quinta-feira, março 23, 2023

O homem que matou o facínora

 


Faroeste clássico dirigido por John Ford, tendo como base a atuação de três atores: John Wayne, James Stewart e Lee Marvin, respectivamente nos papéis de Tom Doniphon, o típico caubói que sempre anda armado, um cara do bem, mas cético em relação a resolver certos assuntos no diálogo e dentro da lei; Ransom Stoddard, um advogado que é espancado durante um ataque à diligência e depois se torna senador; e Liberty Valance, que os distribuidores brasileiros do filme transformaram no "Facínora" mais famoso do cinema.

E Liberty é realmente um facínora de marca maior. Usa e abusa da violência com as pessoas mais fracas, e com seu rebenque (ou relho) gosta de surrar pessoas quase até a morte. Foi ele é claro quem espancou Stoddard no roubo à diligência. Mais tarde no filme, os dois voltam a se encontrar. Desta vez, Stoddard está trabalhando como atendente num restaurante em que Liberty aparece para tumultuar o ambiente. Os dois se reconhecem, e novamente Stoddard vai sofrer nas mãos (e nos pés) de Valance.


Tom Doniphon está presente e intervém, mas Stoddard não quer saber de violência. Ele almeja um país onde as leis prevaleçam em vez da força.

Mas a questão da justiça com as próprias mãos não é a única situação importante a ser focalizada por John Ford. Também a relevância de um sistema eleitoral forte e livre, em que as pessoas não sejam coibidas de votar nesse ou naquele candidato, é abordada no filme.



A atriz Vera Miles é o pivô de um triângulo amoroso. Tom Doniphon a ama, Ransom Stoddard também. Ela parece indecisa entre o másculo caubói e o intelectual urbano. 

Woody Strode e Lee Van Cleef são nomes de peso no elenco de apoio.

A frase mais famosa do filme é falada por um jornalista: 

"This is the West, sir. When the legend becomes fact, print the legend.”

Eu resolvi assistir a esse filme que ano passado completou 60 anos (e foi homenageado com um artigo no The Guardian) após a referência em Os Fabelman de Steven Spielberg, cuja resenha ainda não tive tempo de fazer. 

Enquanto não a faço, vou citar en passant a cena final do mais recente filme de Spielberg, em que um outro cineasta famoso encarna John Ford dando uma dica importante ao jovem que começava no ramo de dirigir filmes.

É uma cena em que os fãs de David Lynch se deliciam.

SPOILER SPOILER SPOILER

SPOILER SPOILER SPOILER

SPOILER SPOILER SPOILER

Se pretende assistir ao filme e ainda não o assistiu: não recomendo que leia o parágrafo a seguir. Não chega a ser um spoiler, mas dá uma informação que pode diminuir a surpresa no final. Se bem que venhamos e convenhamos, o título meio que entrega in the first place.

Em O homem que matou o facínora, é notável o pioneirismo no quesito "ângulos diferentes". Deve ter sido um dos roteiros precursores a mostrar a mesma cena sob diferentes pontos de vista, o que causa uma reviravolta na história.


segunda-feira, março 13, 2023

Peter Weir ganha Oscar pelo conjunto da obra


Quem ama cinema está feliz com a cerimônia de ontem, no 95º ano do Oscar. Foi a mais divertida e tocante dos últimos anos, uma cerimônia que marca o retorno do Cinema aos bons tempos. Após a pandemia, uma retomada vem por aí.

Momentos emocionantes não faltaram, como o de Jamie Lee Curtis homenageando o pai, Tony Curtis, e a mãe, Janet Leigh, dois ícones do cinema. Ela lembrou o fato de o pai e a mãe terem sido indicados ao Oscar (Tony Curtis, em 1959, ao Oscar de Melhor Ator, por Acorrentados, e Janet Leigh, em 1960, ao Oscar de Melhor Atriz Coadjuvante, por Psicose) e agora ela havia acabado de garantir o único Oscar da família, como Atriz Coadjuvante.

Ke Huy Quan, o vencedor da categoria Melhor Ator Coadjuvante, foi um caso à parte. Grande sucesso na infância, ostracismo, e agora a volta por cima. 

Brendan Fraser encarou o prêmio de Melhor Ator como uma redenção, uma benção ainda que tardia. A baleia, de Darren Aronofski, também abiscoitou o Oscar de Melhor Maquiagem.

Michelle Yeoh, a veterana atriz da Malásia, que iniciou sua carreira na forte indústria cinematográfica de Hong Kong, também lembrou que é preciso perseverar e nunca desistir de nossos sonhos.

O compositor da trilha sonora de Nada de novo no front, para mim, foi um dos destaques da cerimônia, falando com uma simplicidade e uma calma admiráveis. O filme terminou com 4 Oscars de categorias importantes: Melhor Filme Internacional, Melhor Trilha Sonora, Melhor Direção de Arte e Melhor Fotografia.

Falando em música, a cerimônia contou com ótimos números musicais, em que os candidatos à Melhor Canção Original se apresentaram em performances otimamente bem feitas e dirigidas. Quem venceu a categoria foi "Naatu Naatu", a canção do filme indiano RRR, um aceno para a diversidade.

Durante a cerimônia bem conduzida pelo apresentador Jimmy Kimmel, foram mostrados trechos de outro evento do Oscar, acontecido em novembro de 2022, em que pessoas receberam Oscars honorários.

Um desses Oscars eu não poderia deixar de mencionar aqui.

Peter Weir, meu diretor favorito, teve enfim sua obra reconhecida com a estatueta mais importante da indústria do cinema. E justamente um Oscar pelo conjunto da obra, uma honraria que ganha ainda mais relevância porque equivale a um Nobel da Literatura, que também é pelo conjunto da obra.

O cara que fez




Picnic na montanha misteriosa,

O ano em que vivemos em perigo 

e

Gallipoli

para ficarmos só na fase australiana.

Parabéns, Peter! 

Vale a pena ler a transcrição e ouvir o seu discurso de agradecimento:



Sobre o grande vitorioso da noite, Tudo em todo lugar ao mesmo tempo, isso carrega também tem um simbolismo. O novo prevalece sobre o velho. O inovador supera o tradicional. Novos caminhos se abrem para Hollywood.

domingo, março 05, 2023

Shtisel

 Sou o tipo de pessoa avessa a "maratonar" qualquer série.

Mas o que fazer se você se torna addicted a uma série que está com uma tarja 

"Última data para ver este título: 24 de março"?

Se eu ver dois episódios por dia ainda consigo ter uma ideia das três temporadas sobre as peripécias desta família ultraortodoxa judaica.

Estou assistindo a episódios avulsos, e a cada episódio, o vício aumenta, e quero mais e mais.

Como não querer mergulhar noutra cultura e noutra religião,

o estranhamento do idioma, dos costumes,

e ao mesmo tempo se identificar com o que temos em comum,

a humanidade,

a vida como ela é, 

com humor e realismo,

beleza e simplicidade, pureza e sensibilidade?

Postei aqui para quem tem Netflix e nunca viu, que se permita esse prazer antes que a série seja "descontinuada".



Por que um católico deve assistir à série dramática Shtisel? Os roteiros, as personagens e o elenco são primorosos. Afora isso, tem mais cinco motivos, citados aqui, em outras palavras.

 



sábado, março 04, 2023

O espantalho


 O bom de ser cinéfilo é que sempre acabamos descobrindo que não "entendemos nada" de cinema.

Pois é exatamente assim que o cidadão se sente ao assistir O espantalho (1973).

Esse filme não tem nada de extraordinário.

Uma história banal de dois amigos, um movie road de melancolia e sonhos que sabemos ser meros sonhos...

Mas quando o filme acaba você pensa: seu bobinho, você se achava um entendido sobre cinema e não tinha visto ainda O espantalho.

Seu paspalho!

Onde é que esse filme esteve todos esses anos?

Na estante da Zílvia Locadora, à tua espera.

Antes tarde do que nunca, parafraseando o nome da banda de rock carazinhense.

Gene Hackman e Al Pacino são os amigos que nos levam nessa jornada. 

Hackman declarou que sua melhor atuação na carreira foi esta.

Nesta entrevista do site Film Comment, o cineasta Jerry Schatzberg compara o modo de atuação dos dois, Al Pacino mais imersivo, Hackman construindo no andar da carruagem e apenas diante das câmeras... 

Schatzberg, que antes de ser cineasta tinha uma carreira sedimentada como fotógrafo, foi o responsável por escolher um ator de teatro que depois ganharia Oscar de Melhor Ator em 1993 por Perfume de Mulher.

Al Pacino estreou no cinema em Os viciados (Panic in Needle Park, 1971), também de Schatzberg.



Segundo Roger Ebert, e segundo Henrique Guerra também, o filme nos leva a fazer uma associação com outro clássico com dois atores, um alto e um baixo: em Perdidos na noite, os dois amigos são Joe Buck (Jon Voight) e Enrico Rizzo (Dustin Hoffman). A associação é meio óbvia pelo jeito. Eu pensei, o Ebert pensou, e o site Artifice fez um paralelo entre os dois filmes. Outra associação que Ebert fez foi com Ratos e homens, o livro clássico de John Steinbeck, cuja dupla de personagens principais era Lennie Small e George Milton. Ratos e homens teve várias adaptações ao cinema, mas esse é assunto para outro post.

Os personagens de Schatzberg são Francis Lionel (Al Pacino) e Max Millan (Gene Hackman). Os dois formam uma amizade em que Francis é o palhaço, o brincalhão, e Max é o sisudo, brigão. Max não perde uma oportunidade de entrar numa briga, e por isso, sempre está se metendo em confusão. Em países como os EUA, isso equivale a dizer que Max é um assíduo visitante das casas de correção penal.

Recém-saído da cadeia, conhece Francis à beira de uma rodovia californiana, ambos tentando pegar carona. O objetivo de Francis é chegar a Detroit para conhecer o filho ou filha que deixou para trás. O objetivo de Max é chegar a Pittsburgh para abrir um lava-carros.

No caminho visitam a irmã de Max, e participam de algumas situações que levam a amizade deles a se reestruturar.



Tudo culmina na sequência em que Francis, já tendo sofrido poucas e boas recentemente,
procura a casa da mãe de seu filho. A partir daí temos a sequência que torna o filme um cult.

Contar aqui seria injusto com quem está curioso para ver.

Acredite, você se tornará um cinéfilo melhor.

Para os interessados, a filmografia de Jerry Schatzberg pode ser conferida no site do Festival de Cannes, nesta página.

segunda-feira, fevereiro 06, 2023

Babilônia

Após a sessão de Babilônia cheguei a várias conclusões:




1) Babilônia é um filme extremamente divertido.  Desde o começo, dei muitas gargalhadas. Um riso espontâneo, que os antigos chamariam de "a bandeiras despregadas". 

2) As pessoas estão perdendo o senso de humor? Ou o meu senso de humor é diferente de 99,9% das pessoas? É que na maioria das vezes ninguém mais da plateia achou graça. Sei que o meu senso de humor é o senso de humor de um cinéfilo até o tutano dos ossos.

3) Um cinéfilo até o tutano dos ossos se diverte do começo ao fim em Babilônia. 3 horas inéditas de Damien Chazelle é pouco! Poderia ter tido um intervalo no meio e uma segunda parte de mais 3 horas.




4) Uma sequência inicial tão acachapante e imersiva quanto essa só me lembro de algo parecido em O resgate do soldado Ryan.

5) É evidente que alguém que bateu o recorde de Norman Taurog (que, a propósito ou não, dirigiu quase 10 filmes com Elvis Presley) como o diretor mais novo a ganhar um Oscar de Melhor Diretor não precisa provar nada para ninguém, e aí que começam os pontos fracos de Babilônia, os pontos em que essas pessoas especiais, os críticos de cinema, vão cair em cima como abutres.

6) A diferença entre um cinéfilo raiz e um crítico é essencialmente esta: o crítico é uma pessoa treinada para apontar os defeitos, enquanto o cinéfilo desde que se conhece por gente se criou se deleitando com as qualidades, poucas, médias ou muitas, do filme (literalmente) em tela.



7) E o filme em tela, Babilônia, é algo que vai se tornar objeto de culto entre cinéfilos. As partes que os críticos gostariam de deixar na mesa de edição são as partes que eles mais vão comentar e se lembrar. As partes exageradas do roteiro, as partes que os críticos torcem o nariz e acham "extra-vagantes" ou "um pouco meio muito", os cinéfilos as terão na ponta da língua. Serão as partes mais cultuadas.



8) A transição do cinema mudo para o cinema falado é um tema palpitante, mas Babilônia não é um filme monotemático.

9) A melhor atuação de Lukas Haas continua sendo em A testemunha de Peter Weir. 



10) Dificilmente vou sair do cinema tão fascinado este ano, mas vou assistir em breve Os Fabelman(s) e Os Banshees de Inisherin. Aguardem os posts.


Elvis



Falar deste filme de Baz Lurhmann para mim tem um sabor especial.

Tive a sorte de estar no lugar certo na hora certa.

A sorte favorece os preparados, alguém poderá dizer.

O fato é que sorte nunca faltou a Elvis Presley. 

Após traduzir os dois volumes da biografia de Peter Guralnick, formei uma imagem do Rei que é a minha imagem.





Cada um enxerga as coisas com os seus próprios olhos, e se enquanto tradutor tentei respeitar ao máximo as palavras, o estilo e a visão do autor, isso não me impede de encarar os fatos a meu modo, aqui em meu humílimo blog.


Sortudo, esse rapaz. Em primeiro lugar, é o sobrevivente de dois gêmeos.

O irmãozinho dele nasceu morto.

Sorte ou azar? Depende do ponto de vista.

Tudo na vida dele aconteceu em seu devido tempo e na devida hora.

De tanto passar na gravadora Sun, de tanto bater na tecla, de tanto bater na pedra dura com sua água cristalina (uma voz nunca antes ouvida e uma confluência de estilos nunca antes vista), Sam Phillips lhe deu a chance. Sam Phillips lhe entregou a banda que ia se tornar clássica, um baixista que toca baixo acústico, um guitarrista muito técnico, um gênio em se tratando de passar do simples e eficaz ao sofisticado e virtuoso. Nos primeiros tempos nem tinham baterista fixo. Sam Phillips lhe entregou os primeiros singles de sucesso, o primeiro empresário...

O jovem cantor entra no radar de outro empresário, de mais cacife e com ampla rede de contatos em Hollywood e na RCA Records.



O resto é história, e assistir ao filme de Baz Luhrmann tem um grande efeito catártico para os admiradores de Elvis, tanto os mais antigos quanto os recém-chegados como eu.

O leitor de Último trem para Memphis vai reconhecer no filme muitos e muitos momentos narrados no livro.

E a partir de agosto, quando chegar às livrarias a segunda parte da biografia, Amor descuidado, o ciclo se completa. A segunda parte de sua vida, a vida na Alemanha como soldado, o namoro com Priscilla, a volta para casa, a participação no programa de Frank Sinatra, a retomada da carreira em Hollywood (antes de ir à Alemanha, tinha feito 4 filmes), a estagnação da carreira como ator, a reviravolta no especial da tevê em 1968, as muitas temporadas em Las Vegas.

Esse roteiro é um roteiro de muitas alegrias entremeado com muitos contratempos. A vida de Elvis não foi um mar de rosas, mas também não foi uma tragédia. Sob quase todos os prismas foi a vida de um vitorioso.

Respeito muito quem sente "pena" de Elvis, mas para mim Elvis viveu a vida que ele quis. 

Inteligente como era, sempre participou ativamente de todas as decisões artísticas e assinou quase todos os contratos. 

Concordo que os roteiros de alguns de seus filmes como ator poderiam - até deveriam - ser melhores, mas até nisso considero que as pessoas em geral (Elvis e Peter Guralnick inclusos) subestimam a carreira cinematográfica de Elvis Presley.

Mas voltando à vaca fria, esta deveria ser uma resenha sobre o filme de Baz Luhrmann.

Um triunfo do excesso, o filme tem mais qualidades que deméritos.

O principal está ali, inclusive o influxo da música e da cultura negras na vida e na formação artística de Elvis. Isso Luhrmann captou com maestria, essa coisa quase mística que envolve a ligação de Elvis com a música gospel, a música spirit e o blues.

Elvis é uma esponja não preconceituosa que absorveu várias influências musicais, amalgamou-as num cadinho e fez explodir a mente de Sam Phillips nos estúdios Sun. O dono da gravadora não teve dúvidas desde que ouviu a versão de Elvis para "That's All Right" que estava ouvindo música revolucionária.

Essas coisas não são exatamente o foco do filme, o roteiro se concentra em coisas mais polêmicas da vida do Rei, e tenta transformar o Coronel Parker em vilão; talvez esse seja o maior lapso do filme, se bem que muitos fãs concordem com essa visão um tanto rasa do relacionamento entre cantor e empresário.



Peter Guralnick, por exemplo, não defende isso. Essa é uma das coisas que está no filme, mas não está no livro. Tanto isso é verdade que o próximo livro de Guralnick é uma coletânea das cartas do Coronel Parker, para mostrar um pouco mais dessa personalidade multifacetada.

Seja como for, assistir a Elvis no cinema foi um deleite, e rever o filme será também um deleite. 

O ator Austin Butler concorre ao Oscar e até mereceria a estatueta, não fosse a concorrência de Brendan Fraser em A baleia, filme de um meus diretores no TOP TEN DIRETORES VIVOS, Darren Aronofski. 

segunda-feira, janeiro 09, 2023

O troll da montanha

 


Não se trata apenas de um interessante filme para toda a família, uma sessão da tarde legalzinha.

O filme norueguês que liderou as estatísticas de audiência da Netflix em dezembro é nada mais nada menos que o melhor filme de 2022 em se tratando de roteiros originais.



O diretor que tem nome de urro, Roar Uthaug, é a fera por trás das câmeras e autor também da história. O enredo é simples, ser ser simplório, os personagens são verossímeis, os efeitos especiais bastante eficientes comparados com o orçamento.

A metragem não é exagerada, mal que aflige a maioria dos filmes hoje em dia (vide Wakanda para sempre).


O que O troll da montanha nos proporciona é mergulhar no imaginário de um povo, conhecer o seu folclore e relacionar tudo isso com o que acontece hoje em termos ambientais.

A figura do troll está tão entranhada com a cultura norueguesa que muitas obras já foram realizadas sobre o tema, incluindo o curta de animação de 2010, "The Last Norwegian Troll", com voz de Max von Sydow.



Em O troll da montanha, esses aspectos do folclore são adaptados para criar um filme de desastre, ou de "monstro", ao melhor estilo Godzilla.

Alguns detalhes do roteiro acabam conquistando o espectador, como a militar que é fã de Star Trek, e que vai ter uma importante atuação na hora da crise.

Segundo a notícia da Variety, o filme alcançou a marca de 128 milhões de horas assistidas mundo afora, tornando-se o filme não falado em inglês mais popular da Netflix.



Para contar a história, Roar Uthaug reuniu um elenco experiente e talentoso (Ine Marie Wilmann, Kim Falck, Mads Sjøgård Pettersen, Gard B. Eidsvold, Karoline Viktoria, Sletteng Garvang, Yusuf Toosh Ibra e Bjarne Hjelde), bancados por produtores empolgados com o projeto, Espen Horn e Kristian Strand Sinkerud, que declararam:

"É uma emoção dar vida a Troll, essa figura dos contos de fadas noruegueses, com elenco, direção e produção de noruegueses, destinado ao mercado global".

Então, se você curte se aventurar em produtos que buscam uma "volta às raízes", que nos dão um vislumbre sobre uma cultura e uma mitologia pouco divulgadas, O troll da montanha é o caminho mais rápido de carimbar seu passaporte para a Noruega e ouvir o musical idioma norueguês, para variar.

 




sábado, dezembro 03, 2022

Nada de novo no front

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O filme do esteta Edward Berger é o pré-indicado ao Oscar pela Alemanha. A julgar pela recepção que o filme está tendo mundo afora desde a sua estreia no Festival de Toronto em setembro e, no fim de outubro, na Netflix, há uma boa chance de ele acabar entre os 5 finalistas de Melhor Filme Internacional. 

O enredo baseia-se na obra In Westen Nichts Neues, escrita por Erich Maria Remarque e publicada a primeira vez em 1929, cuja ação se passa durante a I Guerra Mundial, sob o prisma dos alemães. A primeira adaptação ao cinema foi em 1930 (All Quiet on the Western Front / Sem novidades no front), Oscar de Melhor Filme, com direção de Lewis Milestone.

 

 

A história é contada do ponto de vista de Paul Bäumer, um rapaz que se alista no exército aos 17 anos para combater nas trincheiras do front ocidental. Os ideais que o levaram a se alistar vão aos poucos sendo minados pelo dia a dia brutal e sem sentido do front de batalha.

A alimentação precária da tropa é algo que fica bem realçado em várias sequências. A sujeira e a falta de condições sanitárias, também. 

 A construção dos personagens se dá sem pressa, com os vários combatentes do pelotão sendo apresentados ao espectador, em meio a cenas de combate e nas tréguas. 

 

 

A maioria dos soldados tem menos de 18 anos e se vê obrigada a esquecer dos sonhos de um dia ter uma namorada e uma vida próspera para chafurdar no infernal "front do ocidente", comandados por insensíveis marechais.

Algumas cenas horripilantes se destacam, como a que o jovem soldado alemão se vê sozinho com um soldado francês num lodaçal que circunda uma cratera cheia d'água fétida.

 


 É matar ou morrer, e Paul não hesita em sacar o punhal e, após derrubar o oponente, cravar várias vezes a lâmina no peito do inimigo. Paul se afasta dele, mas o moribundo emite sons gorgolejantes que fazem Paul cair em si e se arrepender de seus atos. Uma das muitas cenas do filme que retratam com crueza a estupidez das guerras.

 

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O estreante Felix Kammerer faz um trabalho digno de nota no papel do protagonista. A fotografia é outro destaque, assim como a trilha sonora hipnotizante e, nos momentos que antecedem as lutas sangrentas, mesmo assustadora. Por sua vez, o diretor Edward Berger revela um olhar preocupado em veicular conteúdo potente, mas com veracidade e beleza, até onde a insensatez pode ser bela. 

 

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Em pleno 2022, um filme antibélico, em que os líderes por trás da guerra são dementes, teimosos, orgulhosos e cegos, poderia soar deslocado, se hoje vivêssemos num mundo em paz, sem governantes de potências bélicas com essas características.

Mas o libelo de Edward Berger soa atualíssimo e por isso merece ser visto, apreciado e comentado.

 Uma das coisas interessantes é estabelecer um paralelo entre o filme germânico de hoje e o americano de 1930, bem como entre o livro e os filmes. Um artigo da Collider aborda as diferenças do livro de Remarque e do filme atual.

Da estirpe do já citado Sem novidades no front (Lewis Milestone), Gallipoli (Peter Weir) e 1917 (Sam Mendes), to name a few, Nada de novo no front de Edward Berger entra para essa seleta galeria de filmes essenciais e imperdíveis sobre a I Guerra Mundial.


segunda-feira, agosto 29, 2022

Tudo em todo lugar ao mesmo tempo

 



Se a graça de ir ao cinema é ser desafiado, Tudo em todo lugar ao mesmo tempo promete e entrega graças mil.

A multiplicidade é o tema aqui.

Multitarefas.

Multidisciplinar.

Multidão.

Multiplicar.

Multitude.

Multiverso.




Multidesafiado, o espectador tem duas opções: se deixar levar ou multiplicar a tensão na poltrona.

Na sessão percebo que só sei de uma coisa: 

ainda não sei se o tipo de humor dos "Daniels" é o tipo de humor que me agrada.

Nesse meio-tempo, digo, multitempo, 

múltiplas razões me levam a relaxar e encarar tudo isso com a maior multidisciplinaridade possível.

Afinal de contas, o multi é o novo uni.

Unidunitê, o multiverso está em você.

Muita gente achou graça na cena das pedras. 

Multipedante é o filme com múltiplos capítulos. 

Dunkirk seria melhor sem as subdivisões. 

Nope seria melhor sem as subdivisões.

Todos esses diretores multitalentosos têm esse probleminha.

Nem tudo pode ser perfeito em todo lugar e ao mesmo tempo.










Não! Não olhe!


 
Jordan Peele é o mais estranho caso do cinema autoral da atualidade.

A sua voraz paixão por contos do escarro e do bizarro é avassaladora, seu interesse por investigar os meandros sombrios da alma humana e do universo é irrefreável.

Logo na estreia, chegou, chegando.

O acachapante Corra! tem um dos roteiros mais criativos e funcionais do século. Misto de ficção científica aterradora com terror psicológico, o filme tem desdobramentos que dão calafrios na espinha.  

Em Nós, um perturbador estudo sobre a dualidade, Peele busca um amadurecimento narrativo, escancarando no processo tendências de estilização e exageros formais. Embora em alguns momentos esses excessos soem um tanto farfetched, ainda assim, é um filme sem concessões e bem acima da média.

O que nos conduz a Nope, que no Brasil ganhou o inventivo título Não! Não olhe! O terceiro longa-metragem de Jordan Peele, que em Portugal manteve o título original e foi resenhado por Cátia Santos no site Cinema Sétima Arte, só comprova a nossa afirmação inicial.


O mestre das estranhezas e das bizzarrices desta vez foca suas lentes não no sobrenatural (Nós) nem na perversidade humana (Corra!), mas noutro, talvez mais prosaico, tipo de visita, que nos remete a clássicos como O dia em que a Terra parou Contatos imediatos do terceiro grau, de Spielberg.

O diferencial de Peele é transformar o que poderia ser um filme trivial em uma aula de cinema, com cenas de uma plasticidade irresistível.


Em Nope, a fenomenal avidez por citações (do banho de sangue na casa que lembra Amytiville às entranhas de uma assustadora Viagem fantástica, para citar apenas duas) anda lado a lado com a iconicidade por trás dos motivos dos protagonistas.

O mais importante no filme é fazer o registro.

Documentar.

Ter a prova.

Com fotos estáticas ou "fotos em movimento", os fantásticos acontecimentos do rancho Haywood precisam ser fixados em rolo ou em forma digital.




A história paralela, em que um chimpanzé participante de um sitcom tem o seu dia de fúria diante das câmeras, serve como elemento adicional para compor o suspense, mas qual a relação com o tema principal? Por que está no filme? Preciosismo? Ou exerce uma função? Talvez subliminarmente uma crítica ao uso de animais em filmagens? 

É o ganha-pão da família Haywood, que treina cavalos para participarem de filmes. A minha intuição é que a história vem como um bônus, um "plus a mais", um recorte extra na mente doentia de alguém obcecado por sangue, pelo inusitado, pelo que nos causa medo e pavor.

O foco é a relação entre os irmãos Emerald e O. J., que, após a inacreditável morte do pai, têm que manter a viabilidade financeira do rancho. Sim, no frigir dos ovos, Nope é sobre os laços fraternos, sobre um irmão que ajuda a irmã e vice-versa, em prol de um objetivo comum.

 


domingo, julho 03, 2022

Jane Campion em dose dupla

Em 2022, a cineasta neozelandesa Jane Campion tornou-se a terceira mulher a ganhar o Oscar de Melhor Direção.


Para quem acompanha a carreira de Jane Campion, desde os tempos de O piano (1993), que venceu a Palma de Ouro em Cannes e valeu o Oscar de Atriz Coadjuvante a Anna Paquin, isso não foi nada surpreendente. 

Recentemente assisti a um filme antigo dela e também ao que lhe rendeu o Oscar, é claro. 

Um anjo em minha mesa, de 1990, da fase neozelandesa, é a tocante cinebiografia da escritora Janet Frame. 

O ataque dos cães, de 2021, é um filme difícil de rotular, um conto envolvente de mistério e um estudo contundente sobre as complexidades da alma humana.

UM ANJO EM MINHA MESA




Janet Frame, a escritora neozelandesa, foi diagnosticada com esquizofrenia enquanto estava na faculdade. Por conta disso a vida dela sofreu uma violenta transformação e por pouco ela escapou de sofrer uma lobotomia.

Jane Campion estruturou o filme em três partes.

Parte I

Conta a infância de Janet na Nova Zelândia, um local paradisíaco. A família morava num penhasco com vista para o mar.

A vida familiar, com o pai rígido e as quatro irmãs dormindo na mesma cama, com o único irmão sofrendo de convulsões, a amiga que lhe ensina a palavra "Fuck" e que as crianças não vêm com as cegonhas, os professores quase todos eles rigorosos, à exceção do professor de Literatura, que elogia os poemas da pequenina aluna ruiva.

A parte I é a mais leve, mas também conta alguns dramas e tragédias familiares. A vida de Janet Frame nunca foi realmente uma vida fácil.

Parte II

Esta é parte crucial do filme, em que Janet entra na faculdade, onde tenta enfrentar a sua fobia social. O cabelo ruivo e crespo é um motivo de chacotas, como também os dentes podres.



A maneira pela qual se expressa melhor é escrevendo. O professor elogia o seu trabalho, mas um dia Janet é surpreendida. O mesmo professor que a elogiou aconselha a Universidade a enviar a aluna para o hospital. Janet aceita, pensando que estavam preocupados com a saúde dela. A princípio não se dá conta da gravidade do que está acontecendo, até o dia em que descobre que está na ala psiquiátrica. Esta parte do filme é um show de horrores, como se a vida de uma promissora poeta estivesse entrando num infernal turbilhão de suspeitas, mentiras e erros médicos. Ela passa 8 anos internada. E só recebe alta porque seus livros começam a ser publicados e premiados. 

Parte III 
 



Janet volta para casa. A chegada ao lar é com certeza uma das mais emocionantes cenas de "homecoming" da história do cinema.

Esta parte conta a redenção de Janet Frame, como ela fez "do limão uma limonada", se tornou uma pessoa completa e realizada, lavou a alma com uma segunda opinião de seu diagnóstico (contar mais do isso seria um spoiler) e continuou sua trajetória para se tornar uma das mais importantes escritoras do país.




O ATAQUE DOS CÃES

Com roteiro de Jane Campion, inspirado no livro homônimo de 1967, de Thomas Savage, The Power of the Dog recebeu em Portugal o título O poder do cão. No Brasil o título escolhido foi O ataque dos cães.


Com locações na Nova Zelândia, O ataque dos cães tem uma fotografia admirável, um roteiro bem trabalhado (escrito pela própria cineasta, com as tomadas já prontas em sua cabeça), figurino caprichado e um grande elenco que se entrega à missão de dar vida a esses densos e multifacetados personagens. 


O resultado é um filme de altíssima qualidade, digno da filmografia memorável de Jane Campion. Um filme que merece ser conferido por todos que apreciam o bom cinema, e é uma pena que só assinantes de uma plataforma específica possam assisti-lo. O rumo que a indústria de entretenimento tomou não é exatamente o mais democrático. 

É impossível assinar todas as plataformas, e nem todos esses filmes chegam aos cinemas. Então, o poder dos cães da indústria se revela da forma mais tortuosa e traiçoeira.


MULHERES NA DIREÇÃO

Este post é uma homenagem a Jane Campion e a todas as diretoras que eu gosto, desde a Kathryn Bigelow (a primeira a ganhar o Oscar de Melhor Diretora) a Liliana Cavani (O porteiro da noite, ver foto abaixo), de Agnieszka Holland a Sofia Coppola, entre outras.  Esta matéria do Nerdizmo cita 45 diretoras, muitas delas da nova geração. Por sua vez, o site High on Films apresenta uma lista mais ortodoxa, com as 20 maiores cineastas mulheres de todos os tempos.




sábado, junho 25, 2022

Feriado no harém


 Escolhido por John Wilson, o fundador do prêmio Framboesa de Ouro, como um dos "100 filmes mais deliciosamente ruins da história", Harum Scarum (no Brasil, Feriado no harém, 1965), tem a direção de Gene Nelson.

Espécie de "pau-para-toda-obra" da indústria do entretenimento, Gene Nelson alcançou mais reconhecimento como ator do que como diretor. Era um excelente e hábil dançarino. Atuou por exemplo em Oklahoma! (1955), dirigido por Fred Zinneman. Mais tarde Gene Nelson migrou para a direção de seriados de tevê, inclusive Star Trek.

O background e o conhecimento do diretor como bailarino são notáveis na ênfase dada em Harum Scarum às sequências de dança, talvez as partes mais bem dirigidas do filme, que tem como outros pontos fortes a direção de arte e o figurino.

Uma pena é o roteiro. De autoria de Gerald Drayson Adams, a história, segundo o site Elvis Australia, careceu de ser mais bem trabalhada: "Little effort was invested in the script". Não é uma surpresa que isso acaba se tornando o maior problema do filme.

Diga-se de passagem, Elvis Presley já tinha feito um filme com direção de Gene Nelson e roteiro de nosso querido e, às vezes, pouco esforçado (ou quem sabe, pressionado pelo tempo?) G.D.A: Kissin' Cousins (Com caipira não se brinca, 1964). 

Voltando à Feriado no harém, a atriz principal é a Miss América de 1959, Mary Ann Mobley, no papel da princesa Shalimar, que, é claro, se apaixona pelo personagem de Elvis.

Já a atuação de Elvis Presley na pele do cantor estadunidense Johnny Tyrone, que é raptado com o intuito de ser obrigado a assassinar o rei de Lunarkand, oscila ao longo do filme, como se em alguns dias de filmagem ele estivesse mais focado que em outros.

Inclusive na interpretação das canções é possível notar diferenças em seu empenho e consequente desempenho.

AS CANÇÕES

O filme tem boas canções, algumas até surpreendentes, como "Shake That Tambourine", em que Elvis toca um pandeiro e dança no meio da multidão, enquanto Baba (Billy Barty, portador de nanismo) sub-repticiamente vai fazendo a limpa entre a plateia.

Outra curiosidade é "Hey Little Girl", entoada por Elvis enquanto a menina órfã dança e, ao longo do número, Elvis passa a dançar com ela.



O auge musical do filme, se é que podemos chamar assim, está na balada "So Close, Yet So Far (From Paradise), do compositor Joy Byers.

Elvis canta com seu estilo único, sentado junto às grades de sua prisão.



DESPERDÍCIO DE TALENTO OU AS COISAS COMO ELAS SÃO?

Analisar o rumo que a carreira de Elvis tomou cinematograficamente é algo que envolve muitos fatores. É muito fácil criticar esse ou aquele, escolher um "culpado".

Mas a impressão que temos é que a indústria do cinema subestimou não só Elvis como também os fãs de Elvis.

O seu empresário, Coronel Parker, era muito bom em pragmatismo, mas não tão bom em perceber as aspirações artísticas genuínas de Elvis, que almejava participar de algo mais substancial e duradouro como ator. E se ele tivesse tido a oportunidade de atuar mais maduro, em papéis de cunho dramático? Elvis não teve essa chance.

Ao longo da década de 1960, parece que Elvis tentou, sem sucesso, se desvencilhar dessa fórmula de filmes "B" de nicho, mas ele também tinha sua dose de pragmatismo e acabou fazendo o seu melhor nas condições que recebeu e dispunha.  

O Rei atuou em mais de 30 filmes de resultados artísticos variados.

 LISTAS QUE RANQUEIAM OS MELHORES FILMES DE ELVIS PRESLEY

Estão disponíveis na web algumas listas úteis:

10 Melhores Filmes de Elvis Presley (Variety, Joe Leydon)

Todos os 33 filmes de Elvis ranqueados do pior ao melhor (The Wrap)

Dez melhores filmes de Elvis Presley para assistir antes de "Elvis" de Baz Luhrman (Collider)

Um guia dos "Filmes de Elvis" para fãs (Elvis Information Network, EIN)