Até o dia em que o cão morreu, conforme Alex Castro, poderia ser enquadrado no que ele chama de “Escola urbana” ( http://www.sobresites.com/alexcastro/artigos/urbana1.htm): um movimento da literatura brasileira contemporânea que se caracteriza por protagonistas apáticos, mulheres objetos e ausência de enredo.
O livro de cem páginas conta a história porto-alegrense de um recém-graduado em Letras, especialista em russo e aspirante a tradutor literário, que conhece a modelo Marcela numa formatura e passam a noite juntos no apartamento quase sem mobília onde mora o rapaz. A partir dessa primeira noite, os dois passam a se encontrar com freqüência, sempre no despojado ap, conforme a vontade da moça. Os dois formam um casal improvável (ela muito bonita para ele), mas esta é outra característica da ‘Escola urbana’: protagonistas feios, sujos e malvados que traçam belas mulheres. No relacionamento aparentemente baseado em sexo não se pronuncia a palavra amor. (Mas não verbalizar não quer dizer não sentir). Desempregado e com dificuldades para pagar suas contas, o jovem vai almoçar na casa dos pais todo domingo. É deles o suporte financeiro para sua tentativa de vôo solo. Quando o pai lhe dá a real que não pode mais ajudá-lo, é Marcela, cuja carreira vai bem, que ajuda com o dinheiro do aluguel. Outros personagens do livro são: o porteiro que pinta quadros surrealistas e faz sorvete caseiro; o motoboy Lárcio (que atropela Marcela e, como pedido de desculpas, oferece um jantar em sua casa); Ana, a mulher de Lárcio, e, last but not least, Churras, o cachorro vira-lata.
O filme, roteirizado pelos diretores Beto Brant e Renato Ciasca, junto com Marçal Aquino, acrescenta pontos que não constam no livro e omite partes interessantes, como as recordações do protagonista sobre o avô. Entre os acréscimos, uma fala do pai de Ciro (o protagonista, que no livro não tem nome) com o filho à beira do Guaíba sobre problemas enfrentados no casamento devido ao uso de drogas.
É inevitável para quem leu o livro fazer comparações com o filme; por exemplo, a descrição física de Lárcio no livro não fecha com o Lárcio da tela – o que não impediu a atuação convincente do ator Marcos Contreras. Em compensação, o cão e o porteiro (Luis Carlos Coelho) estão perfeitos no quesito compatibilidade com o original e ''roubam" as cenas em que aparecem. Outra diferença: a causa mortis de Churras, detalhe importante no livro, não é mencionada no filme. O título alternativo “Até o dia em que o cão morreu” foi mudado para o comercial Cão sem dono. O roteiro permite-se citações literárias com tempero local, como a entrada de Ciro na livraria para comprar obras de Sérgio Faraco.
Quanto ao filme em si, sua melhor qualidade é a despretensão, que chega a níveis quase intoleráveis. O filme é tosco, dá a sensação de que não houve preocupação em repetir cenas (o que pode não ser verdade), e algo me diz que foi exatamente essa a intenção dos diretores Renato Ciasca e Beto Brant. Quando Marcela (a estreante Tainá Müller, a namorada de Daniel Galera) está com a perna enfaixada, tive a impressão até de que um erro de continuidade foi incluído propositalmente, para desconcertar ou deixar o público com a pulga atrás da orelha. Falando em pulgas, bem que o cão podia ter aparecido mais - ele some durante a parte final. Mas, na verdade, o verdadeiro cão sem dono do filme é Ciro (Júlio Andrade), imagem e personagem de uma Porto Alegre cinza e underground (com direito à cena na Garagem Hermética).
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