Uma das coisas que mais abomino é a injustiça.
E uma injustiça cometida por mim mesmo é a mais abominável.
Portanto, para não cometer injustiças com o badaladíssimo e premiadíssimo filme Anora, volto a me dedicar a ele, agora para analisar uma a uma das personagens segundo a Teoria Literária.
Lulu (Luna Sofia Miranda): colega de Anora como strip no clube noturno, é convidada por Anora para ir a uma festa de Ano-Novo na mansão de Vanya. As motivações e atos de Lulu são flats e planas como uma panqueca. Como diria Hamlet, Frivolidade, teu nome é mulher!
Tom (Anton Bitter): um dos amigos de Vanya, trabalha em uma loja de doces e protagoniza uma das cenas mais estapafúrdias do filme em que pretende dar uma de corajoso diante dos capangas do oligarca russo. Brande um bastão de beisebol que é tomado de seus braços como um adulto tira um doce da mão de uma criança. A definição de personagem plana é aquela que tem "emoções, motivações e personalidades simples". Mais plano que Tom apenas Crystal.
Crystal (Ivy Wolk): namorada de Tom e parte da gangue de Vanya, um grupo de pessoas desintelectualizadas ao extremo, sem nada a acrescentar para a humanidade, ao menos pelas cenas que Sean Baker nos mostra e pelas falas que saem das bocas dessas personagens moralmente constrangedoras.
Diamond (Lindsay Normington): Diamond é a rival de Anora no strip-club e quando Anora pede as contas e vai embora para viver seu conto de fadas, ela vaticina: não vai durar duas semanas o casamento. Vias de fato é claro vão acontecer entre as duas, em uma das mais convincentes demonstrações de "personagem-planismo" dos últimos tempos.
Galina Zhakarov (Darya Ekamasova): a mãe do noivo é uma bruxa malvada, uma megera de cuja boca só emergem maldades e falas preconceituosas contra a pobrezinha Anora. Flat, extremamente flat, pra cair os butiá do bolso de você, de mim e de todo mundo.
Nikolai Zhakarov (Aleksei Serebryakov): o pai do noivo é um pândego que acha graça de tudo, é o criador (Sean Baker) se revoltando contra a própria criatura, sem dó nem piedade, um personagem que tem lá sua graça, mas flat as flat can be.
Toros (Karren Karagulian): ele abandona um batizado para iniciar o processo de "colocar as coisas nos eixos", coisas que saíram de seu controle quando Vanya se casa com Anora. As motivações dele são simplórias, nada nele é profundo, superficialidade extrema na construção do personagem e na escolha de suas falas.
Garnick (Vache Tomvasyan): irmão mais novo de Toros, é nitidamente escolhido como o saco de pancadas do filme, alívio cômico, mas até nisso o roteiro soçobra, porque Garnick é um personagem que não oferece uma graça autêntica, é tudo muito forçado. Garnick é plano porque "permanece praticamente inalterado ao longo da história, (...) têm um ou dois traços ou características dominantes que são claramente definidos e não evoluem".
Ivan "Vanya" Zhakarov (Mark Eidelshtein): o filho de magnata é o protótipo de um riquinho mimado, o roteiro não se dá ao trabalho de tentar mostrar alguma qualidade do pobre Ivan, só seu lado tênue e superficial. O uso de personagens planos e essa falta de profundidade geralmente servem a um propósito específico na narrativa, como apoiar o desenvolvimento de personagens redondos ou aprimorar os temas da narrativa. Mas a pergunta que não quer calar: existe algum personagem redondo no filme?
Anora (Mikey Madison): uma cena da vida cotidiana de Anora é a única que nos dá um insight de sua personalidade "fora do mundo do strip". Ela chega em casa e vai dormir, a amiga com quem mora reclama que o combinado era ela ter comprado o leite, e ela ironiza. O comportamento de Anora se mantém previsível a maior parte do tempo.
AVISO DE SPOILER
Na última cena ela revela algo que pode ser considerado uma evolução, uma reação emotiva, um fluxo torrentoso de dúvida e fragilidade. É justamente nessa cena que Anora, construída o filme inteiro como personagem plana, dá um passo para se tornar uma personagem redonda. Mas daí o filme acaba e a gente não tem mais tempo de conhecer a verdadeira Anora. Ou alguém imagina que haverá um Anora 2?
Igor (Yura Borisov): creio que Igor, apesar de sua aparente truculência, consegue demonstrar em algumas atitudes certa profundidade de caráter, certa capacidade de nos surpreender. É muito pouco para um filme tão premiado, mas então, reconheço aqui, Igor é redondo, não é um capanga tradicional.
AVISO DE SPOILER
Não que a ideia de uma "síndrome de Estocolmo" entre a raptada Anora e Igor, um dos sequestradores, seja algo original, é um clichê dos mais óbvios.
Mas estou aqui tentando reparar uma injustiça que posso ter cometido com Anora, e fazendo algumas observações adicionais que talvez amenizem o rigor de minha avaliação inicial.
E, mesmo com a melhor das intenções, constato que pela Teoria Literária Sean Baker não se esforçou para criar personagens redondos, além de Igor.
E Anora, a personagem? Bem, como observei, Anora mostrou uma faceta nova apenas no fim da história, e para mim isso foi decepcionante, ela permanece e age como uma personagem plana o tempo inteiro, e só no fim mostra ser "gente como a gente".
Ainda vou ter que fazer um post só para comentar a última cena do filme.
Mas, como assim, se o filme é tão ruim, por que você se dá ao trabalho de fazer 3 posts sobre ele? Ou será que Anora não é tão ruim assim?
Em tempo: Joana Araci, no artigo "Why Anora Exposes Everything Wrong with the Oscars", explica porque ela, também, como eu e outras muitas pessoas, considerou Anora indigno do Oscar de Melhor Filme.
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