quarta-feira, setembro 30, 2015

Alien de Ridley Scott

Na matiné dum sábado qualquer, nas poltronas de um cinema simples de uma cidadezinha pacata, dois irmãos sentiram o medo de mergulhar no claustrofóbico universo da Nostromo. A experiência foi muito forte, e o menino mais novo teve de sair do cinema antes mesmo de John Hurt estrebuchar na mesa do refeitório, numa das cenas mais chocantes da história do cinema.


Em retrospectiva, é fácil de entender porque o filme de Ridley Scott foi alçado à condição de clássico, dando início a uma franquia das mais criativas: direção de primeira categoria, elenco de peso, produção requintada. Vamos esmiuçar cada um desses itens.

Direção de primeira categoria: Ridley já havia realizado Os duelistas, uma estreia mais do que promissora. Um filme de época com pinta de cult. Depois de mostrar seu cartão de visita, em Alien, seu segundo longa, Scott definitivamente confirmou as expectativas: caprichou em todos os detalhes para construir uma tensão pulsante e crescente. O começo do filme é cadenciado, não tem nada de vertiginoso. Existem poucas cenas de violência explícita. A sensação de terror e sufocamento é moldada pelo desconhecido, pelo que não é mostrado, apenas sugerido. Paulatinamente, a história se desenrola, funcionando como espécie de conto fantástico digno de um Lovecraft, uma tripulação mínima envolvida num pesadelo por conta de uma macabra trama de interesses gananciosos da Companhia, a empresa dona da nave. É um dos orgulhos de minha vida de cinéfilo ter me tornado fã desse diretor, que entra fácil na minha lista de top ten diretores vivos (e bem vivos, pois acaba de lançar Perdido em Marte). Sua filmografia mantém um padrão admirável, de Blade Runner (1982) a Gladiador (2000), de Thelma e Louise (1992) a Um bom ano (2006), de Falcão Negro em perigo (2001) a Prometheus (2012).
















Elenco de peso: além do olhar ortodoxo e ao mesmo tempo inovador de Scott, o cast de Alien não podia ser melhor. A tripulação conta com Tom Skerritt, Sigourney Weaver, Veronica Cartwright, Harry Dean Stanton, John Hurt, Ian Holm e Yaphet Kotto. Respectivamente, o capitão Dallas, a subtenente Ripley, a navegadora Lambert, o engenheiro auxiliar Brett, o imediato Kane, o oficial de ciências Ash e o engenheiro chefe Parker. Não vamos esquecer, é claro, do gatinho Jones. De antemão, todos sabiam que participariam numa espécie de Então não sobrou nenhum versão espacial. Uma hórrida narrativa numa nave mórbida na qual, um por um, quase todos os tripulantes seriam sacrificados. Com a diferença que os atores que encarnavam as vítimas já eram atores consumados, com carreiras ricas e prolíficas. À exceção, talvez, de Sigourney, que tinha experiência de teatro, mas praticamente estreava no cinema. Ela entrou justo no papel de Ripley, inicialmente pensado para Veronica Cartwright, que teve de se contentar com a Lambert. Outra substituição de última hora foi a entrada de John Hurt na vaga de Jon Finch, que adoeceu no primeiro dia das filmagens.

Produção requintada: dos storyboards de Ridley Scott, cujas naves e roupas espaciais remetiam a 2001: uma odisseia no espaço e já apresentavam influência de Star Wars, até a criatura e os cenários criados pelo artista H. R. Giger, tudo contribuiu para tornar verossímil um roteiro que havia sido exaustivamente trabalhado. Méritos a quem os merece: além de Dan O'Bannon e Donald Shusett, outras três pessoas acrescentaram muitas ideias ao roteiro, inclusive todo o lance que envolve o personagem Ash, e o fato de o filme ter uma heroína. Os nomes definitivos dos personagens foram criados por esse trio. Eles são: Walter Hill, David Giler e Gordon Carroll. Foram eles também que escolheram Ridley Scott para encabeçar o projeto. Por sua vez, O'Bannon convidou artistas de dois outros projetos em que ele estivera  envolvido (o filme Dark Star de John Carpenter e Dune, projeto abortado de Alejandro Jodorowsky) para colaborar no processo criativo. Todo esse esforço colaborativo e esse cuidado com os detalhes resultou numa legião de fãs e na conquista de várias gerações de cinéfilos.
        Recentemente, a Editora Aleph publicou uma nova tradução da novelização, escrita por Alan Dean Foster.




 








Para quem quiser saber mais sobre o assunto, com uma espécie de resenha da obra, em meu outro blog sobre minhas traduções e revisões.

sábado, setembro 26, 2015

Chappie

Casado com a roteirista canadense Terri Tatchell (coautora do roteiro de Chappie), o sul-africano Neill Blomkamp chega com Chappie ao terceiro longa-metragem da carreira (após ter realizado Distrito 9, em 2009, e Elysium, em 2013). Apadrinhado por Peter Jackson, Blomkamp tem uma forte queda por ficção científica, direcionada em Chappie para uma abordagem da inteligência artificial. Uma breve sinopse do roteiro do casal Tatchell-Blomkamp seria: a indústria robótica Tetravaal, comandada por Michelle Bradley (Sigourney Weaver) (por sinal, comentam à boca pequena que ela e Blomkamp já fecharam negócio para filmar o Alien 5), tem uma rivalidade latente entre os dois engenheiros Deon (Dev Patel) e Vincent (Hugh Jackman). É do primeiro o projeto que está em alta, a produção dos scouts (escoltas, na dublagem brasileira), um exército de robôs policiais que ajuda no policiamento ostensivo de Joanesburgo (cidade natal do diretor, e, na vida real, uma das cidades mais violentas do mundo, com alta taxa anual de homicídios). Isso deixa Vincent enciumado, pois vê o seu projeto, o robô gigante Moose (Touro, na dublagem brasileira), relegado a segundo plano. Numa cena chave do filme, chefes da polícia local assistem a uma demonstração do Moose e dizem que os escoltas dão conta do recado e que só precisariam de algo assim se a situação da segurança piorasse, e muito. Nesse meio-tempo, Deon tenta avançar seus experimentos com IA, mas acaba sendo raptado pelos esquisitos facínoras Ninja e Yolandi (interpretados por Ninja e Yolandi, membros da esquisita banda sul-africana Die Antwoord) que o obrigam a criar um escolta para ajudá-los num assalto. Dessa situação nasce Chappie, um bebê em forma de robô.

O vínculo criado entre Chappie e Yolandi, que adota o robô como se fosse mãe dele, beira a inverossimilhança, mas é um exemplo da ternura bizarra que permeia alguns trechos do filme.
A parte mais legal de Chappie é justamente a "criação" dele, com Deon ensinando-o a pintar e a dar asas à imaginação, Ninja ensinando-o a ser malandro e a usar armas de fogo e Yolandi lendo para ele, antes de dormir, um livro infantil sobre ovelhas negras. Interessante análise de como o meio pode afetar alguém intrinsecamente bom.
Nesse processo de aprendizado, Chappie é submetido a algumas situações extremas, em algumas das cenas mais tristes dos últimos tempos. Mas o cinema (e a literatura, como na obra O pessoal de July, de Nadine Gordiman) da África do Sul é pródigo nesse tipo de angústia exasperante, de um mundo em que a ingenuidade e a pureza são implodidos pela impactante realidade. Tanto isso é verdade que Chappie me lembrou de outro filme angustiante, também sul-africano: Dirkie (Perdido no deserto), de Jamie Uyis, inspirado na história real de um menino de 8 anos e seu cãozinho numa jornada de sobrevivência. Como Dirkie no deserto de Kalahari, Chappie tenta sobreviver no deserto de harmonia que é o caos de Joanesburgo. O blu-ray de Chappie traz um final alternativo no mínimo digno de nota. Como bônus deste post, um pôster para relembrar um filme assistido há um bom tempo no hoje finado Cinema Brasília de Carazinho:

segunda-feira, setembro 21, 2015

Mad Max: Fury Road

Dystopia: imaginary place or state in which everything is extremely bad or unpleasant.
O sucesso de Mad Max: a estrada da fúria confirma uma tendência atual: a avidez por ficção distópica, de adolescentes a adultos. A escritora Alex Campbell levantou a seguinte tese num artigo sobre a crescente popularidade da ficção distópica:
"Será possível uma correlação com a ascensão da ficção distópica e as redes sociais? Enquanto ostentamos nossa felicidade unidimensional em sorridentes perfis no Facebook e fotos no Instagram que colocam tudo num prisma agradável, será que sentimos uma necessidade crescente de satisfazer as áreas mais sombrias da condição humana por meio das páginas que lemos?".

Ou, completaria eu, dos filmes a que assistimos?


É uma tese interessante.
Mas é preciso lembrar que, geração após geração, esse tipo de literatura e de cinema sempre teve um público cativo, para dizer o mínimo. E assim como atrai certas pessoas, também espanta quem é mais pé no chão, pessoas que não gostam de fantasia.

Noutro artigo, a jornalista Francisca Goldsmith listou as principais características da ficção distópica: um mundo ou sociedade futurista; habitantes controlados com mão de ferro; a conformidade é boa, a individualidade é indesejável; falta de consciência da maioria das pessoas; um protagonista frustrado pelos controles que age sem considerá-los; a percepção de um problema no mundo real por meio do exagero no universo ficcional. Desnecessário dizer que todas essas características pulsam no universo de Mad Max.
 Goldsmith entrevistou adolescentes leitores e indagou por que eles gostavam desse tipo de ficção. Algumas das respostas foram: "acho interessante e reconfortador ao mesmo tempo"; "gosto da complexidade!" e "me ajuda a pensar que nosso mundo ou sociedade pode mudar, que eu posso ajudar a mudá-lo". Ela conclui que os motivos pelos quais os adolescentes gostam desse tipo de ficção não são sombrios.


Essa introdução é apenas para dizer que, trinta anos depois, Mad Max está de volta. De 1979 a 1985, o médico George Miller, nos intervalos de seus plantões na sala de emergência, realizou os seus primeiros três longa-metragens: Mad Max (1979), Mad Max 2: Road Warrior (1981, Mad Max 2: a caçada continua) e Mad Max: Beyond Thunderdome (Mad Max além da cúpula do trovão). Por que o diretor australiano demorou exatos 30 anos para revisitar o personagem da trilogia cujo ápice foi o segundo filme não chega a ser um pleno mistério. Natural que o criador, um tanto saturado com sua criação, se afastasse um pouco. Mas quando a tecnologia e a certeza de que ele poderia voltar àquele universo para insuflar mais sangue e mais vida se cristalizaram, havia chegado a hora inexorável de ceder à necessidade latente.
Um problema: encontrar o substituto de Mel Gibson. O preferido do diretor seria Heath Ledger. A escolha então recaiu no londrino Tom Hardy, ator com uma carreira consolidada em minisséries como O morro dos ventos uivantes (2009), em que interpretou Heathcliff, e blockbusters como Batman, o cavaleiro das trevas ressurge (2012), em que interpretou o líder terrorista Bane. Bem diferente da aposta Mel Gibson, que no primeiro Mad Max realizava o segundo filme apenas. Mas para a maioria do público, Hardy ainda é um rosto relativamente novo.

Bullit na areia. O filme de Peter Yates é considerado o supremo filme de perseguição no asfalto. Mad Max: Fury Road é o derradeiro filme envolvendo fugas sobre rodas na areia. Motores e veículos dos mais estapafúrdios (que remetem ao desenho animado Corrida maluca) em cenas trepidantes de incrível habilidade dos dublês e da equipe (que em alguns momentos lembram as performances dos melhores artistas circenses).
O 3-D acaba sendo a tecnologia ideal para maximizar (sem trocadilho) os efeitos artísticos e catárticos do novo pesadelo (sonho para os fãs) de George Miller.

A parceria de Hardy com Charlize Theron, que interpreta Furiosa (talvez a personagem feminina mais enigmática, ambígua e forte do cinema contemporâneo, algo similar ao que Sigourney Weaver fez com a Ripley), é um dos trunfos do filme. Os dois encontram um equilíbrio delicado entre o protagonizar e o coadjuvar (verbinho feio mas existe) e alçam o novo Mad Max a um patamar além da cúpula dos melhores filmes de ação.

domingo, setembro 20, 2015

Não confunda alhos com bugalhos: os dois George Miller

Os dois nasceram na década de 1940 e começaram a carreira no final dos anos 1970. Os dois têm sangue australiano nas veias, embora um deles não tenha nascido na Austrália, e sim na Escócia. Os dois acabaram abraçando a mesma profissão, são talentosos e construíram ao longo de quatro décadas um currículo eclético e variado. Para confundir ainda mais o cérebro dos cinéfilos, os dois gostam de variar bastante de estilo, os dois fazem filmes para adultos e para crianças, os dois fazem a maioria de seus filmes "down under" (sim, na boa e exótica terra australiana) e os dois assinam seus filmes como George Miller.

O George Miller mais famoso, digamos assim, é médico e estreou na direção de filmes com o acachapante Mad Max em 1979. Ele nasceu em  1945 em Brisbane, a capital de Queensland e terceira maior cidade da Austrália. Tornou-se septuagenário no ano em que lançou o quarto filme da franquia, Mad Max: Fury Road, que mal posso esperar para ver daqui a pouco. Ele tem na estante um Oscar por Happy Feet, melhor filme de animação em 2007. Além do Happy Feet 1 e 2 e da franquia Mad Max, seu abrangente portfólio inclui também: The Twilight Zone: Além da imaginação (1983, episódio 4, Pesadelo a 20 mil pés, com John Lithgow), As bruxas de Eastwick (1987), O óleo de Lorenzo (1992) e Babe, o porquinho atrapalhado (1995).



O outro George Miller (que às vezes assina como George T. Miller, T. de Trumbull), também é de origem australiana, mas nasceu na Escócia em 1943 e estreou como diretor de cinema em 1982, obtendo o prêmio de filme mais popular no festival de Montreal com o faroeste The Man from Snowy River (título brasileiro: Herança de um valente, uma raridade nas locadoras), com Kirk Douglas. O filme se passa nas pradarias australianas e se baseia no poema homônimo de Banjo Paterson, composto no fim do século XIX.
Outros filmes de sua autoria incluem:
O aviador (1985, com Christopher Reeve), A história sem fim 2 (1990), Um amor no fim do mundo (1992), André, uma foca em minha casa (1994, excelente filme para ver com a criançada), Zeus e Roxanne, quase feitos um para o outro (1997), Robinson Crusoé (1999, com Pierce Brosnan), Supercão (2003), O ataque do dente-de-sabre (2005) e o horror sobrenatural Prey (2009).


Dois xarás, dois belos e bizarros currículos, um pouco difíceis de distinguir, mas não de admirar.

segunda-feira, setembro 07, 2015

Arsène Lupin

Para quem tem dois filhos pequenos, é quase impossível querer assistir a um filme "adulto", até mesmo de vez em quando. A menos que o casal possa deixar os filhos com os avós, o que não é o meu caso na maior parte do tempo, a solução é assistir o filme em partes. Este filme de 2 horas e 10 minutos levei a semana inteira para ver, em flashes de 15, 20 minutos. Então, para mim, pareceu mais uma minissérie ou um seriado. E na verdade o roteiro tenta condensar muita coisa, para ser sincero.
Começando pelo começo: aluguei o filme num sábado (e aluguei-o pelo simples fato de que costumava ler os romances de Maurice Leblanc que eu pegava na biblioteca municipal) numa locadora de minha cidade, um dvd com a caixinha já quebrada na ponta, e como não era mais lançamento, e o dono da locadora é camarada, ele fez uma "diária estendida". Isso permitiu colocar em ação o meu plano de assistir o filme nas brechas. Durante o fim de semana nem pude dar muita atenção a ele, afinal o pequeno teve surtos de febre de 39 graus, e estivemos às voltas com pediatras, laboratórios de análises e o diabo a quatro, tudo para descobrir que não passava de uma virose benigna autolimitada.
Voltando à vaca fria, e com a temperatura do filho já em ordem, pude terminar a saga de ver este Arsène Lupin, com direção de Jean-Paul Salomé, protagonizado pelo ator Romain Duris, do cult De tanto bater, meu coração parou.
Esse Maurice Leblanc viaja mesmo, e se tudo que tem no filme tiver no livro, é de se tirar o chapéu para ele, e também para os roteiristas que conseguiram adaptar de modo razoável coisas que nas páginas são contadas com elegância e precisão. O elenco, como de costume em filmes franceses, já vale o filme. Este em especial conta com duas belas e hipnóticas atrizes: Eva Green, a priminha apaixonada por Arsène, e Kristin Scott Thomas, a enigmática, às vezes sedutora, às vezes pérfida, Josephine, a condessa de Cagliostro, personagem redondíssima (aquela que segundo a teoria literária se comporta de modo imprevisível e tem várias facetas, ou seja, personagem totalmente anticlichê) e leitmotiv do filme. Com um ritmo alucinante que lembra outro filme francês da mesma época (Pacto dos lobos), Arsène Lupin, o filme de 2004, serve para introduzir as novas gerações ao charmoso personagem. Sendo um apaixonado por essa interface literatura-cinema, aproveito a deixa para publicar as capas de algumas edições do livro que serviu de inspiração ao filme.