terça-feira, agosto 26, 2008

DAVID LYNCH NO FRONTEIRAS DO PENSAMENTO



AUTOAJUDA 
Em 10 de agosto de 2008, o diretor de cinema David Lynch esteve em Porto Alegre para a divulgação de seu livro de autoajuda Catching the Big Fish (que no Brasil recebeu o título Em águas profundas). Quem foi ao auditório da Reitoria da UFRGS esperando palavras sobre cinema saiu decepcionado: noventa por cento do tempo Mr. Lynch teceu elucubrações sobre a importância da meditação e de que como o bem-estar pode ser canalizado para boas coisas, inclusive para fazer obras de arte.

OUR NATURE IS BLISS
Se fosse para resumir o colóquio de Mr. Lynch em uma simples frase, seria “Our nature is bliss!”. O bordão foi repetido várias vezes pelo convicto cineasta, afirmando sua crença em que o ser humano nasceu para ser feliz. A natureza humana, frisou Mr. Lynch, é encantamento e felicidade. Felizes, produzimos mais em todos os sentidos. Sentindo-nos miseráveis e depressivos não conseguimos alcançar nossos objetivos.

PERGUNTAS

A palestra de David Lynch foi dada em formato “perguntas e respostas”. Um “host” um tanto deslumbrado e fazendo piadas no mínimo desnecessárias (como aquela sobre Quem matou Laura Palmer) seguiu um protocolo de perguntas-padrão. Teoricamente, o público poderia enviar perguntas, mas o critério de seleção das perguntas do público foi também no mínimo equivocado. Tanto que a última e constrangedora pergunta (novamente a insistência, “O sr. pode nos dizer quem matou Laura Palmer?”) recebeu a única e límpida resposta: “Essa pergunta é absurda”.

DONOVAN
Para ajudar David Lynch em sua peregrinação e pregação pró-meditação, acompanha-o mundo afora o bem-sucedido músico dos anos 60, Donovan, que naquela década emplacou vários hits. Assim, a plateia pôde curtir quatro de suas canções, interpretadas ao melhor estilo ‘voz e violão’.

AUTÓGRAFOS
Os tietes de Mr. Lynch após o evento enfileiraram-se no pátio da Reitoria para conseguir um autógrafo do carismático cineasta e artista multimídia, que no momento não trabalha em nenhum projeto na área de cinema. Um dos fãs porto-alegrenses pediu um autógrafo no braço e depois mandou tatuar. Minha irmã contentou-se com a assinatura no livro e um simpático recado verbal: “Take care”. 
Foto: Ana Guerra

terça-feira, agosto 19, 2008

Mangue Negro



Fantástica realização de Rodrigo Aragão. Nascido em 1977 na comunidade de pescadores do Perocão, em Guarapari, cresceu no meio de muita imaginação e fantasia – o pai era mágico profissional e dono de cinema. Com esse background, nada menos surpreendente que, ao assistir a filmes como O Império Contra-Ataca, de George Lucas, e Uma Noite Alucinante, de Sam Raimi, o menino ficasse entusiasmado por efeitos especiais e terror. O interesse adolescente estava lá, mas só com muito esforço transformou-se em habilidade para fazer efeitos eficientes e roteiros funcionais. Essa habilidade, desenvolvida e posta em prática nos curtas Chupa Cabras (2004), Peixe Podre (2005) e Peixe Podre 2 (2006), pode agora ser conferida em seu primeiro longa: Mangue Negro.

O filme integrou a mostra de filmes fantásticos de Porto Alegre – o conceituado Fantaspoa – e também teve sessão no Clube do Cinema de Porto Alegre, na presença do realizador.
Antes da sessão, o diretor capixaba disse que o objetivo dele ao fazer o filme era apenas possibilitar momentos de diversão ao público, deixando claro que se tratava de um filme com certo “nicho de mercado”.

Ao cabo da película (?) (o filme foi passado em dvd) a platéia estupefata pôde tecer considerações e críticas, tirar dúvidas e fazer perguntas. Uma dessas perguntas envolveu justamente o comentário de antes da sessão: qual a relação entre diversão e horror? O que há de divertido em colocar os heróis do filme na madrugada no meio de um mangue cheio de zumbis esfomeados e alucinados? A resposta concisa: o horror, para Rodrigo Aragão, é algo intrinsecamente divertido.
O custo do filme? Estarrecedoramente baixo para a qualidade do produto final: 60 mil reais, levantados com um empreendedor privado após assistir a 15 minutos do filme produzidos com sacrifício do elenco e da equipe, pagando despesas de transporte com dinheiro do próprio bolso.

Com simpatia, Aragão respondeu a todos, inclusive a mim, que perguntei o que diacho era um caramuru. Na minha ignorância de gaúcho, não sabia o nome dessa espécie de moréia do manguezal, de carne não muito apreciada, mencionada no filme. E como essa há outras referências bem regionais que dão a Mangue Negro sua autenticidade e visceralidade.

Vísceras, aliás, não faltam. Nem sangue de mentira. Nada menos que setecentos litros de sangue (cuja receita inclui até chocolate) foram gastos nas filmagens, inteiramente realizadas no quintal da casa de Rodrigo - onde ele construiu com madeiras velhas os barracos que serviram de cenário e por onde passa o principal astro do filme: o mangue.

Logo na primeira cena o espectador é apresentado ao bizarro meio em que as ações ocorrem. Uma câmera meio Peter Jackson-meio Sam Raimi aproxima-se depressa de um bote e enquadra o rosto de Agenor dos Santos (Markus Conká), um pescador contador de causos que percorre lentamente o mangue em busca de um pesqueiro, na companhia do colega remador. A tomada tem grande eficácia para incitar a curiosidade, criar a atmosfera de suspense e introduzir as personagens.

Batista (Reginaldo Secundo) enterra as mãos na lama à cata de caranguejos cada vez mais escassos. A brejeira Raquel (Kika de Oliveira) lava roupas na beira do mangue para ajudar a mãe, presa a uma cama e deficiente visual. O tímido Luís (Valderrama dos Santos) ensaia uma declaração de amor. O asqueroso Valdê (Ricardo Araújo), pai de Raquel, recebe a visita do asqueroso atravessador (Antônio Lâmego), que, enquanto espera um lote de caranguejos asquerosos, dá em cima de Raquel, para desespero de Luís.

Mas, quando o mundo enlouquece e seres desvairados e esfaimados despertam do fundo do manguezal, Luís é obrigado a adiar os momentos idílicos e a se preocupar com o essencial: salvar a pele (e a carne) da amada (e a sua também). Em meio à gosma e ao sangue, Luís maneja a machadinha com perícia, tentando repelir o ataque irresistível dos zumbis à cabana. Quando a doce carne de Raquel é dilacerada por dentes infectos, a única chance passa a ser a preta velha Dona Benedita (André Lobo), que aconselha Luís a (em plena madrugada e no mangue infestado de mortos-vivos) pescar um baiacú, cujo fel pode salvar Raquel. A preta velha é importante e bem interpretada, além de emprestar certo misticismo ao filme, mas o ritmo cai nessa parte. Aliás, no final, a única crítica feita pelos cineclubistas foi que o filme poderia ser um pouco mais curto.

Mesclando crítica ecológica e humor negro, fotografia dark e tomadas eficazes, Mangue Negro é um clássico do horror tupiniquim. A versatilidade do diretor lembra a de outro criador de efeitos especiais: Tom Savini, o responsável pelos efeitos dos filmes de George Romero. Com a diferença que Savini só estreou na direção em 1990, no remake de A noite dos mortos vivos. O Tom Savini brasileiro logo na estréia dirige, cria efeitos especiais e roteiriza. Com a pretensão apenas de divertir, mas despretensão não torna um filme bom. Talento, sim.