segunda-feira, dezembro 31, 2007

Inland Empire




A trintona quase quarentona gordinha e faceira e o filho magro e sisudo de treze anos sobem as escadas do Unibanco Arteplex 1. Estou sentado numa das fileiras superiores, na seção central, numa poltrona mais ou menos no meio. A dupla sobe as escadas e senta-se na seção lateral à direita. Outras pessoas vão chegando aos poucos, a sessão atrasou – como, com toda polidez, o bilheteiro havia avisado – devido a um cálculo errado sobre a duração do filme anterior (Gigante, como o Inter conquistou o mundo). O clima na sala é de pura expectativa. Neste meio-tempo, a dupla anteriormente citada abandona o local escolhido, a mamãe passa sorrindo e pedindo licença, eu recolho as pernas e acompanho-a com o olhar até os dois se acomodarem na estreita seção de poltronas da esquerda. Mais pessoas vão sentando cá, ali, acolá, aqui e lá. Então mamãe e filho fãs de David Lynch levantam-se dos novos lugares escolhidos, descem alguns degraus e sentam-se novamente. A sessão está prestes a ter início. Um clima de água na boca no ar. A dupla dinâmica levanta-se mais uma vez e senta-se, agora definitivamente, na primeira fila da extrema esquerda, esperando, ansiosos, o início do banquete.
Sim, pois um filme de David Lynch é para cérebros o que a Festa de Babette é para olhos e estômagos: um cardápio rico e multicor, nutritivo e substancial. A digestão pode não ser muito fácil, mas o prazer sublime do consumo compensa. Mas e por que toda essa introdução sobre a indecisão da cinéfila mãe e do cinéfilo filho sobre onde sentar? Porque isso exemplifica um pouco o tipo de pessoa que estava no cinema. Fãs de Lynch são pessoas um tanto imprevisíveis, não-lineares, pouco dadas a seguirem uma mesma e repetitiva linha de ação. Lynchnianos são seres cientes de que pagar ingresso para ver um filme de Lynch é assinar um contrato de risco. Nada garante nada e nada se prende a nada nos próximos 120 ou 180 minutos. O que vai passar? Um filme sem pé nem cabeça, enigmático, como A estrada perdida, ou um filme com começo, meio e fim, como História real? Pouco importa. É um novo filme de David Lynch, que aos 22 anos virou pai e, baseado em suas experiências assustadoras, fez o primeiro e acachapante longa-metragem: Eraserhead (1978). O filme assombrou o produtor Mel Brooks que convocou o diretor novato para realizar O homem elefante (1980), a história de um homem gentil e culto interpretado por John Hurt que sofre de elefantíase e por isso é explorado como atração de circo. Em 1984, após ter declinado o convite para fazer O retorno de Jedi, lançou Duna, que, devido a uma série de cortes, ficou desfigurado, e o próprio Lynch pediu sem sucesso para que seu nome fosse retirado dos créditos. Em 1986 e 1990 fez dois filmes especialíssimos: Veludo azul e Coração selvagem. Veludo azul, com Dennis Hopper e Isabela Rosselini, explora o mistério sobre uma orelha cortada e os desejos masoquistas de uma bela morena, enquanto Coração selvagem traz o casal mais quente e alucinado do cinema (Lula Fortune / Laura Dern e Sailor Ripley / Nicolas Cage). Para mais detalhes sobre Coração selvagem, ler post neste blog. Twin Peaks: Fire Walks With Me (1992) aproveita o sucesso da séria televisiva; o quebra-cabeças A estrada perdida (1997); o belíssimo História real (1999), o mais concreto e rural dos filmes de Lynch (as lindíssimas cenas aéreas das lavouras são uma espécie de tributo à profissão do pai, pesquisador do Departamento de Agricultura) (mais detalhes sobre a biografia dele pode encontrar no livro David Lynch, resenhado aqui); e o onírico Cidade dos sonhos (2001) completam sua filmografia prévia. Abre parênteses. A julgar pela tendência tradutória dos recentes dois filmes, o próximo filme de Lynch será “'Alguma coisa' dos sonhos”: Mulholland Drive virou Cidade dos sonhos e Inland Empire virou Império dos sonhos. Fecha parênteses.
E tudo isso nos leva ao exato minuto em que as luzes se apagam e começa a passar Inland Empire, e Lynch começa a fazer uma queda de braço com a paciência do espectador comum. Por espectador comum, leia-se o neófito em assuntos lynchnianos. A queda de braço é a seguinte: quando você vai cansar e abandonar a sala? Quando vai ter sangue na veia o suficiente e simplesmente jogar a toalha? E é assim do princípio ao fim de Inland Empire. Mesmo para quem já conhece as piras de Lynch, em alguns momentos passa isso na cabeça. E foram várias pessoas que abandonaram a sessão. Pelo sitcom com homens-coelhinhos? Pelas demências de uma mulher traída? Pelas confusões de uma atriz decadente? Pela ausência de um fio condutor? Pela ausência de um fio? Pela ausência de um condutor? Pelo formato digital sem charme? Pela fotografia escura? Pela falta de noção? Pela falta de nós? Pela falta de ação? Não sei... sei não... O fato é que muitos desertaram, e me chamou a atenção uma hora que na tela aparece na legenda algo como “o que é que eu estou fazendo aqui” e, ato contínuo, vários espectadores aproveitaram a deixa e se arrancaram para respirar ar puro.
Ah sim, e o filme? Sim, Inland Empire (2006) é sufocante; uma experiência introspectiva, intimista e claustrofóbica. Um filme que exige muito a atenção do espectador, pois não há história linear para acompanhar; um filme que provoca muita tensão no espectador, a tensão de tentar entender, de amarrar os fios soltos e de formar um todo coerente. Sim, pois, conforme Charolles, por mais que nos defrontemos com algum texto aparentemente absurdo, todo texto é coerente, ou seja: tentamos vislumbrar um contexto ou uma situação em que aquele teórico absurdo adquira coerência. Pois bem, eis que o contexto é um filme de David Lynch. O elenco inclui Laura Dern e Justin Theroux, ambos com papéis duplos, mais Jeremy Irons, como o diretor de cinema.
Como o que me faz lembrar de Lynch são cenas, a cena que mais me tocou  

SPOILER SPOILER SPOILER SPOILER SPOILER SPOILER SPOILER SPOILER
PLEASE DON'T READ IT IF YOU ARE A SPOILER-SENSITIVE PERSON 

foi aquela em que Laura Dern, ferida de morte, desaba na calçada da fama, no meio de duas mulheres, uma afro-americana e uma oriental, que avisam Laura placidamente que ela está morrendo e, a despeito disso, entabulam uma conversação envolvente sobre variados tópicos, não sem de vez em quando dedicar um pouco de cuidado à moribunda que vomita sangue e estrebucha no meio delas. A afro-americana inclusive fala palavras de conforto e acende a luz bruxuleante do isqueiro na frente da que está morrendo pouco antes de ela expirar. É a típica situação lynchniana, surreal e ao mesmo tempo desconcertante, por isso bonita. Essa cena se passa bem ao fim do filme, portanto, depois que os desistentes se foram. No jogo de paciência com o espectador, o mais fiel e mais resistente é recompensado com a cena mais surpreendente e refrescante do ano.
Não recomendo este filme para ninguém, nem tampouco quero defendê-lo, ou sugerir que quem abandonou o cinema não tinha motivos para isso. A graça do cinema de Lynch é justamente essa: cada um tire suas próprias conclusões. Se você foi ver este filme e odiou, isso não faz de você uma pessoa menos intelectual que a trintona gordinha e faceira e o filho magrinho e sisudo, que permaneceram até o fim dos créditos. E que créditos!
Aproveito o ensejo para dedicar aos leitores deste blog um 2008 tão cheio de surpresas e tão fora dos padrões lineares quanto Inland Empire.

quinta-feira, dezembro 20, 2007

No vale das sombras

Paul Haggis, ao roteirizar Million Dollar Baby (2004), ganhou cacife para escrever e realizar Crash (2005). O filme surpreendeu e venceu o Oscar 2006. Agora Haggis reúne em O vale das sombras (In the valley of Elah, 2007) ninguém menos que Tommy Lee Jones, Susan Sarandon e Charlize Theron. De um elenco assim, não se espera menos que atuações estudadas e contidas, e é isso que temos. A cena com o diálogo ao telefone entre Lee Jones e Sarandon, com revelações sobre o paradeiro do filho, pode ser um bom exemplo do nível de competência desses atores. Tommy Lee Jones é Hank Deerfield, pai do soldado Mike (Jonathan Tucker), recém chegado da Guerra do Iraque. O filho não se comunica com a família e desaparece. Hank se despede da mulher Joan (Sarandon) e guia durante um dia inteiro até chegar à base militar em que o filho deveria estar. Uma cena emblemática para definir a personagem de Hank se passa nessa viagem. Num prédio à beira da estrada, ele nota a bandeira americana hasteada de cabeça para baixo. Um minuto depois, está ensinando a pessoa que havia hasteado a bandeira ao contrário – um estrangeiro – e explicando que hastear uma bandeira invertida significa que há algo errado com o país e que a nação precisa de ajuda. Com a bandeira hasteada do modo certo, segue viagem. Ao chegar na base, ninguém sabe dizer nada sobre onde está seu filho. Ele pede ajuda à investigadora Emily Sanders (Charlize Theron), que a princípio nega porque o caso envolve pessoal do exército.
O roteiro é cheio de detalhes bons, como o contato de Hank com um expert em mídia, que vai restaurando e enviando por e-mail os arquivos contidos no celular do filho Mike. Assim, o pai pode acompanhar um pouco da assustadora rotina do filho no Iraque. Cena digna de menção – e que dá título ao filme – é a em que Hank, após jantar na casa da investigadora, vai contar uma história para o filho dela. A história contada é a de Davi e Golias, passada no vale de Elah. É uma cena terna e bonita.
Em suma, um consagrado diretor, um elenco fenomenal, uma premissa interessante e um corpo esquartejado e queimado à beira de uma rodovia deveriam resultar sempre num ótimo filme. Mas não é o caso de O vale das sombras.
Há dois problemas que desvalorizam a película. O primeiro tem a ver com a incerteza de “gênero”. A partir de uma altura, o filme se transforma num ‘whodunnit’ meio capenga, e o norte do filme se perde. O mistério se desenvolve de um modo meio forçado e se precipita numa conclusão mal forjada. Mas o pior não é isso.
A qualidade de O vale das sombras é posta em xeque no momento em que se percebe que é um filme realizado nos mínimos detalhes para provar uma tese. Desde o começo, os truques de um roteirista experiente e talentoso são usados para conduzir o pensamento do espectador para um ponto de vista, que é o do próprio autor. Não há contraponto, não há margem para interpretações. Esse é o tipo de cinema mais odiável e raso, o cinema de manipulação, o cinema de Michael Moore. Não fosse tão maniqueísta, O vale das sombras poderia ser um ótimo filme.

segunda-feira, dezembro 03, 2007

Diretores e compositores

Parcerias duradouras entre imagem e música eternizaram muitos filmes. Alma gêmea do diretor, o compositor capta toda a carga emotiva da imagem e a traduz em som incidental, em ritmo insistente, em divina melodia.

As psicoses, o instinto assassino e as neuroses do cérebro humano. A curiosidade, o suspense, a vontade de ficar sabendo. O medo, o arrepio, o susto pulando da tela. A aventura, a espionagem, toda enrascada em que alguém pode se meter. Os cenários, os trens, as estátuas, todas perseguições pelas encruzilhadas do mundo. O toque refinado, o humor negro e sutil. Todas facadas, todos tiros, todos crimes. Tudo está em Hitchcock e Hermann.

Os intermináveis segundos antes do duelo. O forasteiro que vem ajudar os oprimidos. O cenário desértico, a barba por fazer, a rapidez no gatilho. Um pistoleiro de aluguel com escrúpulos. Um spaghetti cujo molho é o sangue de malfeitores. Os faroestes clássicos de Leone e Morricone.

As perversões da alma desnudas. Um mergulho ao subconsciente, às entranhas das dúvidas e das aspirações mais íntimas do ego. Personagens patéticos e dementes contracenam com gente normal e comum. Situações nonsense ou simples cenas de amor. O sadomasoquismo, a rebeldia, a loucura. As imagens nervosas de Lynch embaladas ao som celestial de Badalamenti.

O rompimento, a crítica, o homem em face a uma situação extrema. Um visionário numa ilha. Um repórter numa revolução. Um menino testemunha um crime. Um estudante sobe na mesa para homenagear o professor. A simbiose de "Oh, captains, my captains" Peter Weir e Maurice Jarre.

A obsessão, a luxúria, a arquitetura. O canibalismo, a tatuagem, a plasticidade. Uma profundeza irreal, uma falsa superficialidade. Um Shakespeare, um artesão de parque. Um menino cantando com voz de anjo. A viagem onírica de Greenaway e Nyman.

O sofrimento de criaturas inacabadas. A agonia de pessoas alijadas. Lendas e heróis, contos e vilões, estórias de fantasmas e seres imaginários. Cabelos que nos tapam os olhos, uma tesoura que nos faz ver. A fantasia mágica de Burton e Elfman.

Uma escada espiral descendo para o subterrâneo do coração. Um lugar onde o sol não pega, onde o inverno sempre impera. Quatro personagens com sonhos de paz e felicidade. Quatro caminhos que se separam e levam a um só fim: a degradação, a dependência, o escapismo, o vício. Futuros promissores que se despedaçam. Vidas aniquiladas, sonhos amputados. A catarse de Aronofsky e Mansell.

O cinema não seria o mesmo sem esses casamentos perfeitos.