sábado, março 02, 2024

Raça brava

 


Com roteiro original e diferente, Raça brava é um faroeste sob medida para quem ama aventura, romance e, de quebra, a raça Hereford.



Um dos principais personagens do filme é Vindicator, jovem touro da raça Hereford (cuja pelagem no RS é chamada de "pampa"), recém-chegado aos EUA trazido de navio, em companhia das proprietárias inglesas, a pertinaz viúva Martha Evans (a grande atriz irlandesa Maureen O'Hara) e a filha dela, Hilary (Juliet Mills).

Estamos na Exposição de Criadores de Gado de Corte de St. Louis, em 1884.

De temperamento manso, o touro mocho é uma grande novidade em terras americanas. Por essas qualidades raras, é vendido como reprodutor no leilão por 2 mil dólares. Mas o intermediário que fez o lance vencedor tem segundas intenções com Martha, que, revoltada com o assédio, decide levar o touro pessoalmente ao comprador original.

Para isso, vai contar com a ajuda de Sam Burnett (James Stewart), um caubói muito competente, porém muito chegado a se meter em confusões e brigas. Para ajudar um amigo que se machucou no trabalho e não obteve auxílio financeiro do patrão, Sam aceita o suborno do outro interessado que havia perdido o leilão, que oferece 1000 dólares para ter o touro. Sam pega o dinheiro e dá ao amigo, mas se vê numa enrascada, entre sua admiração por Martha e a situação em que se meteu.

São muitas as peripécias que esses quatro personagens  mãe e filha, caubói e o adorável Vindicator  vão enfrentar no caminho até o Texas, no rancho de Alexander Bowen (Brian Keith), teimoso criador da raça Longhorn.



O sonho de Martha é que as qualidades da raça Hereford sirvam como ferramentas para melhorar as raças locais, e essa ideia de fazer o melhoramento genético acaba influenciando o rústico Sam Burnett, que, por sinal, nesse processo inevitavelmente também se apaixona pela irresistível (e ruiva) Martha.



Quando Sam, Martha, Hilary e Vindicator estão cruzando por um desfiladeiro, uma boiada de longhorns vem no sentido contrário, conduzida por Jamie Bowen (Don Galloway), mas um ladrão está de tocaia e vai causar um estouro da boiada.



O fato prepara a fase principal do filme, que contrapõe as ideias retrógradas de Alexander Bowen e as inovadoras de Martha. O fato de o rabugento rancheiro também se apaixonar por Martha permite algumas ótimas cenas cômicas.




 Dirigido pelo especialista em aventura Andrew McLaglen, o filme tem como curiosidade no elenco o menino Larry Domasin (o amigo de Elvis Presley em O seresteiro de Acapulco) que interpreta um dos garotos que moram na fazenda.

Brian Keith está ótimo como Bowen, o rancheiro cabeça-dura que tenta conquistar Martha, mas quem lidera mesmo o elenco são os protagonistas, Maureen O'hara, que contracenou com John Wayne em vários filmes, como Depois do vendaval, e tinha com ele uma forte amizade; e James Stewart (astro de Janela indiscretaNúpcias de escândalo e A felicidade não se compra, para citar apenas três). 

Uma das partes mais bonitas do filme, que mostra a paixão pela raça Hereford, é quando Vindicator, já na nova estância, desaparece na nevasca.

Bowen, o teimoso criador de Longhorns, por bravata, e certo de que Vindicator não cobriu nenhuma de suas vacas, promete a Sam que, se aparecerem bezerros híbridos, ele pode ficar com eles e iniciar uma criação nova.

Quando chega setembro, na estação que nasce a terneirada, Sam procura, no meio dos capões de mato, embaixo das macegas, os bezerros recém-nascidos, ansioso por achar algum filho de Vindicator.




A importância deste filme na história do faroeste e de Hollywood é festejada em um post comemorativo do Museu Sid Richardson, que ressalta mais uma curiosidade: a trilha sonora é feita por ninguém menos que John Williams, que na década seguinte faria a trilha de Tubarão.


Mas o ponto mais forte do filme é justamente o roteiro bem construído, que mescla aventura e romance, com bons diálogos e falas espirituosas, focalizando com originalidade o aprimoramento genético do rebanho com o uso da raça Hereford.

quinta-feira, fevereiro 29, 2024

Vamos a matar, companheiros!

 


Lançado no Brasil com o esdrúxulo título Os pistoleiros da fronteira, este filme de Sergio Corbucci é o terceiro do diretor com Franco Nero no elenco.

O primeiro foi Django (1966) e o segundo, Il mercenario (Os violentos vão para o inferno, 1968).




Neste Compañeros (a.k.a. Vamos a matar, compañeros, 1970), Franco Nero é o "Sueco" Yodlaf Peterson, mercenário que cria uma improvável amizade e vira "buddy" de El Vasco (vivido com muito humor pelo ator cubano Tomás Milián), revolucionário mexicano. O filme tem como interesse romântico a bela Iris Berben, que dá vida à estudante idealista Lola.




Outra presença constante e importante no filme é o pegajoso refrão da música-tema. Diga-se de passagem, a envolvente trilha sonora é composta por ninguém menos que Enio Morricone.

Em essência, Compañeros involucra todas as ideias antifascistas e revolucionárias de Corbucci, que constrói, embora em tom de comédia, um filme de cunho filosófico e que dá margem a discussões.




O discurso do professor Santos (Fernando Rey) sobre violência em meio ao estarrecido grupo de guerrilheiros é uma sequência chave para entender o quanto há de conteúdo nesse filme aparentemente feito "apenas" para entreter.

É esse aspecto do cinema de Corbucci que Tarantino salienta em Django & Django (2022). Luca Rea, o diretor deste documentário disponível na Netflix, explica como foi o processo de elaborar o documentário e entrevistar Tarantino nesta reportagem.




Sob certos prismas, as divertidas peripécias de Os pistoleiros da fronteira (argh!) servem de prenúncio dos rumos que a carreira de Corbucci vai enveredar, a comédia, dirigindo filmes com a dupla de atores cômicos, Terence Hill e Bud Spencer.


Vamos a matar, compañeros
Música: Enio Morricone
Letra: Sergio e Bruno Corbucci

Levantando al aire los sombrerosVamos a matar, vamos a matar, compañerosPintaremos de rojo sol y cieloVamos a matar, vamos a matar, compañeros
Hay que ganar corriendo al pistoleroVamos a matar, vamos a matar, compañerosHay que morir persiguiendo al guerrilleroVamos a matar, vamos a matar, compañeros
Luchando por el hambre sin dineroVamos a matar, vamos a matar, compañerosEstudiantes, rebeldes, bandolerosVamos a matar, vamos a matar, compañerosHermanos somos reyes y obrerosVamos a matar, vamos a matar, compañeros



 

terça-feira, fevereiro 27, 2024

Django

 


Franco Nero encarna Django, este improvável herói do Oeste dos EUA que simboliza o melhor do cinema de Sergio Corbucci. Na abertura do filme, um homem arrasta pesadamente um caixão em meio a terrenos áridos e lamacentos, ao som da canção de Luis Bacalov, entoada por Rocky Roberts.

Django (1966) é um faroeste spaghetti que se destaca dos demais pela originalidade das cenas e pelo modo como o personagem desenvolve a sua trajetória.

A grande sacada é o caixão que ele arrasta por onde vai, em cuja tampa consta uma cruz.



A curiosidade é despertada naturalmente por quem vê o esquife.

O que haverá lá dentro?

Um cadáver?

Ao ser indagado sobre isso após as escaramuças iniciais, recém-chegado a um saloon, o misterioso personagem responde que sim, há uma pessoa morta dentro do caixão.

E o nome dela é

Django.

Como um morto-vivo, um zumbi sem alma, este pistoleiro devassa esse território sem lei.

Sem alma e com lama.

A lama é a marca registrada deste filme de Sergio Corbucci, cineasta reverenciado por Tarantino no documentário Django & Django, prato cheio para cinéfilos e amantes de bangue-bangue, disponível no streaming.



Diga-se de passagem, Quentin Tarantino já havia escancarado essa admiração ao realizar o filme Django livre.

O documentário assinado por Luca Rea enaltece as qualidades pouco reconhecidas da obra de Corbucci, relegada a segundo plano quando comparada à de seu xará, Sergio Leone. Django & Django, por meio de entrevistas com Franco Nero, Ruggero Deodato e Tarantino, desperta a curiosidade do espectador para conferir a filmografia de Corbucci.

Foi isso que aconteceu comigo.

Encomendei na Zílvia Locadora filmes do diretor, e havia um punhado de seus filmes mais importantes, entre eles o seriíssimo Django e o engraçado Vamos a matar, companheiros (no título brasileiro, Pistoleiros da fronteira). 

De quebra, o dvd de Django traz uma entrevista com Franco Nero. O ator casado com Vanessa Redgrave conta que foi escolhido por sua boa aparência. Os realizadores levaram fotos de três atores ao distribuidor, que escolheu a foto de Nero.

Na época, Franco Nero aspirava a se tornar um ator de filmes "sérios", era um ator com treinamento shakespeariano. Mas foi aconselhado por amigos, entre eles, o famoso cineasta Elio Petri, a aceitar o trabalho.

Nero também relata que as filmagens foram interrompidas porque o filme não tinha roteiro. Provavelmente as peripécias que envolvem o roubo do ouro no forte vieram desse esforço para dar alguma consistência à narrativa.

Mas o que permanece em Django é a personalidade misteriosa do herói, sua relação estranha com Maria (Loredana Nusciak), a magnetizante mulher que ele salva e depois desdenha.



Quem assiste aos extras do dvd?

Só um movie freak.

Essas histórias contadas por Franco Nero só causam deleite a quem tem o cinema nas veias, alguém que passou a infância indo às matinês de sábado em sua cidade natal, solitariamente em sua poltrona (?), assistindo a trashs e faroestes e filmes de qualquer gênero. 








sexta-feira, fevereiro 23, 2024

O pagador de promessas


 O auge do cinema brasileiro aconteceu em 1962, quando O pagador de promessas inscreveu o Brasil na lista dos países premiados com a Palma de Ouro em Cannes.

Foi a primeira e única vez que o cinema brasileiro chegou aos píncaros de um festival dessa importância.

Com direção de Anselmo Duarte, diálogos de Dias Gomes (de sua peça teatral homônima) e atuações de Leonardo Villar e Glória Menezes, O pagador de promessas continua sendo o filme brasileiro que recebeu a honraria mais elevada.

No site oficial do Festival de Cannes, uma página relembra todos os vencedores da década de 1960.

Como sabemos, nenhum filme brasileiro jamais abiscoitou o Oscar de Melhor Filme Internacional.

Apenas 4 foram selecionados entre os 5 finalistas.

São eles:

O pagador de promessas, de Anselmo Duarte (cerimônia do Oscar de 1963)

O quatrilho, de Fábio Barreto (cerimônia do Oscar de 1996)

O que é isso, companheiro?, de Bruno Barreto (cerimônia do Oscar de 1998)

Central do Brasil, de Walter Salles (cerimônia do Oscar de 1999)

Diga-se de passagem, na cerimônia do Oscar de 1960, um filme falado em português, com roteiro adaptado de uma peça teatral brasileira, encenado por um elenco de atores e atrizes preponderantemente brasileiros e rodado no Brasil, mas dirigido por um cineasta francês, ganhou o Oscar de Melhor Filme Internacional e também a Palma de Ouro em Cannes em 1959.

Estamos falando de Orfeu negro, de Marcel Camus, com roteiro inspirado na peça de Vinicius de Moraes, Orfeu da Conceição.

Uma pena (na verdade, a palavra certa seria "sacanagem") que o filme Orfeu negro não tenha concorrido ao Oscar pelo Brasil, já que representou a nossa realidade e a nossa cultura. Mas pavimentou o caminho para que, três anos depois, um filme com diretor brasileiro, elenco brasileiro, texto brasileiro e DNA brasileiro, mas com a belíssima fotografia em preto e branco de um britânico (Chick Fowle), o Brasil enfim levasse a Palma de Ouro em Cannes. 

Tudo tem seu tempo, e a hora e vez do Brasil veio com temas brasileiríssimos, como a incompreensão, o preconceito, a intolerância...


A obra-prima da dramaturgia brasileira, escrita por Dias Gomes, encenada pela primeira vez em 1960, O pagador de promessas, resume a essência do que nós somos.

Zé do Burro é o brasileiro, sem tirar nem pôr, é impossível que um brasileiro não se identifique com este personagem que carrega uma pesada cruz para pagar uma promessa.

Todo brasileiro é teimoso, convicto, tem uma ideia fixa como Zé do Burro.

Ele sofre enxovalhos como todo brasileiro.

Ele é traído como todo brasileiro.

Ele não desiste nunca, como todo brasileiro.

Ele paga suas promessas, como todo bom brasileiro.



Uma conjunção de escolhas felizes de Anselmo Duarte construiu a trajetória de um filme vencedor: 90 minutos de duração, diálogos cortantes, atuações hipnotizantes e, é claro, cenários que veiculam cinematograficamente o que no palco só poderia ser imaginado, a mistura do sertão com a urbe, a ingenuidade de um matuto em meio ao fervilhante cadinho cultural de Salvador, mescla da África com Europa, terreiros e igrejas, candomblé e cristianismo, capoeira e literatura de cordel.

Além de Leonardo Villar no papel de Zé do Burro e de Glória Menezes no papel de Rosa, o forte elenco traz Dionísio Azevedo (Padre Olavo), Geraldo Del Rey (Bonitão), Norma Benguell (Marly), Othon Bastos (repórter) e Antonio Pitanga (Coca). A igreja que aparece no filme é a do Santíssimo Sacramento, no Pelourinho, em Salvador.


Esta página do site do Itaú Cultural comenta a importância de O pagador de promessas para o teatro e o cinema brasileiros e traz citações do próprio Dias Gomes: 

“COMO ZÉ DO BURRO, CADA UM DE NÓS TEM SUAS PROMESSAS A PAGAR. A DEUS OU AO DEMÔNIO, A UMA IDEIA. EM UMA PALAVRA, A NOSSA PRÓPRIA NECESSIDADE DE ENTREGA, DE AFIRMAÇÃO. E CADA UM DE NÓS TEM PELA FRENTE O SEU ‘PADRO OLAVO’. ELE NÃO É UM SÍMBOLO DE INTOLERÂNCIA RELIGIOSA, MAS DE INTOLERÂNCIA UNIVERSAL. VESTE BATINA, PODIA VESTIR FARDA OU TOGA. É PADRE, PODIA SER DONO DE UM TRUSTE.”


Por sua vez, em sua concisa e relevante obra Teatro brasileiro moderno, Décio de Almeida Prado escreveu sobre a peça teatral O pagador de promessas:

Todo bom escritor tem o seu instante de graça, possui a sua obra-prima, aquela que congrega numa estrutura perfeita os seus dons mais pessoais. Para Dias Gomes essa hora de inspiração veio-lhe no dia que escreveu O pagador de promessas. Em torno de Zé-do-Burro — herói ideal, por unir o máximo de caráter ao mínimo de inteligência, naquela zona fronteiriça entre o idiota e o santo — o enredo espalha a malícia e a maldade de uma capital como Salvador, mitificada pela música popular e pela literatura, na qual o explorador de mulheres se chama inevitavelmente Bonitão, o poeta popular, Dedé Cospe-Rima, e o mestre de capoeira, Manuelzinho Sua Mãe. (...)

A história já é por si só comovente mas assume pela singeleza com que é contada a feição de um símbolo, algo que não se deixa reduzir com facilidade a explicações racionais menores. A aura de poesia, dá-lhe a amplitude de uma fábula, de um apólogo, quase de um mito - o sacrifício do puro, do inocente, daquele que não provou do fruto do saber-, com conotações religiosas e ritualísticas. (PRADO, 1988, p.90).

É um filme para ser revisitado e cultuado, mas também uma parada obrigatória para todo brasileiro que pretende se inserir na categoria de "cinéfilo". 

Se você ainda não viu, faça a si mesmo a promessa de assistir ao mais relevante filme brasileiro até a presente data.

Quem mora em Passo Fundo e região, tem uma vantagem: a obra-prima do cinema nacional pode ser encontrada no acervo da Zílvia Locadora. 



sexta-feira, fevereiro 16, 2024

Pobres criaturas


Com roteiro do australiano Tony McNamara e direção do grego Yorgos Lanthimos, Pobres criaturas (Poor Things) é uma fábula feminista com óbvias influências da obra de Mary Shelley, Frankenstein
A fonte original adaptada por McNamara é o romance Poor Things: Episodes from the Early Life of Archibald McCandless M.D. Scottish Public Health Officer, de Alasdair Gray, publicado a primeira vez em 1992, por sua vez, fortemente influenciado pelo clássico shelleyano.

Não é preciso ser um gênio em literatura universal para perceber esse vínculo logo ao ver o trailer do filme. A propósito, a revista Time abordou a ligação entre o filme Pobres criaturas e o feminismo no clássico Frankenstein nesta reportagem.

Godwin Baxter, cientista sequelado, mas brilhante (Willem Defoe), faz um experimento bizarro: encontra o cadáver de uma jovem suicida grávida, retira o cérebro da neném, implanta na mulher adulta, e em seguida a ressuscita.

Para acompanhar passo a passo a evolução de Bella (Emma Stone), contrata Max (Ramy Youssef), estudante de Medicina que, inevitavelmente, se apaixona pela destrambelhada, porém deslumbrante jovem.

Dia após dia, anota a evolução da moça, o vocabulário crescente, a inaptidão social.

Quando Bella dá um passo importante em sua vida sexual (aprende a se masturbar e a ter orgasmos), o Dr. Godwin resolve casá-la com Max. Para fazer o contrato, entra em cena um inescrupuloso advogado, o dândi Duncan Wedderburn (Mark Ruffalo), que acaba se interessando por conhecer quem é essa misteriosa pessoa.

A partir daí, o filme envereda por um caminho em que Bella assume o protagonismo e as rédeas de seu destino.

A jornada de autoconhecimento de Bella vai passar por muitas etapas.



Em meio a viagens a países exóticos, aventuras e desventuras, a ingenuidade vai dando lugar à experiência e ao entendimento de como o mundo funciona.

Um destaque é a viagem a Portugal.
Em Lisboa, Bella se depara com uma fadista a tocar guitarra portuguesa e a entoar "O quarto". Atônita, de olhos vidrados, Bella escreve um novo capítulo dessa relação afetiva de Hollywood com o fado, fortalecida com "A canção do mar", de Dulce Pontes, no filme As duas faces de um crime.

Nesta entrevista no programa Bairro das artes, Carminho, a cantora lusa que aparece em Pobres criaturas, explica como foi a experiência.


O filme tem ótimos momentos de comédia, com atuações consistentes. 

Perde um pouco o ritmo na segunda metade, talvez menos por culpa de Yorgos (cujo filme A favorita, de 2018, foi sucesso de crítica e público, faturando sete vezes o valor do orçamento) e mais dos tempos em que vivemos. 

Hoje em dia, a metragem dos filmes está numa fase mais elástica do que antigamente. Diretores se apaixonam por suas obras e as estendem ao máximo, sem que ninguém ouse os repreender ou ordenar sábios e bem desejados cortes.

Pobres criaturas é um bom entretenimento, com uma forte crítica social, principalmente a nós... limitados, ridículos e patéticos seres do sexo masculino.




domingo, janeiro 28, 2024

Anatomia de uma queda


 Fiquei pensando uma palavra que definisse o filme vencedor da Palma de Cannes e me veio à mente o adjetivo "ambicioso".

O trabalho de Justine Triet não é menos que isso, começando pela metragem de 2h36m. 

Outro detalhe que torna o filme ambicioso é o fato de ser uma espécie de estudo de personagem às avessas, afinal de contas, o personagem estudado nunca aparece vivo.

A primeira cena em que ele aparece está estirado na neve avermelhada com os miolos arrebentados e sangue coagulado no crânio.

Outra característica que torna o filme ambicioso é o fato de ser um thriller sem um detetive formal, na verdade o detetive é o espectador.

As pistas vão sendo fornecidas pelas cenas em tempo real, paulatinamente, e depois, em flashbacks, na fala das personagens sobreviventes à queda.

Snoop é o cão que merecia um Oscar de melhor atuação. Ao redor dele o filme se constrói, ele tem uma relação especial com os três personagens principais, o garoto Daniel (Milo Machado Granier), a mãe dele, Sandra (Sandra Hüller) e a pessoa que morreu na queda, o pai de Daniel e marido de Sandra, Samuel (Samuel Theis).




Com Daniel, Snoop é o protetor e maior companheiro. O menino de 11 anos tem uma deficiência visual decorrente de um atropelamento, aos 6 anos. Mas ao lado de Snoop, Daniel se sente confiante e amado o tempo inteiro, explorando a paisagem nevada em dias de sol.

O cenário é uma cidadezinha da França, a cidade natal de Samuel. O casal mora com o filho e o cão em uma casa retirada, na zona rural de Grenoble. Sandra é escritora e tradutora, Samuel é professor e um aspirante a escritor, que tem boas ideias, escreve bem, mas não consegue terminar os romances devido a bloqueios.

A investigação sobre a queda se dá por meio da polícia, que vai fazendo induções e deduções, coletando indícios, fazendo descobertas. Passo a passo, o que poderia ser um mero acidente se torna uma morte suspeita que acaba em um tribunal, com Sandra sendo acusada de homicídio.

A maneira como a diretora Justine Triet conduz a trama é ambiciosa pelos motivos citados, ela confia que os espectadores vão aceitar a narrativa não linear, o vaivém na linha do tempo, a angústia crescente de Sandra e, principalmente, de David, a maior vítima de toda a situação.


O menino que está tentando processar o luto começa a questionar a inocência da mãe e se perguntar se ela está dizendo a verdade.

De quebra, no tribunal, se vê obrigado a saber detalhes íntimos sobre a vida dos pais.

Pela sensação de opressão crescente e dos sentimentos de culpa que permeiam os personagens, Anatomia de uma queda fez um intertexto com outro filme ambicioso, pesado e dramático, também sobre um homem angustiado, Manchester à beira-mar.

Ser ambicioso per se não é algo ruim.

O filme de Justine Triet em muitos aspectos se mantém íntegro e passa uma honestidade que o filme de Kenneth Lonergan na época não me transmitiu.

O que diferencia o filme de Triet são dois fatores: um humor que corre por baixo da superfície, críticas sociais muito discretas, sem levantar bandeiras ou coisas do tipo, um humor que alivia tanto sofrimento que as personagens vivenciam. E, claro, todas as cenas de ternura com o cão Snoop, interpretado pelo border collie Messi. O expressivo Messi inclusive ganhou a Palm Dog, prêmio não oficial que existe há 22 anos no Festival de Cannes. Este ano foi um dos mais disputados e Messi acabou vencendo.




 





quinta-feira, janeiro 04, 2024

Agradecimentos e desculpas

 


Quarto longa-metragem de Lisa Aschan“Tack och förlåt” (Thank You, I'm Sorry) recebeu em português o pouco atraente título Agradecimentos e desculpas.
Os distribuidores deveriam se desculpar pela falta de inspiração.

Em contrapartida, as pessoas interessadas em ver um filme diferente, com idioma musical, ansiosas por mergulhar numa história sobre relações familiares, perdas, lavação de roupa suja, verdades entaladas nas gargantas, mentiras desmascaradas, misto de ternura com brutalidade, só têm a agradecer à Netflix e à diretora Lisa Aschan.

Diálogos muito bem construídos deixam florescer o talento de um elenco enxuto, mas soberbo.

Mágoas soterradas vêm à tona na vida de Sara (Sanna Sundqvist), quando, com um filho pequeno e mais um a caminho, o marido dela avisa que vai embora. No dia seguinte, o que parecia ruim fica ainda pior e a vida de Sara é posta em xeque.

Com a barriga no ápice, ela desce degraus de costas enquanto procura reformular seus conceitos. Nesse processo, terá de conviver com Helen (Ia Langhammer), a sogra um tanto invasiva, e Linda (Charlotta Björk), a irmã mais velha com quem havia cortado relações.

Outros personagens são o namorado abusivo de Linda e o pai das duas irmãs, que mora em uma espécie de casa geriátrica.



A intricada rede afetiva é entretecida com delicadeza pela premiada diretora Lisa Aschan, que tem no currículo She Monkeys (2011), White People (2015) e Call Mum! (2019).

O bem trabalhado roteiro de Marie Østerbie culmina em um filme sueco, demasiadamente sueco, com tudo que o cinema sueco tem de bom, inclusive a tal "profundidade" que muita gente sentiu falta em Rebel Moon.

Tenso do início ao fim, Agradecimentos e desculpas envolve o espectador em um tipo de agonia, uma ansiedade, simbolizada na criança prestes a nascer: a angústia de sermos humanos, demasiadamente humanos, guardadores de rancores, com sérias dificuldades para perdoar e virar a página, para agradecer e pedir desculpas...


terça-feira, janeiro 02, 2024

Rebel Moon


Sempre que penso em escrever algo sobre o cinema de Zack Snyder me vem à mente uma palavrinha da língua inglesa: self-indulgement.

Essa palavrinha, além de bonita e chique, exige do tradutor algo mais que uma solução fácil. 

Na categoria de dificuldade para traduzir, enquadra-se como "tricky".

A letra de uma canção de Lulu Santos me vem à mente quando me lembro da palavra "self-indulgement".


Tempos modernos

Eu vejo a vida melhor no futuro

 Eu vejo isso por cima de um muro de hipocrisia

Que insiste em nos rodear

Eu vejo a vida mais clara e farta

Repleta de toda satisfação que se tem direito

Do firmamento ao chão


Eu quero crer no amor numa boa

Que isso valha pra qualquer pessoa

Que realizar a força que tem uma paixão

Eu vejo um novo começo de era

De gente fina, elegante e sincera

Com habilidade pra dizer mais sim do que não


Hoje o tempo voa, amor

Escorre pelas mãos

Mesmo sem se sentir

Não há tempo que volte, amor

Vamos viver tudo que há pra viver

Vamos nos permitir


Zack Snyder é o tipo do cara que, mesmo sem conhecer a canção de Lulu Santos, vive se permitindo fazer filmes assim, self-indulging.

E digo mais. Eu sou o tipo do cinéfilo que se permite assistir a filmes de Zack Snyder pelo puro prazer de assisti-los.

Ficar julgando um filme de Zack Snyder com palavras rasas é algo surreal como Sucker Punch, outro filme de Zack Snyder, talvez o mais self-indulging de todos os filmes, com o elenco mais delicioso de todos os tempos.

Eis que a discussão sobre Rebel Moon empacou numa outra palavrinha, esta da língua portuguesa. Você lê os comentários do honorável público sobre o filme e se depara em 7 a cada 10 com variações desta palavra.

"Raso". 

Até o fato de essa palavra se repetir parece uma certa falta de profundidade, ao menos por parte desses pseudocríticos de araque de plantão.

Em se tratando de algo como arte, o que é raso e o que é profundo varia conforme a percepção de cada um.

Às vezes, a profundidade pode estar oculta no que aparenta ser "raso".

"Cópias" podem ser encaradas como influências e citações ou homenagens.

Mas, entrando no mérito da questão, acredito que, em seu novíssimo filme Rebel Moon, disponível na Netflix, Zack Snyder não tentou ser profundo. Tentou ser ele mesmo.

E não há maior mérito a um diretor autoral.

Ele não é o tipo de pessoa que a toda hora tenta chamar atenção para si mesmo, dizendo: "Olhem como sou profundo".

Se você quiser posar de cinéfilo metido a profundidades, assista aos filmes de Ingmar Bergman e Fellini.

Escreva sobre eles.

Não assista ao novo do Zack Snyder só para malhar.

E se quiser malhar, não seja "raso" na escolha dos adjetivos, procure embasar melhor o seu texto, com uma resenha de meio, começo e fim.




 


sexta-feira, dezembro 15, 2023

O lume de Sidney Lumet: cinco grandes filmes

 Sidney Lumet (1924-2011) é um diretor que admiro, mas que não entrou na minha lista do TOP TEN DIRETORES FALECIDOS

E por que ele não entrou?

Por que uma lista de TOP TEN é um recorte bem reduzido para quem gosta de cinema, pode crer.

E porque para entrar no TOP TEN diversos tipos de sensações precisam ser levadas em conta. 

Filmes do tal diretor devem provocar reações de várias naturezas, como emocionais, táteis, auditivas, intelectuais...

Já declarei outras vezes que muitos diretores despertam meu intelecto, mas não tocam meu coração.

Outros conseguem fazer isso com um ou dois filmes, mas para entrar no TOP TEN, tem que ser algo recorrente.

Enfim, tudo isso para me desculpar com o Lumet, porque embora ele mereça estar no TOP TEN de qualquer cinéfilo que se preze, no meu caso está "apenas" no meu TOP TWENTY.

É um deleite esmiuçar a carreira dele.

Tenho assistido a vários este ano, todos retirados no acervo da Zílvia Locadora de Passo Fundo.

A seguir uma pincelada sobre cinco grandes filmes representativos de sua intensa filmografia:

LONGA JORNADA NOITE ADENTRO (1962)


Uma das características mais marcantes da obra de Lumet (sim, afinal, alguém aí duvida que ele seja um cineasta autoral?) é a íntima relação com o teatro e com os ensaios dos atores.

Lumet baseia seu trabalho nesse contato com os atores, em explorar o talento de cada um, empoderar, apoiar, ensaiar e improvisar.

É um cara de muitos verbos e poucos adjetivos.

Busca uma linguagem sem floreios, uma narrativa visceral.

Isso pulsa nesta adaptação da peça teatral de Eugene O'Neill.

Personagens tipicamente eugenianos e tipicamente lumetianos.

Densos, redondos (ou seja, no jargão da Teoria Literária, personagens surpreendentes, não lineares), com traumas a serem superados.

Para dar uma ideia da força deste filme só vou dar um depoimento bem intimista.

Estava lá eu assistindo a um filme preto e branco, sem explosões, tiros e cenas de ação na sala de vídeo, que é um dente da sala de estar sem porta de separação quando o meu caçula de 11 anos passou por ali, sem eu chamar é claro, e se deitou diante da mesa de centro e escorou os pés na gaveta dos blu-rays, como ele gosta de fazer, e se abancou no tapete preto de cerdas longas, olhos vidrados.

Como eu, embrenhou-se naquela narrativa baseada em diálogos fortes e cenas de uma força absurda.

Alô minha querida amiga de Brasília, minha maior crítica por expor meus filhos a filmes acima da idade recomendada, dessa vez, não tive culpa. 

Põe a culpa no Lumet.

VIDAS EM FUGA (1960)

Este é um dos filmes que teria sido oferecido a Elvis, mas que o Coronel Parker teria vetado.

De posse dessa informação, é difícil não imaginar como Elvis teria se saído vivendo o papel que acabou no colo de Marlon Brando.

Um músico perdido nos confins de uma cidadezinha, acaba sendo "adotado" por uma senhora mais velha, casada com um inválido.

A tensão sexual vai crescendo e o inevitável só não explode porque as cenas são delicadamente construídas e sugeridas. Mas o fato é que Val Xavier e Madame Torrance (Anna Magnani) cedem ao desejo.

Victor Jory faz um tremendo trabalho no papel de Jabe Torrance, um homem doente e amargurado que vai revelar um horrível segredo à esposa.

Elvis perdeu de trabalhar com Lumet, mas o filme seria um anticlímax para os seus fãs, que em novembro de 1960 lotaram os cinemas para assistir a Saudades de um pracinha.

O HOMEM DO PREGO (1965)

Filme sobre a desilusão, sobre o humano transformado em algo sem alma, ou será que o homem do prego, interpretado imortalmente por Rod Steiger, ainda tem alma por trás daqueles olhos vazios, aquela voz monótona, aquela aparência de zumbi e aquela rigorosa postura comercial?

Que sofrimentos passou esse homem para ter se tornado assim?

É a pergunta que Lumet responde ao espectador, da forma mais mágica e verdadeira possível.

Não é à toa que muitos consideram essa atuação a melhor de Steiger.

UM DIA DE CÃO (1975)


Um dos clássicos de Lumet, filme para ser visto e revisto. 

Primeiro filme de Lance Henriksen.

Primeiro filme de Chris Sarandon.

Oscar de Melhor Roteiro Original.

Se não viu ainda, dê um jeito de ver.

Básico no currículo de qualquer cinéfilo que se preze.

Please, faça um favor para si mesmo(a) e

assista a este filme e de preferência assista aos extras do dvd.

Cada vez que assisto a este filme eu me faço a pergunta que fiz acima na introdução ao post, e fico um pouco envergonhado por Lumet não estar no meu TOP TEN...

REDE DE INTRIGAS (1976)



Uma dobradinha admirável na sequência após Um dia de cão.

Quatro Oscars desta vez: 

Melhor Roteiro Original.

Melhor Ator

Melhor Atriz

Melhor Atriz Coadjuvante.

O fato de Lumet nunca ter ganho Oscar de Melhor Diretor mostra o quanto a categoria é competitiva,

e talvez, o quanto as decisões da Academia podem ser discutíveis.

Como prêmio de consolação, em 2004, ele ganhou um Oscar Honorário.

Mas o fato de que seu elenco foi premiado ameniza um pouco essa lacuna, pois mostra o quanto ele deixava o elenco brilhar, sem chamar atenção para si mesmo.

Uma grande qualidade para um diretor - não só de cinema, mas de qualquer atividade.










sexta-feira, setembro 01, 2023

Peckinpah em dose dupla

 O magnífico acervo de uma das poucas locadoras que ainda persiste em atividade estimula os cinéfilos a se transformarem em garimpeiros.

De uns tempos para cá, encontrei um veio ainda inexplorado por mim nessa verdadeira mina que é a Zílvia Locadora de Passo Fundo, cidade encravada no coração do Planalto Médio Gaúcho.

Estou falando da rica filmografia do lendário e genial diretor Sam Peckinpah.

Já resenhei o cult Tragam-me a cabeça de Alfredo Garcia.

Este post aborda dois outros filmes fundamentais na trajetória de Peckinpah:

Sob o domínio do medo

e

Pat Garrett & Billy The Kid.


1. SOB O DOMÍNIO DO MEDO (1971)


O jovem casal Amy e Charlie Sumner vai passar uma temporada no interior da Inglaterra, onde a moça nasceu e tem suas raízes. O americano com quem ela casou (interpretado por Dustin Hoffman, cuja carreira decolou após o estrondoso sucesso de A primeira noite de um homem) é um acadêmico e pesquisador que passa os dias enchendo um quadro negro com cálculos e mais cálculos. Cheia de vida e sensualidade, Amy (Susan George) se sente alijada e desprezada pelo impassível marido.


Um grupo de trabalhadores locais está fazendo uma obra no terreno da propriedade (pelo jeito não é só o povo brasileiro que gosta de fazer um "puxadinho").

O problema é que um dos caras já foi namorado dela anos atrás.

A violência e a tensão sexual são os focos neste filme de Sam Peckinpah inspirado no livro The Siege of Trencher's Farm (O cerco da Fazenda Trencher). 


Eles convidam o marido para caçar e então a violência, em suas mais variadas formas, se precipita de um modo avassalador.

Nos extras do dvd, Peckinpah conta detalhes sobre a produção e a decisão sobre mudar o título para Straw Dogs. Os extras também trazem entrevistas interessantíssimas com Dustin Hoffman e Susan George.


Em tempo: no Brasil Straw Dogs foi lançado como Sob o domínio do medo e em Portugal, Cães de palha.



2. PAT GARRETT & BILLY THE KID (1973) VERSÃO DO DIRETOR




O filme segue a relação entre dois amigos que se separam, após muitos anos de camaradagem e vida desregrada. Tudo muda quando Pat Garrett se torna um xerife e pede para Billy The Kid ir embora para outras plagas.

Billy, porém, não é o tipo de sujeito que se intimida.

O impasse que se instaura é o background perfeito para Peckinpah realizar uma obra-prima estética e formal.




Críticas têm sido feitas aos protagonistas que teriam deixado de imprimir profundidade a seus personagens. James Coburn encarna um Pat Garrett implacável e Kris Kristofferson, um Billy The Kid não menos implacável, com a diferença de ser mais simpático e caloroso como ser humano.

A atuação de Bob Dylan também motivou críticas pela simplicidade e economia, mas também seria querer demais do bardo, que criou clássicos para a trilha.

A genialidade de Sam Peckinpah salta aos olhos - e ouvidos - quando no meio de um faroeste começa a tocar uma canção singela, que se tornaria um clássico da música pop, gravado por Guns N'Roses 



e Zé Ramalho



, entre outros artistas de peso.

E o pasmado espectador se dá conta de quem inventou a arte de mesclar música pop com imagens. Sim, Sam Peckinpah inventou o videoclipe propriamente dito nesta cena: 



Em tempo: no Brasil o filme foi lançado como Pat Garrett & Billy The Kid e em Portugal, Duelo na poeira.