segunda-feira, maio 27, 2024

Furiosa x Tristana: um exercício de cinema comparado

 


De um lado, um dos maiores diretores australianos de todos os tempos. Do outro, um imortal cineasta espanhol, o mestre do surrealismo.


De um lado, ainda na ativa, George Miller, o criador da franquia Mad Max, e de outros clássicos australianos como Babe, o porquinho atrapalhado (não confundir com seu homônimo). Do outro, alguém que já não está mais entre nós, mas entrou na categoria de realizadores clássicos: Luis Buñuel, o mestre de O anjo exterminador, O discreto charme da burguesia, A bela da tarde e Esse obscuro objeto de desejo.

Este texto vai abordar as semelhanças e as diferenças entre Furiosa, de George Miller, e Tristana, de Buñuel. 

Em outras palavras, um exercício inusitado de uma nova disciplina, o cinema comparado. Enquanto a literatura comparada mergulha no cotejo de obras de literaturas de diferentes países e épocas, nos intertextos, nas influências, o cinema comparado faz o mesmo com filmes. Os links acima remetem a trabalhos de Mariana Souto e Monaliza dos Santos, pioneiras adeptas do método no Brasil.

Recentemente abordagem semelhante virou tema de uma cadeira de pós-graduação, chamada Estudos comparados de cinema mundial, no segundo semestre de 2023, na UFBA.




Tristana (1970) chocou o público com o modo simples com que retratou a hipocrisia de Dom Lope, um sujeito mórbido que adota a menina Tristana, na motivação suposta de a proteger, mas com a ideia de se aproveitar dela. Um dos papéis mais emblemáticos da carreira de Catherine Deneuve, a jovem Tristana traz a tristeza no nome, e parece perseguida por uma sombra, a sombra da incapacidade de sonhar com dias melhores.




Furiosa (2024), conto distópico pós-apocalíptico, narra a trajetória de Furiosa, menina que é raptada brutalmente por uma tribo bárbara. A atriz Anya Taylor-Joy emplaca seu maior sucesso, o filme pelo qual sempre será lembrada. Ela traz no nome o sentimento que a move: a fúria, o ódio, o desejo de vingança. 


Em Tristana (que no Brasil, o país dos subtítulos, não escapou de ganhar "uma paixão mórbida" nos cartazes e capas de dvds), Dom Lope, na célebre interpretação de Fernando Rey, é o esquerda caviar, que despreza as autoridades, a polícia, o clero, e odeia trabalhar como ganha-pão (na cabeça dele, apenas o trabalho por prazer é digno). Ensina Tristana que o casamento é uma instituição podre, ela precisa permanecer livre. Mas não pensa duas vezes em induzir a menina ao erro e em se tornar amante da inocente órfã, a sua suposta protegida, a menina que vem morar sob o seu teto após a morte da mãe.



Em Furiosa: uma saga Mad Max (subtítulo, como o de Tristana, desnecessário, mas estamos no país dos subtítulos), a menina Furiosa também perde a mãe, torturada pelos animalescos personagens que compõem o bando, ou tribo, ou exército de Dementus, encarnado por Chris Henworth. Como um Dom Lope do futuro, o asqueroso sequestrador dos desertos sanguinolentos tenta se autojustificar a todo instante. E, como todo bom vilão, pensa ter seus momentos de "redenção", em que pretensamente toma atitudes nobres, sem segundas intenções. 




As duas meninas vão crescendo e amadurecendo. Tanto Tristana quanto Furiosa têm seus momentos de esperança, em que surge alguém com potencial de aplacar o sofrimento, alguém por quem ambos recrudescidos corações femininos amolecem por um tempo, um amigo, um amor, alguém com quem talvez valesse a pena sonhar um futuro... 

Tristana conhece e se apaixona pelo pintor Horácio (Franco Nero).



Furiosa encontra uma amizade forte e, quem sabe, algo mais, em Pretoriano Jack (Tom Burke). 




Em meio às constantes turbulências, esses momentos de esperança parecem fugazes. Em sua luta pela sobrevivência, Furiosa perde um braço, e Tristana, uma perna.

Sob o sol estorricante do deserto, Furiosa não vai descansar enquanto não lavar em sangue o seu desejo de vingança.

Sob a neve impiedosa, Tristana só vai resolver sua dor de um modo que faz o espectador enregelar o sangue nas veias.




Em meio a cenas que ficam na retina, a alma humana é despida e esquartejada, a hipocrisia é revelada. 

Tristana. Furiosa. Deneuve. Taylor-Joy. Buñuel. Miller. 

Se o que forja um filme é a capacidade de permitir múltiplas leituras, Tristana e Furiosa são filmes viscerais. 

Se o que caracteriza atuações perenes é a mágica de mesclar acidez e doçura, Deneuve-Tristana e Furiosa-Taylor-Joy estão na mesma categoria de personagens e intérpretes imorredouros.

Se o cinema é a arte de provocar e fazer pensar, Buñuel e Miller são mestres do ofício.

E se no cinema comparado um filme serve de trampolim para a compreensão do outro, Tristana ilumina Furiosa e vice-versa, no sentido de serem estudos da alma feminina na difícil busca de redenção e plenitude. 



 

quarta-feira, maio 01, 2024

O dublê

 



A trajetória de David Leitch na indústria do cinema é admirável. De dublê a diretor de cinema respeitado, um cineasta especializado em filmes de ação com pitadas autorais.

Além da trajetória inusitada, de alguém que galgou degraus na indústria desde pau-pra-toda-obra anônimo até o detentor do mérito artístico, outra coisa que chama a atenção nesse diretor nascido em Wisconsin em 1975 é o nome.

Não é qualquer diretor cujo nome é uma mistura do nome de um diretor clássico,

David Lean (Lawrence da Arábia, Desencanto, A ponte do rio Kwai)

e de um diretor cult,

David Lynch (O homem-elefante, A história real, Eraserhead).

Com essas credenciais, David Leitch está construindo uma filmografia consistente, coerente e coesa, que inclui Atômica (2017) e Trem-bala (2022), além de um filme da série Velozes e furiosos e um spin-off da mesma franquia.

O dublê é o auge de sua carreira até aqui, resume tudo que ele fez, reúne todas as suas qualidades e as involucra num produto de ritmo alucinante, e ao mesmo tempo dá uma ideia de onde ele pode chegar na indústria, cada vez mais longe.




O roteiro, assinado por Drew Pearce, é uma espécie de homenagem ao seriado The Fall Guy, estrelado por Lee Majors na década de 80.

Com esse nome e sobrenome e com esse currículo, para David Leitch, o céu é o limite.

Na vida real conta com o apoio da esposa, a produtora Kelly McCormick, um amor que espelha o amor do casal protagonista de O dublê.

O que desemboca na discussão clichê em filmes dessa natureza, em que o romance permeia a ação: existe "química" entre o casal encarnado por Emily Blunt e Ryan Gosling?

Se você respondeu "sim" à pergunta deve ter adorado o filme, 

se respondeu "não", é uma pessoa muito cínica e muito crítica,

o tipo de pessoa que odeia filmes dublados, 

o tipo de pessoa que não curte Kiss e a canção

I Was Made For Lovin' You,

que permeia o filme nas mais variadas versões.

Ame ou odeie, vale conferir O dublê,

nem que seja para descobrir que tipo de pessoa você é e quer ser.