domingo, dezembro 24, 2006

Sylvia


Minha irmã veio para o interior e trouxe dois filmes do Daniel Craig -- ator fetiche dela atual. Nas palavras da mana, Craig é "másculo". Falando em palavras: topei a sessão apesar do subtítulo "Paixão além das palavras". Suponho que o subtítulo foi concebido para chamar a atenção ao subtema literário; sim, a Sylvia do título é ninguém menos que Sylvia Plath, a poeta e novelista bostoniana. Subtema pois o foco do filme de Christinne Jeffs não é a literatura, e sim o relacionamento tempestuoso de Sylvia (Gwyneth Paltrow) com o poeta inglês Ted Hughes (Craig). Os dois se conhecem em Cambridge, onde Sylvia vai estudar ao ganhar uma bolsa. Tempestuoso pois vivem o tipo mais fulminante de paixão -- o que envolve admiração intelectual. Pelo o que outro escreve. Pelas... palavras. (Words/don't come easy/to me/how can I find a way/to make you see/I love you/Words don't come easy - F.R.David). Entre um bloqueio literário e outro, o casamento gerou dois filhos e poemas cultuados. Numa cena do filme, Ted explica a um amigo que ama Sylvia mesmo sendo infiel a ela (e é possível amar e ser infiel?). O comportamento de Ted conduz Sylvia à insegurança e ao ciúme, ou o ciúme e a insegurança de Sylvia levam ao comportamento de Ted? Não importa: Sylvia é obcecada pela morte -- antes de conhecer Hughes havia tentado se matar duas vezes.

Para enriquecer o post, um poema de Sylvia Plath que trabalhamos durante a I Oficina de Tradução Literária.


I Am Vertical - Sylvia Plath

But I would rather be horizontal.
I am not a tree with my root in the soil
Sucking up minerals and motherly love
So that each March I may gleam into leaf,
Nor am I the beauty of a garden bed
Attracting my share of Ahs and spectacularly painted,
Unknowing I must soon unpetal.
Compared with me, a tree is immortal
And a flower-head not tall, but more startling,
And I want the one's longevity and the other's daring.

Tonight, in the infinitesimallight of the stars,
The trees and the flowers have been strewing their cool odors.
I walk among them, but none of them are noticing.
Sometimes I think that when I am sleeping
I must most perfectly resemble them--
Thoughts gone dim.
It is more natural to me, lying down.
Then the sky and I are in open conversation,
And I shall be useful when I lie down finally:
Then the trees may touch me for once, and the flowers have time for me.

Sou Vertical
Mas preferiria ser horizontal.
Não sou uma árvore com as raízes na terra
Extraindo nutrientes e amor maternal
Pra minha folhagem rebrotar, de repente, cada nova primavera,
Nem sou a beleza de um jardim florido
Atraindo minha cota de “Ohs” e multicolorido,
Sem dar por isso, em breve, derrubarei minhas pétalas.
Comparada comigo, uma árvore é perpétua
E uma corola, mesmo pequena, surpreendente;
Quero de uma, a longevidade; da outra, o atrevimento.

Hoje à noite, nas infinitesimaluzes estelares,
As árvores e as flores espargem frescos odores.
Caminho entre elas, mas nenhuma está notando.
Às vezes penso: quando estou sonhando
Mais perfeitamente a elas me assemelho -
O pensamento fica trêmulo.
É mais natural para mim, deitar.
Então o céu e eu não paramos de conversar.
E posso ser útil quando deitar a última vez:
Enfim receber o carinho das árvores e a atenção das flores.

Tradução: Henrique Guerra.

A felicidade não se compra


É Natal, tempo de reflexão e corações desarmados. Aproveitei a data para rever um dos mais belos filmes natalinos: A felicidade não se compra (It's a wonderful life, 1946).
Frank Capra nos conta a história de George Bailey (James Stewart). Em plena noite de Natal, o pai de quatro filhos e marido da adorável esposa Mary (Donna Reed), está bêbado, com o lábio sangrando, no alto de uma ponte, olhando o caudaloso rio lá embaixo. George é um homem no limite de suas forças. Um homem sem esperanças. A sua empresa – uma casa de empréstimos que financia a construção de boas residências para pessoas de baixa renda na pequena cidade de Bedford Falls – está prestes a falir. Em plena noite de Natal, George, em meio à forte nevasca, pensa em se suicidar.
Há salvação para ele? Para tentar reverter a situação, o anjo de segunda classe Clarence é enviado. De segunda classe, pois, apesar de quase três séculos de idade, ainda não ganhou o que distingue um anjo de um mero mortal. Se for bem sucedido em seu intento, lhe prometem, finalmente ganhará o sonhado par de asas. Os momentos cruciais da vida de George são mostrados a Clarence, para que ele possa ter subsídios e conseguir cumprir a difícil missão de salvar George. Clarence, com o consentimento superior, permite a George ver como o mundo seria se ele não tivesse nascido.
A carga emotiva do filme de Frank Capra permanece insuperável ainda hoje. Para quem nunca viu, é o tipo do filme para toda a família. Para quem já viu, vale sempre a pena revisitar esse clássico da década de 40 – ainda mais na época do Natal.

domingo, dezembro 17, 2006

Cassino Royale



Cassino Royale, o filme de 1967, com Ursula Andress no papel de Vesper Lynd, e David Niven no de James Bond, não fez parte da série oficial do 007 e, embora tenha reunido muitos talentos (incluindo o diretor John Huston e os atores Peter Sellers e Jean Paul Belmondo), obteve fraca recepção de público e de crítica. Entrou para a história mais como uma paródia ou sátira do que como um filme “sério”de 007.
Já o novo “cassino real”, além de pertencer à franquia 'oficial', aproveitou o melhor do roteiro original e acrescentou elementos de interesse. A combinação de roteiro engenhoso, direção eficiente de Martin Campbell e carisma de Daniel Craig credencia o novo Cassino Royale como um bom filme de 007.
Do original, o roteiro (assinado entre outros por Paul Haggis, de Crash) manteve, além do título, os nomes de algumas personagens (Le Chiffre, Vesper Lynd) e a “idéia principal” – a realização de um milionário jogo de pôquer em um luxuriante hotel.
O filme de Martin Campbell (especialista em filmes de ação como Limite Vertical e A Marca do Zorro) marca a estréia do ator Daniel Craig (com participações em Estrada para a Perdição e Munique) como 007. Campbell realizou também Goldeneye, o primeiro de Pierce Brosnan na franquia.
O ‘casting’ de Craig foi muito questionado pelos fãs radicais da série, por conta da altura e da cor do cabelo. Teoricamente muito baixo e loiro para ser o novo James Bond, sem o jeito de bom moço de um Sean Connery, a elegância de um Roger Moore, ou o charme de um Pierce Brosnan, Craig, nascido em março de 1968, compensou a estatura mediana com um excelente preparo físico; a cor do cabelo com a vantagem que, sendo loiro, ganhou como bond-girls belas morenas - como é o caso de Eva Green (de Cruzada) e Caterina Murino; a falta de elegância e de charme, com testosterona e melancólicos olhos azuis. Normalmente discreto no cumprimento das missões, o agente britânico assume com Daniel Craig uma postura mais violenta. A estratégia dá espaço ao contato físico e à truculência. Esse é o filme em que 007 mais bate e mais apanha. Paradoxalmente, é o filme em que a fragilidade de Bond está mais à flor da pele. Bond está mais humano e menos inteligente – é capaz até de se apaixonar.

quarta-feira, dezembro 13, 2006

A fonte da vida


A fonte da vida (The fountain) é o terceiro filme de Darren Aronofsky. O primeiro, Pi (1998), lhe valeu o prêmio de Melhor Diretor no Festival de Sundance. Trata-se da história de um matemático e suas piras, seus vizinhos excêntricos e suas descobertas científicas, gravadas em preto e branco estilizado, com direito a enxaquecas atormentadoras e até mesmo a um cérebro perdido numa escadaria. Com uma estréia desse tipo, e com o aval concedido por um dos festivais mais badalados do cinema dito 'alternativo', Aronofsky precisava confirmar o talento no segundo filme. Réquiem para um Sonho (2000), a excruciante derrocada de quatro personagens causada pelo consumo de drogas, foi, para uns, a confirmação de seu gênio; para outros, mais um produto de uma mente doentia e pretensiosa.
O longo tempo entre o segundo e o terceiro trabalho deveu-se aos altos e baixos do projeto de The fountain. Cancelado, passou por uma recauchutada no roteiro, com vistas a reduzir o custo, e saiu enfim do papel.

O grande mérito de A fonte da vida (2006) é sua imprevisibilidade. O espectador nunca sabe para onde será levado; essa sensação de insegurança e perplexidade chega a ser exasperante, tanto que é difícil fazer uma 'sinopse' do 'enredo'. Vamos dizer que o filme narra de forma não linear três histórias cujo ponto em comum são a busca incessante pela vida, ou pela não morte. Outra intersecção entre as três diferentes eras e locais - além da música hipnotizante de Clint Mansell - são as personagens vividas por Hugh Jackman (Tomas, Tommy e Tom Creo) e Rachel Weisz (Isabel e Izzy Creo). A história que se passa no tempo atual é a do casal Tom e Izzy Creo, ele um pesquisador que luta para descobrir a cura de tumores cerebrais e ela uma portadora de câncer no cérebro. Izzy escreve um livro, mas falta um capítulo de conclusão. É no texto de Izzy que se passa a segunda história, a de um conquistador que tenta achar a Árvore da Vida. Na terceira história ou dimensão, um homem dentro de uma esfera brilhante medita enquanto toma conta de uma árvore. A atuação de Hugh Jackman, metamorfoseando-se física e psicologicamente em três personagens, é bárbara, talvez o trabalho em que mais tenha sido exigido.
Faço parte de uma comunidade no orkut chamada "Eu entendo David Lynch". E acho que vou abrir uma com o título "Eu entendo Darren Aronofsky". Na verdade, não procuro entender nenhum deles. Quero dizer, não faço força para entendê-los. Talvez porque ache que para entender Lynch é preciso ter o coração selvagem. Como para entender Réquiem é preciso ter tido pelo menos um sonho frustrado - e reconhecer a irreversibilidade dessa frustração. Como para entender A fonte da vida é preciso ter sofrido uma grande perda; e para entender a angústia de Tom Creo pela falta da aliança no dedo, é preciso ter passado por experiência similar. É essa a grande contradição do cinema de Aronofsky: é um cinema pretensamente "cabeça" que para ser 'entendido' exige "coração".
Dizia Rainer Maria Rilke que toda arte genuína surge de uma necessidade. A impressão que se tem é que o cineasta nascido no Brooklyn tinha que realizar A fonte da vida; precisava terminar essa questão para poder prosseguir em sua carreira.

Um bom ano


E eis que o espírito de Frank Capra desceu em ninguém menos que Ridley Scott. Quem diria, o cineasta que começou com Os Duelistas em 1977, realizou o par de clássicos de ficção científica Alien (1979) e Blade Runner (1982), a aventura feminina Thelma e Louise (1991) e a masculina O Gladiador (2000), o filme de guerra hiper-realista Falcão Negro em Perigo (2001), agora dedicou um tempo para o lirismo e o descompromisso. Se é verdade que a qualidade de Um bom ano passa longe de clássicos como Felicidade não se compra e Aconteceu naquela noite, também é inegável que traz elementos de reflexão e de leveza e entrega um leque de bons sentimentos que nos remetem aos filmes de Capra das décadas de 30 e 40.
O londrino Max Skinner (Russel Crowe) é um inescrupuloso negociante de ações; de 'namorada' em 'namorada', vai gastando 0,01% do que ganha nas operações milionárias. Um belo dia recebe a notícia da morte de Henry (Albert Finney), seu tio produtor de vinho na França. O prático homem de negócios é o único herdeiro e vai até a França decidido a vender a propriedade, que costumava visitar quando criança. Só não contava conhecer a intrigante Fanny Chenal (Marion Cottilard), uma moça do lugar. Tipo de filme que não tenho medo de recomendar; bom elenco, bom diretor, roteiro despretensioso, cheio de clichês, previsível – mas que não chega a ferir a inteligência do espectador.

segunda-feira, dezembro 04, 2006

Cem escovadas antes de dormir



Melissa (María Valverde) vai completar 16 anos. É uma moça bonita de rosto. Olhar expressivo, boca carnuda. O corpo? Virgem e meio fora do padrão de beleza atual e louco para se entregar ao belo mancebo Daniele (Primo Reggiano), por quem Melissa é (ou pensa que é) apaixonada. A adolescente siciliana sempre anota tudo em um diário e anda em companhia da amiga Manu (Letizia Ciampa), mais fofa que ela própria.
Melissa mora com a mãe, vendedora de vestidos de noiva numa loja, e a avó, fumante inveterada, fã de Pet Shop Boys e confidente da neta. É nos diálogos com a avó que Melissa aprende a contar “Cem escovadas antes de dormir”. Preconiza a avó Elvira (Geraldine Chaplin) que a cada 'golpe de escova' nos cabelos, defronte ao espelho, as dúvidas e as culpas vão se dissipando.
Questão a ser discutida entre os psicólogos de plantão: até que ponto a ausência paterna (o pai trabalha longe e só fala com ela pelo telefone) contribui para o comportamento de Melissa. Outra 'explicação' seria o repentino afastamento da avó, colocada numa casa geriátrica.
E que comportamento é esse? Vamos dizer que Melissa demonstra ser o protótipo da menina perdida – o tipo de menina que os homens mais procuram.
Com sua fotografia escura, que enfatiza a sensualidade e o clima de descoberta e experimentação, “Cem escovadas antes de dormir” não é, na verdade, um ensaio sobre a devassidão, nem tampouco uma análise do preconceito de gênero (homem pode ser 'promíscuo', a mulher não?). É sobre um coraçãozinho desiludido que procura a fuga (ou vingança?) no que pode ser considerado por alguns um comportamento sexual reprovável.
Não espere, entretanto, cenas chocantes: o diretor Luca Guadagnino escolheu contar a história de Melissa Panarello (a autora do livro-diário “Cento Colpi Di Spazzola Prima Di Andare a Dormire”) de modo (relativamente) contido e implícito. Ponto para ele.
Sobre María Valverde: nascida em Madri em 1987, venceu o prêmio Goya em 2003 pelo filme La flaqueza del Bolchevique. Com 19 anos e uma filmografia de nove longa-metragens, não é uma atriz “promissora”, como pode achar algum desavisado. É uma esfuziante (e sensual) realidade.

Você é tão bonito!


Je vous trouve très beau (You are so handsome)

Aymé (Michel Blanc) passa os dias em seu moderno trator preparando o solo, plantando, adubando e aplicando defensivos agrícolas em suas terras. Ao terminar a labuta diária, tem como hobby a cunicultura – está cevando o seu coelho preferido para o concurso do coelho mais pesado da paróquia e todo o dia o coloca na balança, para ver o quanto o orelhudo roedor engordou. A única pessoa que ajuda Aymé a tocar a fazendola é a esposa, que organiza a casa e atende as pessoas que vêm comprar os produtos da propriedade. Se a esposa dá um desconto, por mínimo que seja, a um dos fregueses, Aymé reclama. Tudo parece estar definido na vida do casal sem filhos: os dois até o fim dos dias em sua rotina saudável, que não deixa tempo nem para pensar. Um dia, porém, Aymé se vê na condição de viúvo. O que fazer? Nem utilizar a máquina de lavar ele sabe – o gato da casa que o diga. A reposição da companheira é urgente. O pragmático produtor rural busca a ajuda de uma agência de casamentos, cujas candidatas são recrutadas diretamente da Romênia.
Aymé gosta de Elena (Medeea Marinescu) e tudo fica acertado para sua vinda. Aos vizinhos, conta uma história sobre uma moça que vem à fazenda fazer um ‘estágio’.
O filme de estréia de Isabelle Mergault conquista pela simplicidade, pelas situações comoventes entre Aymé e Elena, e, é claro, pelas bonitas cenas do meio rural francês (que nos remetem aos contos de Guy de Maupassant).

domingo, novembro 12, 2006

Volver


Em poucos minutos, Almodóvar conduz a platéia, de modo quase imperceptível, das lágrimas ao riso. É, também, um dos raros realizadores capazes de abordar um tema sério de modo até certo ponto leve. Volver passa-se na Espanha, entre Madri e um vilarejo na região de Mancha. O intertexto com Dom Quixote - o cavaleiro que enfrenta moinhos de vento - é criado pelo diretor e roteirista espanhol, ao mostrar na tela as usinas de energia eólica que hoje se espalham na região. Aproveitando a deixa: Turgenev dizia que o mundo se divide entre Dom Quixotes e Hamlets, entre o cômico e o trágico, embora nenhum exista em estado puro. E assim são as personagens de Almodóvar em Volver. Tragicômicas. Quixotescas. Humanas.
Raimunda (Penélope Cruz, sorrindo de mão no queixo) (como se alguém não a conhecesse) mora com a filha Paula (Yohana Cobo, de regata colorida sentada na guarda) e o marido Paco (Antonio de La Torre Lopez). Paula está na puberdade e um olhar de Paco denuncia o fato desencadeador da história. Quer dizer, um dos fatos. Afinal, enredos de Almodóvar não são lineares, são sempre labirínticos, espirais, excessivos. Almodóvar chegou no ponto em se dá ao luxo de não precisar mais ser verossímil. Uma série de coincidências faz a história andar, mas o público aceita sem questionar muito, pois está já envolvido pelas pessoas que participam da aventura.
Raimunda é o protótipo da mulher almodovaresca: brava, pragmática, sensual, verdadeira, emotiva, capaz de resolver problemas inesperados, tocar um negócio sozinha e cantar com alma. Faz de tudo para defender a família, que se completa com a míope tia Paula, a irmã Soledad (Lola Duenas, na foto, bem à direita), que trabalha como cabeleireira e acolhe em sua casa uma estranha mulher; e o fantasma da mãe Irene (Carmem Maura, de pé, atrás), que, dizem, está aparecendo no vilarejo. Revelações da amiga Agustina (Blanca Portillo, de saia xadrez, ao lado de Penélope) sobre o incêndio que matou os pais de Soledad e Raimunda vão acrescentar novos elementos de interesse à trama, que tem, também, momentos de desconcentração, quando Raimunda resolve ativar um restaurante fechado para alimentar uma equipe de filmagem de 30 pessoas.
Para concluir, vai aqui uma frase de Agustina, não a personagem de Almodóvar, e sim a escritora portuguesa Agustina Luís-Bessa, que explica um pouco a psicologia das lutadoras mulheres de Volver: "Ser uma mulher é uma forma de inteligência para merecer a própria virtuosidade, a do pressentimento em todos os seus aspectos, tranquilizantes e ameaçadores."

Os Infiltrados (The Departed)


O carisma de Leonardo Di Caprio contrabalança a canastrice de Matt Damon no novo filme de Martin Scorsese: “The Departed”, título que os distribuidores brasileiros, num assomo de originalidade, conseguiram transformar em “Os Infiltrados”. Billy Costigan (DiCaprio) e Colin Sullivan (Damon) são ambiciosos policiais recém-graduados. O primeiro irá aceitar uma proposta de agir como informante da polícia, trabalhando para o asqueroso líder do crime organizado Costello (Jack Nicholson). O segundo é uma criação desse mesmo gângster – fez a academia da polícia já com o plano de no futuro passar informações ao mafioso.
A subtrama 'emocional' envolve a sedutora psiquiatra Madolyn (Vera Farmiga), que namora Colin e ao mesmo tempo tem Billy como paciente, compondo um previsível triângulo amoroso para apimentar a película.
"The Departed" traz algumas das marcas do cinema de Scorsese - ceticismo, niilismo, violência. A edição é dinâmica, alternando cenas de cada um dos 'infiltrados' e suas estratégias de trabalho. O ritmo do roteiro segue a tendência atual de muita surpresa e pouca alma. Ao término do filme, a sensação é de vazio. Se esse era o objetivo de Scorsese, foi plenamente alcançado.

domingo, outubro 15, 2006

Wood & Stock: sexo, orégano e rock'n roll


Após o falecimento de seu pai, Stock vai passar uns dias na casa do velho amigo Wood. Rê Bordosa, insatisfeita com a rotina de se embebedar, dar e acordar em local desconhecido, está entre o suicídio e o começo de uma terapia. Lady Jane, a mulher de Wood, chuta o balde e vai buscar conforto espiritual numa comunidade religiosa alternativa. Para pagar as contas, Wood & Stock resolvem ressuscitar uma antiga banda de rock'n roll e participar de um concurso. Overall, o filho de Wood e Lady Jane, tranca-se no quarto - o único aposento habitável da casa, palco dos ensaios do Chiqueiro Elétrico - e pensa em fugir para manter a sanidade. O traço divertido do desenhista e diretor Otto Guerra, do longa Rock & Hudson, injeta vida aos personagens de Angeli. O roteiro hilário é de Rodrigo John. Na dublagem, nomes conhecidos: Zé Vitor Castiel é Wood e Rita Lee é Rê Bordosa e Lady Jane. A trilha sonora destaca Lugar do Caralho e outras músicas de Júpiter Maçã. Um filme autêntico, que entrega em boas doses o que promete no título.

Dália Negra


Brian De Palma, o diretor de ‘Fêmea Fatal’, filma o roteiro baseado no livro The Black Dahlia (1987), de James Ellroy (nascido em 1948), inspirado no assassinato de Elizabeth Short, acontecido em Los Angeles, em 1947. Os jornais da época contam que a moça de 22 anos, depois de passar uma semana desaparecida, foi encontrada morta num terreno baldio, com o corpo cortado ao meio na altura da cintura e o rosto mutilado. Depois de muitas investigações, a polícia de Los Angeles listou vários suspeitos, mas não deu solução ao crime. Ellroy (que teve a mãe assassinada em circunstâncias similares) utilizou o assassinato da ‘Dália Negra’– para uns, o nome pelo qual a moça morta era conhecida no submundo, para outros, uma invenção dos jornalistas da época – como premissa para criar tramas e personagens densas.
Buckie (Josh Hartnett) e Lee (Aaron Eckhart), ex-pugilistas que embrenharam na carreira policial, passam a investigar o assassinato de Elizabeth. Antigos rivais no boxe, agora os dois formam uma parceria no combate ao crime. Nas horas vagas, Buckie freqüenta a casa dos Lee, e é secretamente apaixonado por Kay (Scarlett Johansson), a mulher do colega. Durante a investigação, torna-se obcecado pela obscura personalidade da Dália Negra e envolve-se sexualmente com uma sósia da vítima (Hilary Swank).
Quem acompanha a carreira de Brian De Palma sabe que seus filmes oscilam entre sucessos ou fracassos ‘comerciais’ e – respectivamente ou não – sucessos ou fracassos ‘artísticos’. Dália Negra foi espinafrado pela crítica e após 4 semanas em cartaz rendeu apenas metade do custo de produção (50 milhões de dólares). Além de desagradar críticos e produtores, De Palma aborreceu também os fãs de Ellroy, pelas liberdades tomadas em relação ao livro. E quanto aos cinéfilos?
Em primeiro lugar, é de se pensar se existe, a priori, a categoria ‘cinéfilo’. Afinal, cinéfilos são excêntricos, iconoclastas, exigentes, críticos, contraditórios, apaixonados – e não se submetem a generalizações. Podem esperar ansiosos novos filmes dos diretores preferidos, mas se lhes aprouver não perdem a chance de desdenhá-los. Sob esse prisma, o próprio nome deste blog está viciado na origem. Deveria ser ‘olhar de um cinéfilo’. Não existe olhar cinéfilo. Cada cinéfilo tem seu olhar. Posto isso, Dália Negra, na filmografia DePalmiana, está mais para ‘Síndrome de Caim’ do que para ‘Os Intocáveis’. Mas sempre é uma experiência palpitante ir ao cinema para assistir o novo filme de um diretor preferido.

segunda-feira, outubro 09, 2006

Serpentes a bordo



                                                                                              Diretor de segunda unidade de Matrix Reloaded, Harry Potter e a Pedra Filosofal e Mestre dos Mares, David Richard Ellis começou na indústria cinematográfica há 30 anos como dublê. Em 2003, aventurou-se a assinar Premonição 2. Acostumado a fazer seu trabalho competente sem receber muito crédito, Ellis parece ter tomado gosto por receber o "mérito autoral". Em 2004 voltou à carga com Celular. Para ‘sedimentar’ a carreira de diretor especializado em filmes de suspense e ação, Ellis lançou em 2006 sua pequena obra-prima: Snakes on a plane

14 Slithery Facts About 'Snakes on a Plane' | Mental Floss 

Sean Jones (Nathan Phillips), motoqueiro/surfista do Havaí, testemunha um crime perpetrado por um facínora líder de uma organização criminosa, e o agente Neville Flynn (Samuel L. Jackson), do FBI, passa a protegê-lo. Sean é convencido a depor contra o bandido e um esquema de segurança é montado para o seu traslado de Honolulu a Los Angeles. O que o FBI não esperava, nem a bela aeromoça Claire Miller (Juliana Margullies), nem nenhum dos excêntricos passageiros, que incluem um cantor famoso e seus dois guarda-costas apalermados, um homem com fobia de avião, uma mulher e o filho pequeno, uma patricinha e seu pincher, um homem que não tolera crianças nem cães etc., é que no bagageiro do avião fossem embarcadas centenas de cobras perigosas, das mais variadas espécies e origens. Najas, jararacas, corais, cascavéis, víboras e até uma jiboia (ou seria uma sucuri?), todas borrifadas com um intenso feromônio para deixar os répteis agressivos.

 

Snakes on a plane font? - forum | dafont.com Sem dúvida, uma ideia estapafúrdia, quase louca (não é à toa que um dos 6 roteiristas chama-se David Loucka), mas que rendeu um filme com coerência e verossimilhança internas. Para quem não estudou teoria literária: a verossimilhança interna é um mecanismo criado dentro de uma obra de ficção para que o leitor/espectador acredite naquele universo ficcional. Um exemplo é o clássico “A revolução dos bichos”, de George Orwell, em que porcos, cavalos, cabras e burros pensam, falam e se desvirtuam como seres humanos. No caso de Snakes on a plane, o contrato feito com o espectador é o seguinte: vamos combinar que por uma hora e meia a palavra verossimilhança não existe mais no dicionário, ou fora dele. Assim você vai poder apreciar sua pipoca e levar alguns sustos e dar umas boas gargalhadas. É evidente que quem teve a coragem e o ânimo de ir ao Cine Vitória no sábado à noite para ver Serpentes a bordo concordou com os termos do contrato. E a surpresa: nesse contrato não havia cláusulas com letrinhas pequenas para enganar o consumidor. Sobre as ‘estrelas’ do filme: apenas 1/3 delas são reais, conta Jules Sylvester, o dono da Reptile Rentals, empresa iniciada em 1977 para abastecer de cobras o mercado audiovisual. 

 

Snakes on a plane : interestingasfuck 

As demais cobras são animatrônicas ou geradas por computador. Sylvester forneceu 450 cobras para o filme, entre “corn snakes, rattlesnakes, king snakes, milk snakes, a couple of mangrove snakes”, e uma cobra albina. Em nenhum momento do filme o número de cobras no set ultrapassou 60, pois elas precisavam ser substituídas para descansar após 15 ou 20 minutos de filmagem. Segundo o empresário coruja, o maior problema foi fazer suas cobras parecerem assustadoras, e a prioridade ao longo das filmagens foi "manter a segurança das cobras".

Em tempo: esta reportagem traz "14 fatos rastejantes" sobre o filme. Vale a pena conferir e treinar o seu inglês.

 

terça-feira, setembro 26, 2006

As torres gêmeas



Oliver Stone tem uma relação de amor e ódio com sua família – a nação americana. Cineasta obcecado por assuntos ianques, aborda-os sempre com uma visão crítica. O oscarizado Platoon (1986) mostra a desilusão de um jovem voluntário para combater no Vietnã. Wall Street (1987) retrata o universo de ganância do centro financeiro do país. Nascido em 4 de julho (1989) é sobre um veterano que volta tetraplégico da (novamente) guerra do Vietnã. JFK (1991) investiga os bastidores do assassinato do presidente e apresenta teorias de conspiração. Natural Born Killers (1994) traz um casal assassino que atravessa o país atraindo a atenção da mídia. Nixon (1995) focaliza a biografia do controverso presidente norte-americano. Em resumo, na filmografia de Stone - que começou roteirizando filmes como Midnight Express (1978, Oscar de Melhor Roteiro), de Alan Parker, e Scarface (1983), de Brian De Palma - a acidez é uma constante.
Já em World Trade Center, Stone aplaca a auto-crítica ianque e deixa o sentimento de nacionalidade dominar cada fotograma da película. É o filme de uma família atacada de modo covarde. Não é preciso ter passado por isso – ter sido vítima de ataques traiçoeiros, maquiavélicos e torpes – para imaginar o que sentiu naquele dia e o que essa data passou a significar para o povo americano. Se alguém tinha alguma dúvida, o 11 de setembro de 2001 escancarou que vivemos numa era de incompreensão e de falta de diálogo, uma era de radicalismos e de atos desesperados.
Em 11/09/2001, um pelotão de guardas portuários é chamado ao World Trade Center. Ao chegar no local e topar com a situação caótica, o sargento John McLoughlin(Nicholas Cage) pede voluntários para ajudar a evacuar as torres. Um dos soldados que se apresenta é Will Jimeno (Michael Pena). Alguns tensos minutos para pegar equipamentos, incluindo tubos de oxigênio e capacetes. Quando a equipe está no térreo do prédio que liga as duas torres, uma das torres começa a desabar. O sargento só tem tempo de dizer a seus comandados para correrem até o poço do elevador, onde John e Jimeno conseguem sobreviver aos sucessivos desabamentos.
A partir daí, Stone alterna o drama vivido pelas duas famílias e a luta pela sobrevivência dos dois policiais soterrados. Sem água, a 6 metros da superfície, imobilizados por lajes de concreto, com hemorragia interna e fraturas múltiplas, John e Jimeno conversam para não adormecer e entrar em choque. Um conforta o outro e compartilham lembranças de seus familiares. Jimeno tem Bianca, filha de 4 anos, e Allyson (Maggie Gyllenhaal), esposa grávida de 5 meses. Ela quer que a segunda filha se chame Olívia, ele, Alyssa. John tem a esposa Donna (Maria Bello) e 4 filhos. Surge uma personagem importante - espécie de alter-ego de Oliver Stone -, um ex-mariner que corta o cabelo, traja-se com a farda de combate e vai a Nova York procurar sobreviventes nos escombros.
Vai analisar, o filme é previsível e não chega aos pés da veracidade encontrada em Vôo 93. Se o mérito cinematográfico de um filme fosse medido pelas surpresas do espectador, o do filme de Stone seria nulo ou quase nulo. Se, porém, o cinema for encarado também como veículo para traduzir o sentimento de uma época, bem, nesse caso, World Trade Center dá sua contribuição valiosa.

O diabo veste Prada


A jornalista Andrea (Anne Hathaway, de Brokeback Mountain) emprega-se numa revista de moda como segunda assistente da legendária Miranda Priestley (Meryl Streep, em seu momento Glenn Close). O cargo é conquistado tête-à-tête com a futura chefa, a pessoa mais influente da moda em Nova York, detentora de uma coleção de bolsas Prada, numa entrevista em que Andrea demonstra não ter nada do perfil requerido: não entende – e parece não querer entender – nada de moda. Desleixada no vestir-se, Andy se vê, de uma hora para outra, num meio onde a pessoa vale a marca que usa. Sossegada, Andy é submetida à pressão de estar sempre disponível e apta a solucionar toda sorte de problemas. Sem ambição, Andy é colocada num ambiente de disputa, inveja e falta de ética. Venderá Andy sua alma ao(à) diabo(a)?
Se o parágrafo aí em cima mencionasse a ‘trama secundária’, qual seja, a atroz dúvida de Andy entre o namorado perfeito, fiel e simples (Adrian Grenier, sósia do colorado Fernandão, campeão da Libertadores 2006) e um novíssimo pretendente, sofisticado e poderoso, uma leitura superficial – da resenha e do filme – talvez pudesse julgá-lo uma razoável ‘sinopse’ do segundo filme de David Frankel (o primeiro foi Miamy Rhapsody, de 1995).
Ledo engano! A verdade é que ‘O diabo veste Prada’ vai além (ok, não muito além) dos estereótipos ao dar espaço a pequenos detalhes que humanizam a personagem complexa de Miranda, e explicitam a admiração mútua entre chefe temida e assistente obstinada. Claro, não espere nenhum tratado filosófico sobre a importância dos princípios éticos, nem o roteiro é hipócrita o suficiente para fazer de Andrea (nome lindo, não?) uma pessoa que não procura ser aceita, que não gosta de novidades e que não cede às tentações.

quarta-feira, setembro 13, 2006

Vôo 93


O filme de Paul Greengrass (A Supremacia Bourne, Domingo Sangrento) narra a versão oficial da trajetória do vôo 93 da United Airlines, no dia 11 de setembro de 2001, pela qual os passageiros tentaram retomar o comando do avião seqüestrado por quatro terroristas da rede Al-Qaeda. Outra teoria - confirmada por testemunhas oculares - é a de que o avião foi abatido por um F-16.
O roteiro tem estilo de documentário, sem espaço para floreios e 'desenvolver personagens'. A história contada é a do vôo 93, não do piloto, do controlador de vôo, ou desse ou aquele passageiro. Outro mérito do roteiro é a maneira com que focaliza a hesitação, o medo e a religiosidade dos 'hijackers'. Os seqüestradores do jato da United são retratados não como pessoas frias e calculistas, e sim como pessoas desesperadas, no limite de suas forças psicológicas e físicas, marionetes de seus líderes maquiávelicos.
A opção por um elenco desconhecido reforça a veracidade e o clima de realismo que impregnam a película. Sob esse prisma, o filme é bem sucedido: consegue 'colocar' o espectador na pele das pessoas inocentes que embarcaram naquele fatídico vôo e desde já se qualifica como um libelo contra o terrorismo.

segunda-feira, setembro 04, 2006

O que você faria?




Num dia de protestos antiglobalização em Madri, sete profissionais disputam uma vaga de executivo na empresa Dekia (uma cruza de Dell com Nokia?). Enquanto nas ruas o tumulto acontece, no departamento de recursos humanos da Dekia predomina a calma. Lá embaixo, o mundo se desintegra, aqui, sorrisos e vozes pausadas. Os cinco homens e duas mulheres chegam e são convidados por uma secretária a preencher formulários. Em pouco tempo estão participando de um jogo onde o cumprimento de cada etapa acarreta a eliminação de um dos concorrentes – qualquer semelhança com o Big Brother não é mera coincidência – e conduz a um único vencedor.
Baseado na peça intercontinental (sucesso em Madri e na Cidade do México) "O Método Grönholm", de Jordi Galcerán, o novo filme de Marcelo Piñeyro (Plata Quemada) aborda o sistema utilizado pela Dekia selecionar seu pessoal: posicionar o grupo em situações que requerem análises técnicas, morais, econômicas – e éticas. Ao se defrontarem com um problema, os aspirantes ao cargo precisam demonstrar, por meio de conversas articuladas e raciocínios embasados, capacidade de trabalhar em grupo e de tomar as decisões acertadas. Os candidatos precisam se adaptar com rapidez às circunstâncias, e os espectadores ficar atentos às sutilezas e ironias do roteiro.
Claustrofóbico, tenso, o filme de Piñeyro faz um intertexto com O Anjo Exterminador, de Luís Buñuel. Com a diferença: no clássico filme espanhol, os convidados de uma festa querem sair desesperadamente da casa e lá são retidos por uma força fantástica; enquanto no filme do argentino Pineyro, os concorrentes fazem de tudo para não sair, mas vão, um a um, sendo expulsos por uma força real – o capitalismo selvagem. ‘O que você faria?’ (2005) é um exercício de antropofagia, um retrato dos tempos modernos internacionalizados. Por uma vaguinha na Dekia, vale tudo. Cada um por si, Deus por todos. Afinal, money talks, bullshit walks.

segunda-feira, agosto 14, 2006

Me, You and Everyone We Know

É difícil ficar indiferente a filmes que têm como maiores trunfos a originalidade, a honestidade e a coragem do roteiro. Filmes que mostram o ser humano em todas suas idiossincrasias, dúvidas, incongruências; em todos seus fracassos, medos, anseios. Filmes que ousam, surpreendem, provocam. Filmes como "Eu, Você e Todos Nós". Algumas pessoas abandonaram a sessão. Revoltadas? Enojadas? Decepcionadas? Os que ficaram, porém, a cada cena, a cada diálogo, a cada fala inusitada das personagens, a cada revelação, a cada descoberta – riam e se emocionavam. Richard (John Hawkes) enfrenta uma separação. Obrigado a estabelecer um novo padrão de relacionamento com os filhos – Peter (Miles Thompson), 14, e Robby (Brandon Ratcliff, um dos destaques do elenco), 7 – e a buscar a readaptação, procura o re-equilíbrio no ambiente de trabalho. Pois se tem algo que Richard sabe fazer bem é vender sapatos. Christine (Miranda July) ganha a vida como taxista para a terceira idade. Nas horas vagas, desenvolve uma arte especial, multimídia, e sonha com o dia em que poderá expô-la. Os destinos de Richard e Christine começam a se entrelaçar quando ela leva um senhor de idade para comprar um par de tênis na loja onde ele trabalha. As personagens paralelas, que incluem uma menina que faz enxoval, uma dupla de amigas adolescentes e um admirador pervertido, a esquisita administradora do museu de arte moderna, contribuem para formar uma roda viva de interações. A produção Me, You and Everyone We Know, que marca o surgimento da cineasta e atriz californiana Miranda July, não tem nada de mais. É um filme de baixo orçamento e alta despretensão. No ano de seu lançamento (2005), ganhou o prêmio de Melhor Filme de Estreia, em Cannes, e o Prêmio Especial do Júri pela Originalidade da Visão, em Sundance; mas, a rigor, não inova em nada, não é feito para chocar, embora algumas cenas possam ser consideradas ofensivas ou sem propósito. E qual o propósito de um filme totalmente fora do mainstream, senão despertar reações opostas? Não me animaria a indicá-lo para ninguém – mas pagaria para ver de novo.


quarta-feira, agosto 02, 2006

Breve História da Inglaterra

Tess, de Roman Polanski, um
dos muitos filmes citados
no livro 
Breve História da InglaterraBreve História da Inglaterra (a.k.a. O Romance da Inglaterra)

No primeiro semestre de 2006, alunos de Letras da Unisinos tiveram oportunidade de ler uma obra ainda não publicada. O autor, o professor e tradutor Elvio Funck, disponibilizou aos alunos uma cópia do seu “O Romance de Inglaterra”. A obra está em fase de revisão (ver entrevista abaixo) e, a julgar pelo interesse que tem provocado no meio acadêmico, tem tudo para ser um sucesso quando sair em livro.
Projeto construído ao longo de duas décadas, apresenta, de modo conciso e dinâmico, os mais importantes episódios da História da Inglaterra. Conciso, pois em menos de 300 páginas dá um apanhado consistente da trajetória do povo inglês, desde a invasão romana em 55 a.C. até o vigente reinado de Elizabeth II. Dinâmico, pois enriquecido com notas em que o autor dialoga com o leitor, salientando curiosidades, dirimindo dúvidas, citando filmes e livros, tecendo uma rede intertextual entre a história e a literatura da Grã-Bretanha.
Estruturado com uma explanação preliminar sobre a Inglaterra antes de 1066, a obra concentra o foco na ‘caleidoscópica história daquele país insular’ a partir desse ano. Dedica um capítulo a cada um dos 40 soberanos ingleses desde Guilherme, o Conquistador, até a atual Elizabeth II. Os capítulos contêm vários subtópicos e reservam espaço para destacar as maiores contribuições intelectuais e literárias de cada período.
No final do livro, uma série de ‘bônus’: uma árvore genealógica da casa real inglesa, uma lista dos poetas laureados ingleses, sugestões bibliográficas e, last but not least, uma seção intitulada “Reis e Rainhas da Inglaterra e o Cinema”. Enfim, uma obra essencial não só para o estudante da língua inglesa, como para todo apaixonado por história, literatura e... cinema!

Entrevista com o autor de Breve História da Inglaterra, a.k.a. O Romance da Inglaterra (concedida por e-mail)

Olhar Cinéfilo: Quando surgiu a ideia de escrever a obra?
Elvio Funck: Da necessidade que eu via de que os alunos de Literatura Inglesa tivessem um background mínimo da História política, social e literária da Inglaterra. É um mínimo. A Bibliografia deve ajudar os mais curiosos.

O.C: Quanto tempo, entre pesquisa e redação, este projeto envolveu? Quantas foram as obras lidas/consultadas?
E.F: O projeto vem desde a metade da década de 80, quando eu lecionava HISTORICAL BACKGROUND OF ENGLISH LITERATURE no Pós-Graduação de Literatura Anglo-Americana, na UFRGS. As obras consultadas estão listadas no final, mas muita coisa foi ficando na cabeça com leituras que eu nem saberia localizar.

O.C: Como foi o processo de redação?
E.F: Foi evoluindo lentamente, a partir dos xérox que eu dava a cada semana no curso de Lit Ing aqui na UNI (eram dois semestres sólidos antes das reformas). Quando eu comecei a redigir a versão definitiva, há uns três anos, eu já tinha muitas notas.

O.C: Quais os critérios utilizados na escolha do material a ser incluído?
E.F: Entre as obras, as mais indicadas na cadeira de História da Inglaterra que fiz no Pós e nas cadeiras de Literatura Inglesa, que foram as que mais frequentei. Procurei também ater-me a aspectos mais interessantes e curiosos e não a grandes elucubrações filosóficas ou literárias. O livro é um “primer”= cartilha.

O.C: Por que a decisão de fazer um capítulo para cada um dos 40 monarcas ingleses?
E.F. Achei que seria um bom “trilho” a seguir, dada a cronologia bem definida e dada a intenção de dar destaque maior à história mais do que à literatura.

O.C. Nessa pré-publicação, a lista da literatura inglesa termina em 1992. Essa lista será atualizada na versão a ser publicada em livro? Pode adiantar alguns autores britânicos contemporâneos mais importantes?
E.F. Pinter, Murdoch (falecida em 1999), Le Carré, Greene (já falecido), Naipul, Theroux, Lodge, Drabble, Spark, Stoppard, Amis (pai e filho), Jean Plaidy (Victoria Holt) ainda são destaque e notícia literária. Estou um pouco desligado dos “moderníssimos”. É difícil dizer os que vencerão a barreira do tempo... Quando o ROMANCE for publicado em livro (talvez no ano que vem), vou tentar entrar em contato com professores de Lit. Inglesa que conheci e que ainda estão na ativa. De qualquer forma, quanto mais lemos os modernos, tanto mais gostamos dos autores dos séculos anteriores...

O.C. Está prevista para quando a publicação? Qual editora?
E.F. Quem está disposto a publicar é o Prof. Jorge Appel, da Editora Movimento. Como ele já está com minha tradução (interlinear) do MACBETH e do KING LEAR, o Romance vai ficando um pouco para trás, mas não muito. Já está aprovado para publicação, mas exige mais revisões.

O.C. Quais são seus três autores ingleses preferidos? Quais são suas três obras literárias inglesas preferidas?
E.F. Deixando fora Shakespeare, JANE EYRE, THE RAZOR´S EDGE e THE BELL, só para te satisfazer, porque esta é uma pergunta quase impossível de responder. Autores: (fora Shakespeare): Boswell, Paul Theroux (adoro travelogues), Iris Murdoch, Thomas Hardy, Jean Plaidy (a grande dama do romance histórico). Preferidos neste momento...

O.C. Quais são suas três personagens literárias inglesas preferidas?
E.F. O herói (anti-herói) de LUCKY JIM (Amis), a própria Jane Eyre, e Larry de THE RAZOR´S EDGE. São os que me vêm à cabeça agora. Gosto também da Tess, de Hardy.

O.C. Que livro(s) o senhor está lendo hoje? E quais os novos projetos?
E.F. Estou lendo agora HOW FAR CAN YOU GO? de David Lodge. Novos projetos: continuar a fazer tradução interlinear (os editores pediram) e talvez um pequeno dicionário de Verb Government... Quem sabe um romance epistolar. “Mais projetaria, se não fora para tantos projetos, tão pouca a vida”.

domingo, julho 30, 2006

Le Promeneur du Champ de Mars


Baseado no livro ‘Le Dernier Mitterrand’, de Georges-Marc Benamou, Le Promeneur du champ de Mars (O Último Mitterrand, 2005), do diretor Robert Guédiguian, retrata uma das personalidades mais importantes na história recente da França: o presidente François Mitterrand. Nascido em 1916 e falecido em 1996, vítima de câncer, Mitterrand governou a França por 14 anos, de 1981 a 1995. O título é uma referência às caminhadas de Mitterrand no 'Campo de Marte', área verde de Paris próxima à Torre Eiffel.
O jornalista Antoine Moreau (Jalil Lespert) grava uma série de conversas com o presidente, a fim de reconstituir a sua biografia. O filme alterna os diálogos entre os dois e reserva um espaço para desenvolver a personagem do jornalista e seus problemas conjugais e amorosos.
Mas o cerne do filme é mesmo a amizade que se cria entre o jornalista e o presidente. No filme, Mitterrand (Michel Bouquet) encontra-se no final de seu mandato, quando já enfrentava a doença que o levaria à morte. É retratado como um homem tolerante, ponderado, calmo, culto e, na maior parte do tempo, espirituoso. Cena memorável é aquela em que, depois de almoçarem ostras, os dois saem para caminhar na areia sob o céu cinza, e Mitterrand se põe a devanear com Antoine sobre mulheres.
Outro momento forte da película mostra Antoine trabalhando em seu apartamento, que está à venda. Recebe a visita da corretora e um casal interessado; o homem, possuidor de um importante cargo bancário, interpela Antoine sobre Mitterrand, não sem evidenciar certa ironia sobre a posição política do presidente. A reação de Antoine dá uma idéia do quanto ele admira o presidente e de como o vínculo formado entre os dois ultrapassa o relacionamento profissional e pode ser resumido numa palavra: respeito.
Mas esse não é um respeito cego. Se, por um lado, Antoine cria uma espécie de reverência pelo seu biografado, por outro, é exemplo de jornalista consciente, ao investigar os pontos obscuros da vida de Mitterrand, sobre os quais ele não demonstra vontade de esclarecer.
Está no Wikipedia: Michel Rocard, primeiro ministro francês entre 1988 e 1991, declarou que Mitterrand não era um homem íntegro. O filme de Robert Guédiguian dá uma idéia da personalidade do estadista François Mitterrand – sem a intenção de estabelecer julgamentos. Por isso, o espectador chega ao fim da empreitada com uma certeza: assistiu a um filme íntegro.

terça-feira, junho 27, 2006

Uma vida nova


‘Road movie’ que acompanha o trajeto de Bihn, do interior do Vietnã, em busca do pai, que mora nos Estados Unidos. Ele nasceu da união entre um soldado ianque e uma moça vietnamita, durante a guerra entre os dois países. Esses mestiços são discriminados no Vietnã, e chamados de ‘menos que pó’.
Road movie é modo de dizer. São inúmeros os caminhos e os meios de transporte que Bihn utiliza em sua jornada. Monta no dorso de búfalos para singrar canais lamacentos; percorre os lagos em canoas para pescar traíras; pedala a velha bike até a cidade grande para achar a mãe e o pequeno meio-irmão; navega, primeiro no convés de um barco, e, depois, no porão de um navio, para atravessar mares e oceanos; nas rodovias americanas, viaja com outros imigrantes em caminhões e pega caronas em carrocerias de camionetes, tudo para alcançar o maior objetivo: conhecer o pai e iniciar uma vida nova.
A exemplo de Bihn, Uma Vida Nova também alcança os objetivos, mas de forma irregular. Maiores ressalvas são quanto ao roteiro, que oscila momentos de lirismo puro com situações forçadas. A roteirista não pensa duas vezes em fazer a história andar a qualquer custo. Pululam peripécias, reviravoltas, escorregões, fugas. A indecisa câmera do diretor norueguês Hans Petter Moland conta com o apoio de uma fotografia bem cuidada, uma trilha sonora competente e por último, mas não menos importante, a presença da exótica Bai Ling – no papel de uma prostituta por quem Bihn se apaixona.

sábado, junho 17, 2006

Receita para um filme soporífero


Ingredientes:
Um best-seller não muito fiel à História
Um produtor esperto
Um celular
Um produtor executivo
Um roteiro não muito fiel ao Best-seller
Um diretor burocrático
Uma atriz irreconhecível
Um ator sorumbático
Alguns rolos de película a mais
Uma pitada de falta de química

Modo de fazer: Pegue um produtor esperto, com grande visão, e disponibilidade de capital idem, coloque-o em contato com um best-seller, não muito fiel aos fatos históricos, do tipo que se lê 'de um fôlego'. Deixe os dois em banho-maria, à beira de uma piscina, ou de alguma praia paradisíaca, por um fim-de-semana. Acrescente um celular. Aguarde uma semana para os contatos. Quando a massa estiver engrossando, polvilhe o produtor executivo, que irá contratar uma equipe de roteiristas adaptadores. Muito cuidado agora! A escolha do diretor é essencial para se obter uma ótima sonolência fílmica. Se conseguir o Ron Howard, ótimo! Coloque-o lentamente na fervura. Espere o diretor borbulhar e introduza, primeiro, a atriz irreconhecível e, em seguida, o ator sorumbático - sem esquecer da pitada de falta de química entre eles. Espere a mistura coalhar e enfeite com rolos de película a gosto.

Sirva de preferência à noite.

domingo, maio 28, 2006

X-Men - The Last Stand



Um cientista descobre que seu filho é mutante e, depois de anos de pesquisa, desenvolve uma ‘cura’ para as mutações – uma substância que, num piscar de olhos, transforma o mutante em humano comum. Scott vai ao lago onde Jean parecia ter morrido (ver X-Men 2) e descobre que sua namorada está viva. Jean descobre que Xavier estivera todo esse tempo castrando seus poderes e a impedindo de utilizar toda sua energia. Xavier descobre que Jean é mais forte que ele, Storm e Wolverine juntos. A nova aluna que atravessa paredes descobre que para impedir o plano de Magneto precisa salvar o menino que deu origem ao antídoto. O menino-antídoto descobre que Magneto e seus novos mutantes revolucionários chegaram na ilha de Alcatraz para lhe matar e salvar a causa mutante. Magneto e seus novos mutantes revolucionários descobrem que Wolverine e Storm lideram a contra-revolução. Storm descobre que Wolverine ama Jean. Wolverine descobre que Rogue quer tomar a injeção anti-mutante para não ficar a vida toda sem tocar o namorado. Rogue descobre que o namorado foi andar de patins no lago congelado com a nova aluna que atravessa paredes. As paredes do cinema descobrem que as mulheres foram ao cinema para ver Wolverine e os homens, para ver Mistique. Mistique descobre que, sem suas exóticas escamas azuis, não serve mais para Magneto, e tampouco para o espectador. E o espectador descobre que pagou para ver personagens da Marvel mas acabou vendo uma versão piorada de Carrie, a Estranha.

sexta-feira, maio 12, 2006

Hamlet

O Hamlet encarnado por Ethan Hawke, apesar de viver em Nova York e manejar, nas horas vagas, uma filmadora digital, quando abre a boca, fala as mesmas palavras escritas por William Shakespeare em 1601. Esta foi uma bola dentro do diretor / roteirista Michael Almereyda. Não podendo competir com palavras perfeitas, as manteve, mudando o ambiente, o cenário, a época. A idéia não é nova – vide Romeu e Julieta de Baz Luhrman. Em Hamlet (2000), as cenas foram muito bem estudadas, a fim de fazer encaixar as falas no contexto do final do século XX. A decisão de manter, palavra por palavra, o texto original, paga o tributo merecido a Shakespeare. Já que o assunto aqui são as palavras, Harold Bloom, em Shakespeare, The Invention of the Human, comenta que "a conclusão mais shakespeareana de Nietzsche é puro Hamlet: podemos encontrar palavras apenas para aquilo que está morto em nossos corações, de forma que há necessariamente uma espécie de desprezo em todo ato de fala. O resto é silêncio; fala/ discurso é agitação, traição, inquietude, auto-tormento e tormento dos outros."

As palavras que brotam destes personagens não são quaisquer palavras, são palavras perenes da literatura universal. Mas quanto à linguagem cinematográfica?? Aí que reside o triunfo maior do filme. Almereyda realiza um trabalho eficiente na adaptação de uma peça escrita em 1601 para o limiar do século XXI. O país vira a corporação Dinamarca. O castelo vira o prédio Elsinor. Algumas cenas, é claro, são cortadas. Bem dizer todo o primeiro ato. Algumas modificações são feitas. Marcelo vira Marcela, namorada de Horácio. Talvez para evitar qualquer conotação homossexual entre Hamlet e Horácio, os amigos inseparáveis. No Hamlet de Shakespeare, é Marcelo que fala: 
– Há algo podre no reino da Dinamarca.

 No de Michael Almereyda, este comentário é deletado. Mas as demais principais falas estão todas lá, inclusive o solilóquio To be or not be, that is the question (Existir ou não existir, aí está o problema, na tradução de Elvio Funck), que é murmurado, com um desânimo pungente, por um Hamlet perdido em meio às estantes da Blockbuster, mais especificamente, a seção de ação. Hamlet, tão detratado pela sua inação, avança e a câmera vai recuando, mostrando as placas ACTION afixadas às estantes. Sobre a intrigante personalidade de Hamlet, vale pinçar alguns comentários de Bloom, livro citado acima: 

 "Hamlet não faz nada prematuramente; algo nele está determinado em não ser super determinado".

 "A quintessência de Hamlet é nunca estar completamente comprometido a qualquer instância ou atitude, qualquer missão, ou mesmo a qualquer coisa". 

 "Hamlet é muito inteligente para aceitar qualquer papel, e a inteligência em si é descentralizada quando aliada ao desinteresse exacerbado do príncipe". 

 Bloom também reclama de um Hamlet que viu na Broadway, interpretado por Ralph Fiennes. Já Ethan Hawke desincumbe-se bem da tarefa... em sua interpretação, o aspecto sombrio de Hamlet é muito bem trabalhado. Destaques também para Julia Stiles – uma Ofélia perturbadora – e Bill Murray  no papel do controvertido Polônio. 

A cena final quase põe o filme a perder. Mas a principal falha de Michael Almereyda foi cortar o aspecto pândego e irônico de Hamlet. Mesmo não sendo um filme perfeito, quem assistir ao Hamlet do diretor Michael Almereyda e abominar, das duas uma, ou ambas: não gosta de literatura ou/e não gosta de cinema. 

Outras versões de Hamlet no cinema: 

1996: De Kenneth Brannagh, a mais extensa e fiel, com quase 4 horas de duração. 

1990: De Franco Zeffirelli, com Mel Gibson. 

1948: De Laurence Olivier, a versão "definitiva", Oscar de Melhor Filme e Ator.



Leitura recomendada: "Hamleto", traduzido pelo poeta brasileiro Tristão da Cunha. Disponível em e-book.

segunda-feira, maio 08, 2006

Missão Impossível III



A câmera hitchcockiana de Brian De Palma inaugurou, em 1996, a série Missão Impossível no cinema; com requinte e classe, o diretor de Dublê de Corpo e Os Intocáveis realizou um bom filme de suspense e espionagem, entremeado de algumas cenas de aventura. Em 2000, coube a John Woo, que, pelos seus maneirismos, coreografias e marcas registradas, é um cineasta do tipo ame ou odeie, dirigir a continuação, com menos estofo e mais cenas eletrizantes. Esse processo de pasteurização culminou, em 2006, com o vertiginoso Missão Impossível 3, do diretor J.J. Abrams (criador da série Lost), que contém nada além de ação.
Uma das críticas possíveis ao formato fílmico é a de que a existência de um protagonista descaracterizou o charme da série televisiva, que era o de uma mecânica de equipe, onde todos exerciam funções específicas e de igual importância. Já a ‘franquia’ MI tem Luther Strickel (Ving Rhames), presente nos três filmes, e ele, o onipresente e cada vez mais pasteurizado Ethan Hunt (Tom Cruise). Do primeiro ao terceiro filme da série, a massa muscular de Ethan foi inflando e a cinzenta definhando. As missões foram exigindo mais peripécias mirabolantes e menos esforços pensantes. No entanto (ou portanto?), a bilheteria norte-americana do primeiro alcançou 180 milhões e a do segundo, 215 milhões de dólares.
Tom Cruise de novo atua sem dublês; alguém poderia se perguntar se é por honestidade com a platéia ou por narcisismo, para provar a si que ainda é capaz. Ou será que Tom Cruise já chegou ao patamar que não precisa mais provar nada a ninguém? O fato é que Tom Cruise corre, pula, salta, escala, escorrega, se dependura, despenca, em suma, faz tudo que fazia há 20 anos melhor, mais rápido e mais eficiente. Para homens comuns, 44 anos equivalem a rugas de preocupação, calvície em estádio avançado e tufos de cabelos grisalhos; para Tom Cruise, a maturidade, experiência e charme irresistível. Enquanto noutros a idade provoca efeitos indesejáveis, para Tom Cruise é sinônimo de mais adequação, felicidade e produtividade. Como se isso não bastasse, Tom Cruise está na idade em que atinge várias gerações de corações femininos.
Por conta disso, do maquiavélico vilão Owen Davian, interpretado pelo oscarizado Phillip Seymour Hofmann, de Zhen, a bela agente de traços orientais (Maggie Q), e do roteiro alucinante, que não privilegia o raciocínio, pode-se esperar que o terceiro supere a bilheteria dos dois primeiros.

domingo, abril 30, 2006

Crime Ferpeito



Rafael é chefe do setor de roupas femininas mas quer o cargo de gerente do andar. Para obter a promoção, que sedimentaria sua posição de garanhão acostumado a traçar todas as belas vendedoras do setor de roupas femininas, precisa vender mais que o concorrente à vaga, Don Antônio, chefe do setor masculino. Lourdes, por sua vez, é uma das poucas mulheres que trabalham com Rafael e nunca foram assediadas por ele: é feia como um raio. Mas acalenta o desejo secreto de um dia ter Rafael na cama.

Don Antônio vence a competição interna e usa o poder de seu cargo para rebaixar Rafael; num dia os dois entram em contenda corporal nos provadores, e a luta resulta no óbito do asqueroso chefe. Mas uma pessoa que estava na cabina ao lado, da qual Rafael só consegue ver os sapatos, é testemunha de tudo e começa a chantagear Rafael.
Essas são as ideias iniciais de Crime ferpeito, meticuloso estudo sobre os efeitos da feiúra humana realizado pelo diretor espanhol Álex de la Iglesia (O dia da besta, O bar). 

 Crime Ferpeito (Crimen Ferpecto, 2004), Álex de la Iglesia | O Dia ...
Especializado em uma mistura de horror e humor tétrico, Iglesia demonstra timing para comédia e faz bom trabalho na tarefa de criar e manter o interesse da audiência a maior parte do tempo. Repleto de citações explícitas e implícitas de filmes de suspense, entre eles Encurralado, de Steven Spielberg, o terrir espanhol apenas peca na metragem um pouco estendida (1h43min).

Impressões de um Cinéfilo: Crime ferpeito e seu desfile de bizarrices

Quase tão divertida e movimentada quanto a película foi a sessão, que incluiu a retirada de uma vovó horrorizada com seu netinho ao presenciar a cena em que uma das vendedoras cavalga Rafael numa das camas da loja, a quase queda no escurinho do cinema de um incauto espectador nos degraus perigosos do Aero Guion e as gargalhadas histriônicas e exageradas de um senhor que às vezes provocavam mais risos que as próprias cenas.

sábado, abril 29, 2006

Terapia do Amor


A produtora Rafi (Uma) se vê, no esplendor físico e intelectual de seus 37 anos, divorciada e sem fihos. A sua psicóloga (Meryl Streep) tenta ajudá-la a substituir a frustração de um relacionamento onde primava a mentira pela oportunidade de vida nova. Não demora, ela volta a sair com os amigos. E qual o programa ideal para desopilar, purgar os males, alcançar a catarse, ver gente nova? O cinema, é claro. É reprise de um filme de Antonioni e na fila Rafi conhece o aspirante a pintor Dave (Bryan Greenberg), que, mesmo acompanhado, se encanta com Rafi. Poucos dias depois procura o nome dela no guia telefônico.
Tudo seria perfeito não fosse um detalhe: Dave tem apenas 23 anos. Rafi e Dave começam um embate entre o raciocínio e a pele, a lógica e o desejo, a segurança e o risco, o futuro e o presente, mediado sempre pelas visitas semanais de Rafi à terapeuta. Dave mergulha pra valer no namoro, afinal, Rafi tem cabelos loiros, olhos azuis, feições marcantes, papos articulados, finanças estáveis e, last but not least, curvas perfeitas – e carentes. Rafi, por sua vez, é mais cautelosa e não se entrega inteira.
O filme de Ben Younger, cientista político que já trabalhou como assessor, garçom, motorista e estreou na direção com O Primeiro Milhão (Boiler Room, 2000), é o tipo de ‘comédia romântica’ não descartável, que costura, com humor inteligente, situações que envolvem aceitação e personagens secundários que fazem a diferença, como o impecável porteiro do prédio de Rafi e a bisavó de Dave – que demonstra de modo inusitado sua indignação e perplexidade.

terça-feira, abril 25, 2006

Um Herói do Nosso Tempo


Radu Mihaileanu não é um cineasta muito prolífico. Sua filmografia engloba Trahir (1993), Train de Vie (Trem da Vida, 1998) e Va, vis et deviens (Go, See and Become / Um Herói de Nosso Tempo, 2005). Xodó do público no Festival de Berlim, vencedor do César de Melhor Roteiro Original, a nova película do diretor romeno está em cartaz no Guion, em sessões concorridas. Seus projetos são demorados mas sempre contundentes. Trem da Vida chamou atenção pela originalidade e ousadia da história. E ao acender das luzes de Um Herói de Nosso Tempo, queda o público imóvel, como que envolvido por uma forte carga emotiva, e como quem demora um pouco para se recompor e/ou disfarçar as lágrimas.
O apelo ao sentimento é uma constante nos 140 minutos do longa-metragem, que parte de um fato histórico, a Operação Moisés, que removeu em 1984 milhares de falashas (judeus etíopes) de seu país de origem para uma nova vida em Israel. Ao contar as peripécias de Schlomo, menino, adolescente e jovem adulto, a produção franco-israelense debate temas como fome, amor filial e ao torrão natal, discriminação racial e religiosa, adoção, relações familiares, descoberta da sexualidade e idealismo.
A diversidade étnica mostrada no filme aparece no elenco. Yaël Abecassis (israelense) e Roschdy Zem (francês filho de marroquinos) interpretam mãe e pai adotivos de Schlomo. Três atores talentosos vivem o personagem principal: o primeiro é Moshe Agazai, de 11 anos, nascido em Rehovot, um dos subúrbios pobres de Tel Aviv; Mosche Abebe (16), nascido em Adis Abeba, capital da Etiópia e Sirak M. Sabahat (25), de Walita, norte da Etiópia. A mais jovem participante do elenco é a comportada e meditativa Rivkalée Abravachy. Nascida há 5 anos num kibutz a 40 Km ao norte de Tel Aviv, interpreta Mandala, a vaca holandesa. Outra promissora atriz é a namorada de Schlomo (Roni Hadar).
Problemas na cadência do filme – a história é contada sem pressa até uma altura e então passa a acelerar demais – não chegam a comprometer a força da obra. Um diálogo possível ao final do filme é trocar idéias do tipo “Em que parte você chorou?”

segunda-feira, abril 10, 2006

Stephen Frears Apresenta



Ashes to ashes, dust to dust. Assim começa o novo filme de Stephen Frears (Minha Adorável Lavanderia, Ligações Perigosas): Sra. Henderson Apresenta. No enterro do Sr. Henderson, uma circunspecta viúva está prestes a tomar as rédeas de sua fortuna. Contenção britânica: a viúva não derrama uma lágrima durante o funeral. Para desabafar, tão logo a esquife é baixada e o povo dispersa, pede ao motorista para pegar um desvio e descer ao cais. Toma um bote, rema até o meio do rio e, ao se ver sozinha, chora. Aparece outro barco e ela silencia de novo.
Não há viuvez, porém, que não faça bem: a serelepe Sra. Laura Henderson, ninguém menos que Judi Dench, compra um teatro velho e manda reformá-lo. Falta, entretanto, alguém com know-how e pulso para transformar a renovada casa num empreendimento de sucesso. Ela procura uma pessoa capaz de coordenar tudo. A cena em que contrata o gerente Vivian Van Damm (Bob Hoskins) é um bom exemplo do que uma grande atriz e um grande ator podem fazer quando o script ajuda.
Sra. Henderson gosta do perfil do gerente. Ele é teimoso, sabe o que quer e tem idéias ousadas. Logo de cara resolve adotar um sistema de espetáculos contínuos, em vez de apenas dois espetáculos diários. A idéia é um sucesso e o teatro prospera.
O palco está pronto para Stephen Frears nos apresentar a sua singela história de esperança em meio a uma Londres prestes a ruir – não tarda a estourar a Segunda Guerra Mundial. O Windmill Theater, depois de um começo meteórico, enfrenta dificuldades pelas imitações da concorrência. É preciso inovar. Sra. Henderson usa de sua perspicácia e influência para conseguir autorização para expor a nudez das atrizes. Consegue a permissão, desde que as 'partes pudendas' sejam devidamente depiladas e as atrizes desnudas permaneçam imóveis no palco.
Mamilos, seios e ventres; dorsos, espáduas e nádegas; colos, costelas e coxas: o público ávido volta a lotar a casa. De estático, porém, o enredo não tem nada. Desenrolam-se elementos como o ciúme que Sra. Henderson demonstra ao saber que o gerente do teatro é casado; a atriz que despe o corpo mas não o entrega a ninguém; o filho de Sra. Henderson, morto na Primeira Guerra, que jaz num cemitério francês; os bombardeios sobre uma Londres estupefata e impotente. Tudo Stephen Frears apresenta com propriedade e faz de Sra. Henderson Apresenta um bom acréscimo à sua respeitada filmografia.

Anjos da Noite - A Evolução


Durante a sessão, uma pessoa dirigia a outra perguntas do tipo “Por que ele é um híbrido?”, “O que aconteceu mesmo no primeiro filme?”, e assim por diante. Na verdade, vamos combinar, pouco importa se você viu ou não o primeiro filme.
A continuação dá um breve insight dos fatos, mas tudo isso é irrelevante. Tanto a primeira como a segunda película sustenta-se não pelos meandros da trama, mas sim pela silhueta, os cabelos, a roupa, a tez e os olhos de Selene, a gótica heroína, encarnada por Kate Beckinsale.
A atriz nascida em 1973 na Inglaterra superou a anorexia da adolescência e estreou no filme ‘Muito Barulho por Nada’ (1993), de Kenneth Brannagh. Sua filmografia inclui The Prince of Jutland (1994), Cold Comfort Farm (1995), Brokedown Palace (A Viagem, 1999), The Golden Bowl (A Taça de Ouro, 2000), Pearl Harbor (2001), Escrito nas Estrelas (Serendipity, 2001), Anjos da Noite (Underworld, 2003) e Van Helsing (2004). Fará par romântico com Adam Sandler na comédia Click (2006).
Sobre o conteúdo (?) de Anjos da Noite – A Evolução, a dizer, apenas, que remete às origens da divisão genética entre lycons (lobisomens) e vampiros, em que dois irmãos, na Idade Média, bifurcaram as linhagens. De quebra o roteiro traz vários intertextos espalhados, em especial citações do cult movie “Quando Chega a Escuridão”, de Kathryn Bigelow, em que uma troupe de vampiros atravessa as planícies norte-americanas num trailer.
A bonita fotografia argêntea e algumas cenas valem o filme: Kate pilota um caminhão enquanto Michael, o namorado híbrido, tenta repelir o ataque do vampiro primigênio; a dupla de heróis invade um antro guardado por lycons a fim de conseguir informações importantes e o embate final na caverna inundada contra os dois irmãos seculares. Catarse dark.

O Plano Perfeito

Fazer reféns num banco não é novidade no cinema. Já rendeu pelo menos um pequeno clássico do diretor Sidney Lumet – ‘Um dia de cão’, em que um Al Pacino alucinado e seu bando invadem o banco com o nobre objetivo de arrecadar grana para a operação de troca de sexo de seu amante (Chris Sarandon).
No filme Inside Man (2006), de Spike Lee, novamente um banco é alvo do ataque de uma quadrilha, desta vez mais organizada. O quanto essa quadrilha é organizada, aliás, é recomendável não se comentar. Melhor que o espectador perceba ao longo do filme. Os motivos para o roubo? Também o espectador pode tirar suas conclusões, ou acreditar no que diz Dalton Russel, o líder da quadrilha (Clive Owen). Afirma ter feito tudo apenas para provar que... era capaz de fazer.
Sucesso de bilheteria, o filme representa um passo de Spike Lee para longe de seus temas familiares, étnicos e sociais. Pululam os clichês: nesse tipo de filme, para lidar com a situação toda, sempre é chamado um detetive negociador. Lá vem o indefectível Keith Frazier, personagem de Denzel Washington e seu pseudo bom-mocismo. Exigências são feitas pelos seqüestradores-ladrões. Policiais tentam ganhar tempo e enrolar. Represálias dos seqüestradores, que são (ou se acham) sempre mais inteligentes, espertos e violentos que a polícia. E para (tentar) aumentar o suspense, que tal uma inverossímil história de bastidores envolvendo o dono do banco e seu obscuro passado?
No fim das contas, a pergunta que o fora-da-lei se faz no começo sobre o motivo do roubo, pode ser dirigida a Spike Lee, o autor de Faça a Coisa Certa, sobre o motivo de ter realizado este filme. Por que?

domingo, março 19, 2006

Um lugar para recomeçar



An unfinished life (2005) é um filme bem ao estilo do sueco Lasse Hallström. Adepto das histórias intimistas e dos dramas familiares, debateu a transição para a adolescência em Minha Vida de Cachorro (Mitt liv som hund, 1985), filme que o lançou internacionalmente. No início dos anos 90, radicou-se nos Estados Unidos sem perder o olhar sensível. Retratou como é ter um irmão deficiente em Gilbert Grape, aprendiz de sonhador (93), contou a saga de uma família apaixonada por hipismo em O poder do amor (95), debateu o aborto em Regras da vida (99), explorou as sensações do paladar com Chocolate (2000) e dissecou a mediocridade humana em Chegadas e partidas (2001). Este teve péssima recepção da crítica, tanto que deixou o diretor por 4 anos afastado. Em 2005, porém, retornou com dois filmes: Um lugar para recomeçar, estreia da semana, e Casanova (inédito).

An Unfinished Life | Netflix
Pela introdução, o incauto visitante pode perceber que o anfitrião deste blog tem especial admiração pelo trabalho do diretor. Pois é, sou assim. Não consigo esconder minhas preferências. Acredito no cinema autoral, por isso, quando gosto muito de um filme, anoto o nome do diretor. Não tem mistério. É tão simples isso. Mas 99% das pessoas que vão ao cinema não estão nem aí para o diretor. Vão ao cinema para ver este ou aquele ator, aquela ou essa atriz. Além de guardar o nome do diretor, sou um cinéfilo fiel. Pode a crítica descer o malho no cara, que eu defendo. Isto explica o nome deste blog. O olhar aqui é de cinéfilo. Condescendente, apaziguador, tolerante.


An Unfinished Life: Jennifer Lopez, Morgan Freeman, Becca Gardner ...
Um lugar para recomeçar conta a história de uma jovem e bela viúva (Jennifer Lopez), mãe de uma menina de onze anos, que é obrigada a fugir da cidade para não ser mais espancada pelo namorado. Foge para um rancho numa pequena cidade do estado de Wyoming, onde mora o avô de sua filha (Robert Redford), na companhia do amigo e sobrevivente a ataque de urso (Morgan Freeman). A princípio as duas recém-chegadas são mal recebidas, mas recebem um quarto no porão. Aos poucos, ao reconhecer na neta as características do filho morto, o rabugento rancheiro começa a gostar da menina e ensinar coisas a ela.

Image gallery for An Unfinished Life - FilmAffinity

Outros personagens são o urso cujo destino será uma surpresa, o xerife bonachão e o namorado psicopata - que, como seria de esperar, vai atrás da Jennifer Lopez. Mais um filme com as marcas de Lasse Hallström: sensibilidade, ternura e reflexão.

A Pantera Cor-de-Rosa

Nomeado inspetor pelo chefe da polícia (Kevin Kline), Clouseau (Steve Martin) investiga o mistério que envolve a morte de um treinador de futebol ocorrida no estádio lotado e o roubo do raro diamante que lhe pertencia - Pink Panther. Pateta como ele só, o Inspetor Clouseau, com um ajudante fiel (Jean Reno) com quem vive brigando e uma secretária apaixonada com quem vive flertando, enfrenta muitos perigos e muitas peripécias na tentativa de solucionar o crime. Melhor não comparar esta nova roupagem com a seqüência de filmes dirigidos por Blake Edwards e estrelados por Peter Sellers.

Ponto final



Enquanto trata da carne, da traição e da conveniência, o filme de Woody Allen não deixa a desejar. Em grande parte, pela tórrida entropia alcançada pela dupla Scarlett Johansson e Jonathan Rhys-Meyers. A cena em que fazem amor no trigal sob a chuva entra, desde já, para a galeria das cenas clássicas de entrega e pecado. Porém, e sempre há um porém, o desenlace deste romance perigoso muda o rumo e o gênero do filme. O drama romântico transforma-se num policial e o filme descamba para o lugar comum. Vira um pastiche, uma versão moderninha de 'Atração Fatal', com desfecho pra lá de exagerado. Pra piorar, de policial, o filme tenta dar uma guinada para a comédia. Como se, para justificar tanta apelação, o diretor precisasse demonstrar que continua espirituoso, complementando tudo com um 'toque genial'. A sensação é que o novo filme de Woody Allen é uma piada de mau gosto. E ponto final.

sábado, março 04, 2006

Johnny e June


O título original do filme de James Mangold é "Walk the Line", canção de Johnny Cash. Andar na linha é algo que o carismático cantor não fez em sua trajetória. Depois de um meteórico início de carreira, enveredou pelo perigoso caminho de misturar álcool e anfetaminas, tornando-se um viciado quase incorrigível. O que o salvou foi, de um lado, o amor à música e, de outro, a paixão por uma mulher. June (interpretada por Reese Witherspoon, favorita ao Oscar de Melhor Atriz) faz amizade com Johnny (Joaquin Phoenix) quando ambos são casados com outras pessoas. Cria-se um laço forte devido aos interesses comuns e aos constantes encontros nas turnês. Baseado na autobiografia do influente cantor, o filme aborda outros aspectos da vida do cantor, como a relação com o pai e a formação de uma geração de novos músicos talentosos - entre eles Jerry Lee Lewis e Elvis Presley.

Crash



Concorre a Oscar de Melhor Roteiro Original o filme de Paul Haggis sobre a intolerância, a discriminação e a violência étnicas em Los Angeles, nos Estados Unidos da América. Bem amarrado e concebido, com certos toques de humor não politicamente correto, liga várias personagens, cujos destinos se entrelaçam numa rede intricada de relações humanas, influenciadas pela etnia de cada pessoa. Caucasianos: o promotor e sua paranóica esposa (Brendan Fraser e Sandra Bullock) e uma dupla de policiais, um experiente e racista (Matt Dillon), outro novato e bem intencionado (Ryan Philippe) ; afro-americanos: uma diretora de plano de saúde (Loretta Devine), um diretor de TV e sua mulher (Terrence Howard e Thandie Newton), um investigador da polícia (Don Cheadle) e dois jovens transgressores da lei (Larenz Tate e Ludacris) ; latinos: uma policial (Jennifer Esposito) e um técnico de fechaduras (Michael Pena), sua mulher e filhinha; persas: uma família proprietária de uma mercearia constantemente vítima de assaltos; um casal de coreanos e um grupo de cambojanos.
A aterradora realidade retratada em Crash lembra-nos que vivemos num mundo desassossegado, onde prima a desconfiança, o desrespeito; onde nada é permanente, tudo é tênue e delicado; onde uma ação impensada acarreta reações imprevisíveis. Um mundo cuja harmonia está prestes a se quebrar em pedaços.

sábado, fevereiro 25, 2006

Capote

A atriz Catherine Keener e o ator Philip Seymour Hofmann concorrem ao Oscar pelo filme Capote, dirigido por Bennett Miller.
Interpretando Nell Harper Lee - a autora do best seller "To Kill a Mockingbird", e amiga íntima do jornalista Truman Capote - Catherine Keener entrega uma atuação sóbria, digna da indicação para Best Actress in a Supporting Role. Philip Seymour Hoffman, por sua vez, de maneira minuciosa, fixa o sotaque, adota o timbre de voz, encarna os trejeitos e jeitos de Truman Capote. Não é à toa que é dos mais cotados a abiscoitar o Oscar de Melhor Ator.
Capote conta a história dos bastidores de "A Sangue Frio", o livro que inaugurou uma nova espécie de jornalismo - o jornalismo literário - e fez de seu autor o mais lido e vendido do início dos anos 60, nos EUA. Ao ler uma notícia de capa de um jornal de Nova Iorque sobre o assassinato de 4 pessoas da mesma família no estado de Kansas, Capote, então já famoso pela autoria de Breakfast at Tiffany's (Bonequinha de Luxo), resolve empreender um trabalho investigativo paralelo ao da polícia, envolvendo entrevistas com amigos das vítimas, pessoas da comunidade, policiais e - mais tarde - com os acusados do crime.
Para desenvolver o trabalho, Truman tem a companhia e a ajuda da amiga Nell Harper Lee (Catherine Keener). Os dois suspeitos do crime são condenados à morte por enforcamento e Capote intercede para que eles tenham direito à apelação. O projeto do livro - bem como o processo judicial - dura quatro anos e resulta na amizade entre Truman Capote e Perry Smith, um dos acusados.
O filme de Bennett Miller, além de destacar qualidades (bom humor, presença de espírito, inteligência, sangue frio) e defeitos (falsidade, egoísmo e hipocrisia) de uma das personalidades mais controvertidas e influentes do século XX, detalha os dilemas morais e éticos que envolvem a redação de um best-seller como "In Cold Blood."

domingo, fevereiro 19, 2006

Mulheres que correm

Ei-las. No parque, na praia. O rabo de cavalo balança de um lado a outro, no ritmo das passadas. Concentração estampada no rosto decidido. A respiração comanda o movimento harmonioso, o jogar equilibrado dos braços, o arremessar das pernas torneadas. Mulheres que correm.

No Parcão, na Redenção... Nas manhãs, nas tardes, na boca da noite... Indiferentes aos olhares e aos flertes, elegantes, tesas, alvoroçadas, sem destino, pensando em nada além da próxima curva, da próxima subida – da próxima volta. O coração palpita. Os poros abrem. O suor escorre... mulheres que correm.

Atravessando as ruas, aventurando-se no meio dos carros, lá vêm elas! Enfim chegam à calma e ao verde dos parques, por seus caminhos se embrenham, misturam sua energia, sua vida, sua essência, acrescentam um toque a mais de viço, saúde e delicadeza ao ambiente.

Correm, esvoaçantes ou pesadonas, esquisitas ou discretas, delgadas ou fofas, desajeitadas ou estilosas... Como gazelas, seriemas e potras... Ou como búfalas, hipopótamas e pingüins. Pra emagrecer, pra manter a forma, pra conquistar um novo namorado, pra manter o atual, pra espantar a preguiça, pra cultivar a disciplina, pra suprir a necessidade imperiosa de correr, correr, correr... Impacientes, impulsivas, irrequietas – mulheres que correm.

Mas não só de corridas literais vivem as mulheres. Atletas ou não, elas sempre estão correndo contra o tempo, por variados motivos. Para chegar ao trabalho, levar as crianças na escola, fazer o super, manter a casa, o penteado, encontrar as amigas, atirar-se aos braços de alguém... Para chegar na hora da aula, fazer o tema, ler uma pilha de livros, escrever o trabalho de conclusão e satisfazer o namorado... Para preparar a lição, ir à reunião, corrigir as provas, revisar a matéria, respirar trabalho, para esquecer o coração...

Elas correm nos eixos – ou descarrilam. Correm na órbita – ou se desviam. Correm na rodovia – ou pegam atalhos. Correm para cumprir os compromissos – ou fugir deles. Correm para evitar o perigo – ou senti-lo nas veias. Correm para se preservar – ou se entregar. Correm para o marido – ou amante. Para o lar – ou motel. Para a redenção – ou perdição! Responsáveis, estóicas, seguras. Delicadas, inconseqüentes, perdidas... Mulheres que correm.

Wild at Heart


Tempestuoso, imorredouro, violento. Flamejante, imprevisível, engraçado. Surpreendente, quente, comovente. Inquieto, agitado, genuíno. Puro, doce, insubstituível. Fértil, exacerbado, pulsante. Visceral, incontrolável, selvagem.

Assim é o amor entre Lula e Sailor. Assim é o gênio do diretor David Lynch e o talento do músico Angelo Badalamenti. Assim é cada fotograma do vencedor da Palma de Ouro em Cannes de 1990: Coração Selvagem.

Há filmes que têm este dom: por mais que as revisitas se acumulem, a diversão, o riso, a ternura e a emoção se renovam. Já se sabe o que vai acontecer. Já se sabe o que cada personagem vai fazer, o que cada um vai falar. Dir-se-ia que, entre os adjetivos acima, ‘imprevisível’ e ‘surpreendente’ não se encaixam. Ledo engano. Cults como Wild at Heart, a cada nova sessão, para matar as saudades, para celebrar a magia do cinema, ou, motivo mais palpável - mostrar para alguém que ainda não viu - nos remetem à primigênia e original sessão. Emoções já sentidas ganham um quê de frescor, uma lufada de brisa, um novo colorido. Não, não há novo detalhe a ser percebido. Não é este o motivo de rever um cult. Um cult movie é revisto pelo orgulho de mostrar, pela emoção de reviver...
Pela necessidade de aplacar o coração selvagem.

A mão delicada de Lula, unhas pintadas de vermelho, abrindo-se na hora do êxtase. Os fósforos riscados, os cigarros acesos. As palavras que Laura Dern e Nicolas Cage trocam na cama, depois de fazer amor. A jaqueta de couro de cobra, que representa, para Sailor, sua crença na individualidade e na liberdade pessoal. Os dois saindo pra dançar na noite, quando Sailor interrompe a banda para repreender um incauto que dá em cima de Lula e, de quebra, pede o microfone para cantar “Treat me like a fool, treat me cruel, but love me”, para sua amada. Os dois parando à beira da estrada para dançar rock, e beijarem-se ao pôr-do-sol; as roupas na estrada, o acidente na madrugada, a moça desesperada - ao som de Wicked Game de Chris Isaak. O asqueroso Bobby Peru tentando perverter Lula... Alguns motivos para cultuar Coração Selvagem.

Ah, sim. Faltou um motivo – ou melhor, um adjetivo a tantos citados. Coração Selvagem é simplesmente... romântico.