domingo, janeiro 07, 2018

A última onda


Considerado por muitos um clássico do cinema australiano, A última onda (1977) é o terceiro longa-metragem de Peter Weir, após The Cars that Ate Paris (1974) e Picnic at Hanging Rock (1975). Clássico ou não, é um filme raro em todos os sentidos. Raro de se conseguir: apenas locadoras de grande acervo dispõem desse título, pouco procurado pelo "público em geral". Tipo do filme destinado a mofar nas prateleiras até que apareça alguém interessado nele, coisa que só ocorre... raramente. 
Rara também é a construção da película, rara é a atuação de Richard Chamberlain, raros são os temas abordados, rara é a mescla de atores aborígenes com os australianos brancos. Outra raridade é a esotérica trilha sonora, que nos remete a um clima fantástico, a uma bizarrice que permeia a história e, cena após cena, vai dominando o espectador.



Chamberlain vive David Burton, um advogado tributarista que tem uma rotina tranquila em uma metrópole australiana, na companhia da esposa, das duas filhas e do padrasto, um pacato pastor. Mas essa falsa aparência de tranquilidade aos poucos será desmantelada por fatos extrínsecos e intrínsecos ao personagem. Mudanças climáticas começam a se manifestar. Tempestades, granizo, chuva negra. Paralelamente, um aborígene aparece morto e um grupo de cinco homens, também aborígenes, é considerado suspeito.
Burton é convidado a coordenar a defesa dos réus. Isso serve para desencadear uma série de sonhos e visões no contido advogado, que desperta no meio da noite em sobressaltos premonitórios. Com o andar da investigação, ele se convence de que os aborígenes são inocentes, e que a morte envolve feitiçaria tribal, perpetrada por Charlie, um estranho líder espiritual dos aborígenes.



O choque cultural é extremo em cenas como o jantar na casa dos Burton, ao qual Chris, um dos aborígenes, é convidado, levando junto com ele o misterioso Charlie. E também na proverbial sequência de tribunal, único momento em que o filme ameaça tornar-se um pouco acadêmico. Mas a cena é rápida e serve para mostrar um júri todo composto por descendentes de europeus julgando os aborígenes.
Em 66 minutos, A última onda aborda, com rara ousadia, assuntos palpitantes como misticismo espiritual, fragilidade ambiental, contraste cultural, preconceito racial e transformação pessoal. Um dos pontos altos de sua fase australiana, The Last Wave é um bom exemplo do cinema de Peter Weir, um adepto dos "finais abertos".



Sobre The Last Wave, o escritor Andrew Nette afirmou que o filme "mina nossas certezas culturais, induzindo-nos a contemplar a existência de algo mais profundo e mais poderoso sob o exterior da Austrália branca".
Por sua vez, na introdução da obra The films of Peter Weir, Jonathan Rayner resume a dimensão da obra do diretor australiano, que, como Almodóvar, também não frequentou escola de cinema:

"A obra de Weir exibe uma unidade estilística na qual os conceitos de autoria europeus e americanos convergem. A carreira dele é marcada por um estilo europeu de autoria de filmes artísticos, com base em escritos pessoais e expressão visual, na Austrália, e por um estilo americano de autoria, com base na revisão de gêneros, em Hollywood. Nas duas fases, uma consciência sobre as convenções dos gêneros (da indústria hollywoodiana e do gênero de filmes artísticos) elucida temas e preocupações pessoais articulados por uma expressão visual individual. Dono de um estilo idiossincrático e versado na modificação dos gêneros, Weir estava bem preparado para entrar no establishment de Hollywood no começo dos anos 1980, época em que a indústria estava repleta de diretores americanos que também reconheciam a influência do filme de arte europeu e buscavam dirigir de maneiras inovadoras e individuais.
(...) Peter Weir é um diretor com intenções definidas e discerníveis, mesmo se ele não tiver necessariamente uma "mensagem" específica para transmitir. Ao extrairmos significado do conjunto delineado dos textos de Peter Weir, devemos buscar um equilíbrio, por um lado, entre a liberdade de interpretação individual e associações intertextuais mais amplas, e, por outro, o reconhecimento da construção textual e referências intertextuais deliberadas, encenadas pelo diretor e seus colaboradores."*

*Excerto da obra Rayner, Jonathan. The Films of Peter Weir, 2nd ed., p. 12, 15-16.


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