quente, numa sala sem ar condicionado, cometi a precipitação de abandonar.

Autoquestionar-se também pode ser "mind-blowing".