quinta-feira, novembro 21, 2024

Ainda estou aqui

 No Feriado de 20 de novembro, Dia da Consciência Negra, uma única funcionária negra atendia no setor de Pipocas e Refris a fila enorme de espectadores que se aglomerava para assistir ao filme brasileiro Ainda estou aqui, de Walter Salles.

O meu filho de 12 anos era um que estava na fila. Pegou uma pipoca grande salgada, a 22 reais. O filho maior, de 17 anos, pegou os 4 canudinhos no balcão. Os 4 refris comprei no Záffari, e foi bom, menos serviço para a sobrecarregada funcionária supracitada, obrigada a servir pipoca e bebidas. A senhora da etnia afro-brasileira, muito eficiente, cobrava escanteio e corria para cabecear.

Alô organização do Cine Laser de Passo Fundo, custava ter reforçado o pessoal no Feriado, em que o movimento seria maior? E justamente nesse Feriado da Consciência Negra.

Agora, sobre o filme em si.

Ainda estou aqui foi escolhido pelo Brasil para tentar concorrer ao Oscar de Melhor Filme Internacional.


Acredito que foi uma boa escolha, é um tema sensível à Academia, politicamente enviesada à esquerda, e com a eleição do Trump e tudo mais, esse detalhe pode influenciar no sentido de aumentar as chances da película (?) brasileira.

Artisticamente analisando a obra de Walter Salles, é muito bem-feita, mas a peneira é muito exigente, são muitos filmes bons mundo afora.

A primeira meta é entrar nos 5 filmes finalistas. Um passinho de cada vez.

Se conseguirmos entrar, as chances se tornam no mínimo de 20%, e algo me diz que o Brasil meio que se tornaria um dos favoritos, pelo hype criado, pelo frisson da imprensa, pela máquina de publicidade que está sendo ativada, e as engrenagens de apoio como de atores hollywoodianos (p. ex., Sean Penn).

A pergunta que pretendo responder aqui é: 

hype ou não hype?

A definição de hype é

to make something seem more exciting or important than it is.

Eis que o filme de Walter Salles é realmente empolgante e importante o suficiente para merecer um Oscar!

E claro, eu ficaria muito feliz se o Brasil, enfim, ganhasse o seu primeiro Oscar nessa categoria, justamente com uma obra inspirada em livro de um escritor brasileiro como Marcelo Rubens Paiva, um lutador em todos os sentidos.

Ainda estou aqui é um filme sobre injustiças, mas também sobre convívio familiar.

É essa paulatina construção dos laços familiares que torna o filme tocante e universaliza sua mensagem de luta pelos direitos humanos.

O cuidado na recriação de época também merece um comentário à parte, desde a fotografia até os veículos e imóveis, tudo beira a perfeição.

Falar nas atuações seria "chover no molhado", de modo que vou me abster. Apenas vou me concentrar em algo que costumo analisar nesse blog, que é a direção.

Walter Salles realiza um trabalho discreto na direção, tanto que o seu nome só aparece nos créditos finais. O foco dele não é o mérito pessoal e sim em contar a história. Acredito que ele tomou a decisão certa e conseguiu seu intento com louvor.

Não vou escrever o clichê "agora vamos torcer", porque torcida é algo inútil no caso de prêmios da Academia.

Como acontece no enredo do filme, inspirado em fatos verídicos acontecidos no Brasil em dezembro de 1970, 25 anos depois e 44 anos depois, tudo vai depender dessa articulação, da rede de contatos, das camadas de inter-relacionamentos envolvidas entre as pessoas com direito a voto.

Elas têm que estar motivadas a assistir ao filme e a votar nele, por motivos artísticos ou políticos, ou ambos.

Uma coisa é certa: Ainda estou aqui é um filme muito bem realizado que merece a estatueta de Melhor Filme Internacional.

Por motivos artísticos, políticos ou ambos.

Na verdade, está mais do que na hora de o cinema brasileiro entrar nesse seleto clube dos países com Oscar de Melhor Filme Estrangeiro/Internacional.

Assistir ao filme é uma grande oportunidade para todos, independente de onde a pessoa pensa estar no espectro político, de se aprofundar no assunto, sem medo de enfrentar os erros que foram cometidos em nome dessa ou aquela ideologia.

Para uma família de cinéfilos, assistir a Ainda estou aqui é mais do que apenas um programa de família, é fazer o tema de casa.



domingo, novembro 03, 2024

Druk: mais uma rodada

 


Um filme dinamarquês em uma tarde dominical, o que mais eu posso esperar próximo da felicidade?

Claro, o fato de ele ter sido o vencedor do Oscar de Melhor Filme Internacional é um mero detalhe se levarmos em conta as emoções que o filme me proporcionou.

O nível de quanto um espectador se envolve com um filme vai depender de vários fatores.

Das experiências que a pessoa teve, de como o filme faz esse balanço entre a história contada e o dia a dia do indivíduo em questão.

À superfície, não tenho motivos para me identificar com o protagonista, um professor de Ensino Médio com a carreira estagnada, que dá aulas sofríveis, e tem como única válvula de escape os encontros com os três amigos e colegas de profissão (e de escola).

A gota d'água é quando a turma reclama à direção sobre a falta de empenho do professor, que confunde os tópicos e divaga durante as aulas.

Martin busca o refúgio em um singelo jantar com seus três camaradas, evento que vai mudar o rumo dessa história - e da vida do próprio Martin.


Os quatro cultivam uma relação divertida, embora com influências mútuas um tanto perigosas, principalmente quando o quarteto resolve testar uma tese.

Todos nascemos com um déficit de nível alcóolico prejudicial ao nosso desempenho, e a melhor versão de nós mesmos só é atingida quando esse nível é alcançado e mantido.

À medida que o experimento vai evoluindo, com o álcool diminuindo a ansiedade e deixando a imaginação aflorar, as aulas de Martin (Mads Mikkelsen) e de seus colegas professores melhoram substancialmente, inclusive a do professor de educação física, que tenta estimular o aluno apelidado de "Oclinhos" a ir bem no futebol.




Mas o filme é então sobre etilismo e a redenção de um professor, um misto de To Sir With Love com Farrapo humano?

Ledo engano.

Aí que está o truque de nosso insidioso diretor Thomas Vinterberg.

Nunca, jamais, confie em um diretor escandinavo, ou pior, dinamarquês, que na verdade nem é da Escandinávia, mas todo mundo vive confundindo.

A Dinamarca fica no extremo norte do continente, espécie de nariz da Europa, terra da Lego e terra em que não existe arrendamento. Só produz quem é dono, e só pode ser dono, quem quiser produzir. Isso que eu chamo de povo porreta.

No Oscar de Melhor Filme Estrangeiro, a Dinamarca tem 

55 submissões, 

12 indicações e 

3 Oscars:

o glorioso, forte, inesquecível e sempre merecedor de uma revisita,

A festa de Babette (Gabriel Axel)

e o épico    

Pelle, o conquistador (Bille August),

dois filmes da década de 1980, e 

agora este nosso adorado DRUK.

A propósito, existe o intertexto entre Druk e A festa de Babette

O filme de Gabriel Axel sobre uma chef de restaurante que vai se refugiar num vilarejo remoto serve como estudo sobre o desprendimento, que "da vida nada se leva", mas também aborda alguns temas afins a Druk: a dualidade entre o sóbrio e o ébrio, a contenção e a descontração, a estagnação e a vida pulsando nas veias.

Como eu disse, nunca confie em um diretor dinamarquês, você pensa que a história é sobre isso, mas é sobre aquilo, ou não é apenas sobre isso, é sobre isto e aquilo.

No caso, Anika.

Maria Bonnevie interpreta a esposa de Martin.

Mãe de dois filhos, um adolescente, um pré-adolescente, ela é o fator principal do filme. Sim, o filme é sobre Anika.

Thomas Vinterberg faz um filme para falar de um personagem que mal aparece, está em apenas duas ou três cenas, mas o filme é sobre ela.

Sobre como Martin deixou de prestar atenção nela.

Sobre como Martin permitiu que ela se distanciasse.

Martin, Martin, onde você estava com a cabeça?

É a mãe de seus filhos, Martin.

Haverá tempo para Martin resgatar sua vida, o amor pela profissão, o amor por Anika, o amor por si mesmo?



É que o Thomas Vinterberg tenta nos responder em Druk, e não vou contar mais nada, além de uma confissão. 

Uma lágrima escorreu em meu rosto na última cena.