Escrito originalmente em francês pelo jornalista e cineasta Thierry Jousse, o perfil de David Lynch da coleção Masters of cinema da revista Cahiers du cinéma (Cadernos de cinema) foi transposto para a língua inglesa por Sarah Robertson e Imogen Forster. Em cento e poucas páginas, Jousse faz um apanhado da filmografia do cineasta, desde os experimentais curtas-metragens Six Men Getting Sick (1967), The Alphabet (1968) e The Grandmother (1970), passando pelo primeiro e acachapante longa, Eraserhead (1977), até o mais recente Inland Empire (2006). O autor enfatiza os motivos pelos quais David Lynch se tornou um diretor “cult” e demonstra com objetividade por que ele é um dos cineastas contemporâneos mais influentes.
Jousse esmiúça a trajetória lynchniana iniciada com Eraserhead, alegadamente o filme preferido de John Waters. O filme que teve sua primeira exibição pública no Brasil em dezembro de 2003 (e eu estava no lugar certo na hora certa) é decupado em todos os seus níveis. A obra, que serviu de “trabalho de conclusão de curso” do American Film Institute, foi concebida e gerada durante um período conturbado na vida pessoal de Lynch. Em 1974, ele se divorciou de Peggy Reavey, a mãe de Jennifer Lynch, nascida em 1968. Por um tempo Lynch chegou a morar no set de filmagens de Eraserhead. O livro conta também o obsessivo trabalho conjunto de Lynch e o engenheiro de som Alan Splet na concepção e gravação da trilha sonora do filme.
Depois de atrair atenção do circuito alternativo com seu filme de estreia, cujos atores relativamente desconhecidos iriam permear muitas de suas obras posteriores (como Jack Nance), logo no segundo longa-metragem David Lynch já dirigiu ninguém menos que Anthony Hopkins, John Hurt, John Gielgud e Anne Bancroft. A exemplo de Eraserhead, O homem elefante (1980) também foi filmado em preto e branco. Segundo Jousse, O homem elefante “acabou sendo o segundo filme ideal para o diretor; seu maior sucesso comercial e artístico até então, elogiado pelos críticos, mas de modo algum reduzindo sua condição de cineasta cult”.
As oito indicações para o Oscar recebidas por O homem elefante (mesmo sem levar nenhum) deram cacife para Lynch “escolher o próximo projeto”. Aqui um detalhe interessante: George Lucas convidou David Lynch para dirigir O retorno de Jedi. Mas o filme seguinte de Lynch seria também o seu maior fracasso: Dune (1984), adaptação do livro de Frank Herbert. De acordo com o autor Thierry Jousse, um dos poucos saldos positivos desse trabalho consistiu no surgimento de Kyle MacLachlan, ator que marcaria presença em obras fundamentais de Lynch (Veludo azul e a série televisiva Twin Peaks).
Insatisfeito com o resultado de Dune e com a perda de controle artístico no final cut de seu terceiro longa, Lynch retornou a fazer um filme de orçamento menor e em que pudesse manter o toque autoral do começo ao fim. O resultado: a perversão de Veludo azul (1986), que marca o início da união (não só em termos de cinema) com a atriz Isabela Rosselini. Como Dorothy Vallens em Veludo azul e Perdita Durango em Coração selvagem, Isabela se tornaria uma das musas imortais da obra de Lynch (a outra sendo, é claro, Laura Dern).
Thierry Jousse não considera Coração selvagem, vencedor da Palma de Ouro em Cannes 1990, um dos melhores filmes de Lynch. A melhor cena, para ele, é a do acidente. (Não há necessidade de, aqui, me estender sobre o que penso de Wild at heart: já soterrei a película de Lynch com os mais variados adjetivos neste post.)
Jousse então faz um link entre Coração selvagem e História real. Dois road movies, cada qual a seu estilo. O primeiro, mais urbano e movido a rock’n’roll, o segundo, completamente rural e revestido de música country. A aventura de Alvin Straight, que atravessa os Estados Unidos pilotando um minitrator cortador de grama para visitar o irmão doente, representa na filmografia de Lynch uma volta às origens, quando, na década de 1950, o pequeno David vivenciou as constantes mudanças geográficas da família, por conta da profissão do pai (pesquisador de biologia vinculado ao Ministério da Agricultura), atravessando, assim, diferentes regiões estadunidenses.
Naquela época da vida, a meta de David Lynch (nascido em 1946) era tornar-se pintor. Em 1964, ele chegou a fazer uma viagem à Europa para tentar de modo infrutífero tornar-se pupilo do expressionista Oskar Kokoschka. Em 1965, de volta aos EUA, matriculou-se na Academia de Belas Artes da Pensilvânia, na Filadélfia. Ao perceber as limitações da pintura (falta de movimento e de som), comprou uma câmera 16 mm e começou a fazer os primeiros curtas, até que em 1970 entrou numa escola de cinema, a AFI (American Film Institute), em Los Angeles.
Se Jousse “quebra” a cronologia ao abordar as raízes rurais de Lynch revisitadas em História real (1999) logo após a análise de Coração selvagem (1990), em seguida focaliza os trabalhos entre esses dois filmes.
No mesmo ano em que Coração selvagem foi lançado, Lynch realizou o piloto da série televisiva Twin Peaks, projeto que teve duas temporadas e trinta episódios. Lynch dirigiu o primeiro, o último e mais quatro. [As palavras gaguejantes de Pete Martel, o personagem que descobre o corpo de Laura Palmer, até hoje ressoam em meu cérebro: “Lucy, this is Pete Martel. Put Harry on the horn.” Harry, o xerife, pega o fone e escuta estarrecido: “She’s dead... wrapped in plastic”.]
Lynch ainda viria a encerrar o assunto (ou dar mais pano para manga) com o longa-metragem Twin Peaks: Fire Walks With Me (1992). Aqui, mais uma “novidade” em termos da mudança do viés crítico. No lançamento esse filme teve recepção fria da crítica. Quase vinte anos depois, segundo Thierry Jousse, a obra vem sendo reavaliada e considerada com mais cuidado. Lynch, ao lidar com temas como incesto e puritanismo, “mergulha fundo na alma estadunidense”.
O outro produto da década de 1990 é A estrada perdida (1997), no qual, nas palavras de Jousse, Lynch tenta uma espécie de “contato hipersensorial” com a plateia. O autor realça as influências de Hitchcock nesse filme, como o clima de pesadelo de Um corpo que cai. E define Lost Highway: “Profundamente erótico, universal e ressonante. Um dos filmes mais contundentes de Lynch”.
O último capítulo do livro, com o sintomático título “Hollywood Turned Upside Down”, é dedicado a investigar Cidade dos sonhos (Mulholland Drive, 2001) e o digital Império dos sonhos (Inland Empire, 2006).
Jousse esmiúça a trajetória lynchniana iniciada com Eraserhead, alegadamente o filme preferido de John Waters. O filme que teve sua primeira exibição pública no Brasil em dezembro de 2003 (e eu estava no lugar certo na hora certa) é decupado em todos os seus níveis. A obra, que serviu de “trabalho de conclusão de curso” do American Film Institute, foi concebida e gerada durante um período conturbado na vida pessoal de Lynch. Em 1974, ele se divorciou de Peggy Reavey, a mãe de Jennifer Lynch, nascida em 1968. Por um tempo Lynch chegou a morar no set de filmagens de Eraserhead. O livro conta também o obsessivo trabalho conjunto de Lynch e o engenheiro de som Alan Splet na concepção e gravação da trilha sonora do filme.
Depois de atrair atenção do circuito alternativo com seu filme de estreia, cujos atores relativamente desconhecidos iriam permear muitas de suas obras posteriores (como Jack Nance), logo no segundo longa-metragem David Lynch já dirigiu ninguém menos que Anthony Hopkins, John Hurt, John Gielgud e Anne Bancroft. A exemplo de Eraserhead, O homem elefante (1980) também foi filmado em preto e branco. Segundo Jousse, O homem elefante “acabou sendo o segundo filme ideal para o diretor; seu maior sucesso comercial e artístico até então, elogiado pelos críticos, mas de modo algum reduzindo sua condição de cineasta cult”.
As oito indicações para o Oscar recebidas por O homem elefante (mesmo sem levar nenhum) deram cacife para Lynch “escolher o próximo projeto”. Aqui um detalhe interessante: George Lucas convidou David Lynch para dirigir O retorno de Jedi. Mas o filme seguinte de Lynch seria também o seu maior fracasso: Dune (1984), adaptação do livro de Frank Herbert. De acordo com o autor Thierry Jousse, um dos poucos saldos positivos desse trabalho consistiu no surgimento de Kyle MacLachlan, ator que marcaria presença em obras fundamentais de Lynch (Veludo azul e a série televisiva Twin Peaks).
Insatisfeito com o resultado de Dune e com a perda de controle artístico no final cut de seu terceiro longa, Lynch retornou a fazer um filme de orçamento menor e em que pudesse manter o toque autoral do começo ao fim. O resultado: a perversão de Veludo azul (1986), que marca o início da união (não só em termos de cinema) com a atriz Isabela Rosselini. Como Dorothy Vallens em Veludo azul e Perdita Durango em Coração selvagem, Isabela se tornaria uma das musas imortais da obra de Lynch (a outra sendo, é claro, Laura Dern).
Thierry Jousse não considera Coração selvagem, vencedor da Palma de Ouro em Cannes 1990, um dos melhores filmes de Lynch. A melhor cena, para ele, é a do acidente. (Não há necessidade de, aqui, me estender sobre o que penso de Wild at heart: já soterrei a película de Lynch com os mais variados adjetivos neste post.)
Jousse então faz um link entre Coração selvagem e História real. Dois road movies, cada qual a seu estilo. O primeiro, mais urbano e movido a rock’n’roll, o segundo, completamente rural e revestido de música country. A aventura de Alvin Straight, que atravessa os Estados Unidos pilotando um minitrator cortador de grama para visitar o irmão doente, representa na filmografia de Lynch uma volta às origens, quando, na década de 1950, o pequeno David vivenciou as constantes mudanças geográficas da família, por conta da profissão do pai (pesquisador de biologia vinculado ao Ministério da Agricultura), atravessando, assim, diferentes regiões estadunidenses.
Naquela época da vida, a meta de David Lynch (nascido em 1946) era tornar-se pintor. Em 1964, ele chegou a fazer uma viagem à Europa para tentar de modo infrutífero tornar-se pupilo do expressionista Oskar Kokoschka. Em 1965, de volta aos EUA, matriculou-se na Academia de Belas Artes da Pensilvânia, na Filadélfia. Ao perceber as limitações da pintura (falta de movimento e de som), comprou uma câmera 16 mm e começou a fazer os primeiros curtas, até que em 1970 entrou numa escola de cinema, a AFI (American Film Institute), em Los Angeles.
Se Jousse “quebra” a cronologia ao abordar as raízes rurais de Lynch revisitadas em História real (1999) logo após a análise de Coração selvagem (1990), em seguida focaliza os trabalhos entre esses dois filmes.
No mesmo ano em que Coração selvagem foi lançado, Lynch realizou o piloto da série televisiva Twin Peaks, projeto que teve duas temporadas e trinta episódios. Lynch dirigiu o primeiro, o último e mais quatro. [As palavras gaguejantes de Pete Martel, o personagem que descobre o corpo de Laura Palmer, até hoje ressoam em meu cérebro: “Lucy, this is Pete Martel. Put Harry on the horn.” Harry, o xerife, pega o fone e escuta estarrecido: “She’s dead... wrapped in plastic”.]
Lynch ainda viria a encerrar o assunto (ou dar mais pano para manga) com o longa-metragem Twin Peaks: Fire Walks With Me (1992). Aqui, mais uma “novidade” em termos da mudança do viés crítico. No lançamento esse filme teve recepção fria da crítica. Quase vinte anos depois, segundo Thierry Jousse, a obra vem sendo reavaliada e considerada com mais cuidado. Lynch, ao lidar com temas como incesto e puritanismo, “mergulha fundo na alma estadunidense”.
O outro produto da década de 1990 é A estrada perdida (1997), no qual, nas palavras de Jousse, Lynch tenta uma espécie de “contato hipersensorial” com a plateia. O autor realça as influências de Hitchcock nesse filme, como o clima de pesadelo de Um corpo que cai. E define Lost Highway: “Profundamente erótico, universal e ressonante. Um dos filmes mais contundentes de Lynch”.
O último capítulo do livro, com o sintomático título “Hollywood Turned Upside Down”, é dedicado a investigar Cidade dos sonhos (Mulholland Drive, 2001) e o digital Império dos sonhos (Inland Empire, 2006).
Leitor, conte as fotos acima. Sim. Toda a filmografia de Lynch cabe em duas mãos. Dez filmes que mudaram o cinema para sempre, debatidos com maestria por quem entende do riscado.
JOUSSE, Thierry. David Lynch. Paris: Cahiers du cinéma Sarl, 2010.
Tradução (do francês para o inglês) de Sarah Robertson e Imogen Forster.
JOUSSE, Thierry. David Lynch. Paris: Cahiers du cinéma Sarl, 2010.
Tradução (do francês para o inglês) de Sarah Robertson e Imogen Forster.
Muito bom!! No último capítulo desse livro o Thierry Jousse fala que Mulholland drive da início a uma terceira fase na carreira do Lynch, o que você acha disso? O que realmente mudou dos últimos filmes em relação aos primeiros? Acho Inland Empire tão bizarro quanto Eraserhead e todos aqueles primeiros curtas do Lynch, acho que agora, nesses últimos filmes, o que é realmente novidade são as cores e a crítica à indústria cultural, enfim o que você enxerga além disso?
ResponderExcluirEm primeiro lugar, muitas vezes as pessoas (leia-se, os biógrafos, os críticos de cinema, os metidos a entendidos) têm uma irresistível e até certo ponto insondável necessidade de dividir filmografias, discografias etc. em "fases". De minha parte, ao analisar os filmes de David Lynch, um cineasta pouco prolífico, dividiria a filmografia dele em 10 fases. Uma fase por filme, que tal? Estou, até hoje, esperando a 11ª fase da carreira dele. Falando sério, até onde eu enxergo (para usar o termo que você usou) não existe novidade nenhuma nas cores nem na crítica à indústria. Simplesmente, é o tipo de diretor que é capaz de desconcertar e permitir múltiplas leituras.
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