domingo, dezembro 24, 2006

Sylvia


Minha irmã veio para o interior e trouxe dois filmes do Daniel Craig -- ator fetiche dela atual. Nas palavras da mana, Craig é "másculo". Falando em palavras: topei a sessão apesar do subtítulo "Paixão além das palavras". Suponho que o subtítulo foi concebido para chamar a atenção ao subtema literário; sim, a Sylvia do título é ninguém menos que Sylvia Plath, a poeta e novelista bostoniana. Subtema pois o foco do filme de Christinne Jeffs não é a literatura, e sim o relacionamento tempestuoso de Sylvia (Gwyneth Paltrow) com o poeta inglês Ted Hughes (Craig). Os dois se conhecem em Cambridge, onde Sylvia vai estudar ao ganhar uma bolsa. Tempestuoso pois vivem o tipo mais fulminante de paixão -- o que envolve admiração intelectual. Pelo o que outro escreve. Pelas... palavras. (Words/don't come easy/to me/how can I find a way/to make you see/I love you/Words don't come easy - F.R.David). Entre um bloqueio literário e outro, o casamento gerou dois filhos e poemas cultuados. Numa cena do filme, Ted explica a um amigo que ama Sylvia mesmo sendo infiel a ela (e é possível amar e ser infiel?). O comportamento de Ted conduz Sylvia à insegurança e ao ciúme, ou o ciúme e a insegurança de Sylvia levam ao comportamento de Ted? Não importa: Sylvia é obcecada pela morte -- antes de conhecer Hughes havia tentado se matar duas vezes.

Para enriquecer o post, um poema de Sylvia Plath que trabalhamos durante a I Oficina de Tradução Literária.


I Am Vertical - Sylvia Plath

But I would rather be horizontal.
I am not a tree with my root in the soil
Sucking up minerals and motherly love
So that each March I may gleam into leaf,
Nor am I the beauty of a garden bed
Attracting my share of Ahs and spectacularly painted,
Unknowing I must soon unpetal.
Compared with me, a tree is immortal
And a flower-head not tall, but more startling,
And I want the one's longevity and the other's daring.

Tonight, in the infinitesimallight of the stars,
The trees and the flowers have been strewing their cool odors.
I walk among them, but none of them are noticing.
Sometimes I think that when I am sleeping
I must most perfectly resemble them--
Thoughts gone dim.
It is more natural to me, lying down.
Then the sky and I are in open conversation,
And I shall be useful when I lie down finally:
Then the trees may touch me for once, and the flowers have time for me.

Sou Vertical
Mas preferiria ser horizontal.
Não sou uma árvore com as raízes na terra
Extraindo nutrientes e amor maternal
Pra minha folhagem rebrotar, de repente, cada nova primavera,
Nem sou a beleza de um jardim florido
Atraindo minha cota de “Ohs” e multicolorido,
Sem dar por isso, em breve, derrubarei minhas pétalas.
Comparada comigo, uma árvore é perpétua
E uma corola, mesmo pequena, surpreendente;
Quero de uma, a longevidade; da outra, o atrevimento.

Hoje à noite, nas infinitesimaluzes estelares,
As árvores e as flores espargem frescos odores.
Caminho entre elas, mas nenhuma está notando.
Às vezes penso: quando estou sonhando
Mais perfeitamente a elas me assemelho -
O pensamento fica trêmulo.
É mais natural para mim, deitar.
Então o céu e eu não paramos de conversar.
E posso ser útil quando deitar a última vez:
Enfim receber o carinho das árvores e a atenção das flores.

Tradução: Henrique Guerra.

A felicidade não se compra


É Natal, tempo de reflexão e corações desarmados. Aproveitei a data para rever um dos mais belos filmes natalinos: A felicidade não se compra (It's a wonderful life, 1946).
Frank Capra nos conta a história de George Bailey (James Stewart). Em plena noite de Natal, o pai de quatro filhos e marido da adorável esposa Mary (Donna Reed), está bêbado, com o lábio sangrando, no alto de uma ponte, olhando o caudaloso rio lá embaixo. George é um homem no limite de suas forças. Um homem sem esperanças. A sua empresa – uma casa de empréstimos que financia a construção de boas residências para pessoas de baixa renda na pequena cidade de Bedford Falls – está prestes a falir. Em plena noite de Natal, George, em meio à forte nevasca, pensa em se suicidar.
Há salvação para ele? Para tentar reverter a situação, o anjo de segunda classe Clarence é enviado. De segunda classe, pois, apesar de quase três séculos de idade, ainda não ganhou o que distingue um anjo de um mero mortal. Se for bem sucedido em seu intento, lhe prometem, finalmente ganhará o sonhado par de asas. Os momentos cruciais da vida de George são mostrados a Clarence, para que ele possa ter subsídios e conseguir cumprir a difícil missão de salvar George. Clarence, com o consentimento superior, permite a George ver como o mundo seria se ele não tivesse nascido.
A carga emotiva do filme de Frank Capra permanece insuperável ainda hoje. Para quem nunca viu, é o tipo do filme para toda a família. Para quem já viu, vale sempre a pena revisitar esse clássico da década de 40 – ainda mais na época do Natal.

domingo, dezembro 17, 2006

Cassino Royale



Cassino Royale, o filme de 1967, com Ursula Andress no papel de Vesper Lynd, e David Niven no de James Bond, não fez parte da série oficial do 007 e, embora tenha reunido muitos talentos (incluindo o diretor John Huston e os atores Peter Sellers e Jean Paul Belmondo), obteve fraca recepção de público e de crítica. Entrou para a história mais como uma paródia ou sátira do que como um filme “sério”de 007.
Já o novo “cassino real”, além de pertencer à franquia 'oficial', aproveitou o melhor do roteiro original e acrescentou elementos de interesse. A combinação de roteiro engenhoso, direção eficiente de Martin Campbell e carisma de Daniel Craig credencia o novo Cassino Royale como um bom filme de 007.
Do original, o roteiro (assinado entre outros por Paul Haggis, de Crash) manteve, além do título, os nomes de algumas personagens (Le Chiffre, Vesper Lynd) e a “idéia principal” – a realização de um milionário jogo de pôquer em um luxuriante hotel.
O filme de Martin Campbell (especialista em filmes de ação como Limite Vertical e A Marca do Zorro) marca a estréia do ator Daniel Craig (com participações em Estrada para a Perdição e Munique) como 007. Campbell realizou também Goldeneye, o primeiro de Pierce Brosnan na franquia.
O ‘casting’ de Craig foi muito questionado pelos fãs radicais da série, por conta da altura e da cor do cabelo. Teoricamente muito baixo e loiro para ser o novo James Bond, sem o jeito de bom moço de um Sean Connery, a elegância de um Roger Moore, ou o charme de um Pierce Brosnan, Craig, nascido em março de 1968, compensou a estatura mediana com um excelente preparo físico; a cor do cabelo com a vantagem que, sendo loiro, ganhou como bond-girls belas morenas - como é o caso de Eva Green (de Cruzada) e Caterina Murino; a falta de elegância e de charme, com testosterona e melancólicos olhos azuis. Normalmente discreto no cumprimento das missões, o agente britânico assume com Daniel Craig uma postura mais violenta. A estratégia dá espaço ao contato físico e à truculência. Esse é o filme em que 007 mais bate e mais apanha. Paradoxalmente, é o filme em que a fragilidade de Bond está mais à flor da pele. Bond está mais humano e menos inteligente – é capaz até de se apaixonar.

quarta-feira, dezembro 13, 2006

A fonte da vida


A fonte da vida (The fountain) é o terceiro filme de Darren Aronofsky. O primeiro, Pi (1998), lhe valeu o prêmio de Melhor Diretor no Festival de Sundance. Trata-se da história de um matemático e suas piras, seus vizinhos excêntricos e suas descobertas científicas, gravadas em preto e branco estilizado, com direito a enxaquecas atormentadoras e até mesmo a um cérebro perdido numa escadaria. Com uma estréia desse tipo, e com o aval concedido por um dos festivais mais badalados do cinema dito 'alternativo', Aronofsky precisava confirmar o talento no segundo filme. Réquiem para um Sonho (2000), a excruciante derrocada de quatro personagens causada pelo consumo de drogas, foi, para uns, a confirmação de seu gênio; para outros, mais um produto de uma mente doentia e pretensiosa.
O longo tempo entre o segundo e o terceiro trabalho deveu-se aos altos e baixos do projeto de The fountain. Cancelado, passou por uma recauchutada no roteiro, com vistas a reduzir o custo, e saiu enfim do papel.

O grande mérito de A fonte da vida (2006) é sua imprevisibilidade. O espectador nunca sabe para onde será levado; essa sensação de insegurança e perplexidade chega a ser exasperante, tanto que é difícil fazer uma 'sinopse' do 'enredo'. Vamos dizer que o filme narra de forma não linear três histórias cujo ponto em comum são a busca incessante pela vida, ou pela não morte. Outra intersecção entre as três diferentes eras e locais - além da música hipnotizante de Clint Mansell - são as personagens vividas por Hugh Jackman (Tomas, Tommy e Tom Creo) e Rachel Weisz (Isabel e Izzy Creo). A história que se passa no tempo atual é a do casal Tom e Izzy Creo, ele um pesquisador que luta para descobrir a cura de tumores cerebrais e ela uma portadora de câncer no cérebro. Izzy escreve um livro, mas falta um capítulo de conclusão. É no texto de Izzy que se passa a segunda história, a de um conquistador que tenta achar a Árvore da Vida. Na terceira história ou dimensão, um homem dentro de uma esfera brilhante medita enquanto toma conta de uma árvore. A atuação de Hugh Jackman, metamorfoseando-se física e psicologicamente em três personagens, é bárbara, talvez o trabalho em que mais tenha sido exigido.
Faço parte de uma comunidade no orkut chamada "Eu entendo David Lynch". E acho que vou abrir uma com o título "Eu entendo Darren Aronofsky". Na verdade, não procuro entender nenhum deles. Quero dizer, não faço força para entendê-los. Talvez porque ache que para entender Lynch é preciso ter o coração selvagem. Como para entender Réquiem é preciso ter tido pelo menos um sonho frustrado - e reconhecer a irreversibilidade dessa frustração. Como para entender A fonte da vida é preciso ter sofrido uma grande perda; e para entender a angústia de Tom Creo pela falta da aliança no dedo, é preciso ter passado por experiência similar. É essa a grande contradição do cinema de Aronofsky: é um cinema pretensamente "cabeça" que para ser 'entendido' exige "coração".
Dizia Rainer Maria Rilke que toda arte genuína surge de uma necessidade. A impressão que se tem é que o cineasta nascido no Brooklyn tinha que realizar A fonte da vida; precisava terminar essa questão para poder prosseguir em sua carreira.

Um bom ano


E eis que o espírito de Frank Capra desceu em ninguém menos que Ridley Scott. Quem diria, o cineasta que começou com Os Duelistas em 1977, realizou o par de clássicos de ficção científica Alien (1979) e Blade Runner (1982), a aventura feminina Thelma e Louise (1991) e a masculina O Gladiador (2000), o filme de guerra hiper-realista Falcão Negro em Perigo (2001), agora dedicou um tempo para o lirismo e o descompromisso. Se é verdade que a qualidade de Um bom ano passa longe de clássicos como Felicidade não se compra e Aconteceu naquela noite, também é inegável que traz elementos de reflexão e de leveza e entrega um leque de bons sentimentos que nos remetem aos filmes de Capra das décadas de 30 e 40.
O londrino Max Skinner (Russel Crowe) é um inescrupuloso negociante de ações; de 'namorada' em 'namorada', vai gastando 0,01% do que ganha nas operações milionárias. Um belo dia recebe a notícia da morte de Henry (Albert Finney), seu tio produtor de vinho na França. O prático homem de negócios é o único herdeiro e vai até a França decidido a vender a propriedade, que costumava visitar quando criança. Só não contava conhecer a intrigante Fanny Chenal (Marion Cottilard), uma moça do lugar. Tipo de filme que não tenho medo de recomendar; bom elenco, bom diretor, roteiro despretensioso, cheio de clichês, previsível – mas que não chega a ferir a inteligência do espectador.

segunda-feira, dezembro 04, 2006

Cem escovadas antes de dormir



Melissa (María Valverde) vai completar 16 anos. É uma moça bonita de rosto. Olhar expressivo, boca carnuda. O corpo? Virgem e meio fora do padrão de beleza atual e louco para se entregar ao belo mancebo Daniele (Primo Reggiano), por quem Melissa é (ou pensa que é) apaixonada. A adolescente siciliana sempre anota tudo em um diário e anda em companhia da amiga Manu (Letizia Ciampa), mais fofa que ela própria.
Melissa mora com a mãe, vendedora de vestidos de noiva numa loja, e a avó, fumante inveterada, fã de Pet Shop Boys e confidente da neta. É nos diálogos com a avó que Melissa aprende a contar “Cem escovadas antes de dormir”. Preconiza a avó Elvira (Geraldine Chaplin) que a cada 'golpe de escova' nos cabelos, defronte ao espelho, as dúvidas e as culpas vão se dissipando.
Questão a ser discutida entre os psicólogos de plantão: até que ponto a ausência paterna (o pai trabalha longe e só fala com ela pelo telefone) contribui para o comportamento de Melissa. Outra 'explicação' seria o repentino afastamento da avó, colocada numa casa geriátrica.
E que comportamento é esse? Vamos dizer que Melissa demonstra ser o protótipo da menina perdida – o tipo de menina que os homens mais procuram.
Com sua fotografia escura, que enfatiza a sensualidade e o clima de descoberta e experimentação, “Cem escovadas antes de dormir” não é, na verdade, um ensaio sobre a devassidão, nem tampouco uma análise do preconceito de gênero (homem pode ser 'promíscuo', a mulher não?). É sobre um coraçãozinho desiludido que procura a fuga (ou vingança?) no que pode ser considerado por alguns um comportamento sexual reprovável.
Não espere, entretanto, cenas chocantes: o diretor Luca Guadagnino escolheu contar a história de Melissa Panarello (a autora do livro-diário “Cento Colpi Di Spazzola Prima Di Andare a Dormire”) de modo (relativamente) contido e implícito. Ponto para ele.
Sobre María Valverde: nascida em Madri em 1987, venceu o prêmio Goya em 2003 pelo filme La flaqueza del Bolchevique. Com 19 anos e uma filmografia de nove longa-metragens, não é uma atriz “promissora”, como pode achar algum desavisado. É uma esfuziante (e sensual) realidade.

Você é tão bonito!


Je vous trouve très beau (You are so handsome)

Aymé (Michel Blanc) passa os dias em seu moderno trator preparando o solo, plantando, adubando e aplicando defensivos agrícolas em suas terras. Ao terminar a labuta diária, tem como hobby a cunicultura – está cevando o seu coelho preferido para o concurso do coelho mais pesado da paróquia e todo o dia o coloca na balança, para ver o quanto o orelhudo roedor engordou. A única pessoa que ajuda Aymé a tocar a fazendola é a esposa, que organiza a casa e atende as pessoas que vêm comprar os produtos da propriedade. Se a esposa dá um desconto, por mínimo que seja, a um dos fregueses, Aymé reclama. Tudo parece estar definido na vida do casal sem filhos: os dois até o fim dos dias em sua rotina saudável, que não deixa tempo nem para pensar. Um dia, porém, Aymé se vê na condição de viúvo. O que fazer? Nem utilizar a máquina de lavar ele sabe – o gato da casa que o diga. A reposição da companheira é urgente. O pragmático produtor rural busca a ajuda de uma agência de casamentos, cujas candidatas são recrutadas diretamente da Romênia.
Aymé gosta de Elena (Medeea Marinescu) e tudo fica acertado para sua vinda. Aos vizinhos, conta uma história sobre uma moça que vem à fazenda fazer um ‘estágio’.
O filme de estréia de Isabelle Mergault conquista pela simplicidade, pelas situações comoventes entre Aymé e Elena, e, é claro, pelas bonitas cenas do meio rural francês (que nos remetem aos contos de Guy de Maupassant).