Ninguém precisa ler biografias sobre Spielberg para notar que o diretor de As aventuras de Tintim leu pouco na infância. Também não é preciso 3-D para saltar aos olhos que a psicologia dele continua sendo a mesma do escoteiro que, ansioso, mostrou aos colegas um filme de sua autoria. Spielberg quer agradar as massas. Isso esclarece muito sobre a importância que As aventuras de Tintim dá ao que os fãs de Hergé vão pensar. Ou seja, nenhuma.
Ler pouco, aqui, significa ler gibis apenas. E olhe que Spielberg não leu nem Tintim. Tenho lá minhas dúvidas, também, que o dinâmico trio de roteiristas tenha lido os 23 álbuns da coleção. Será que leram ao menos O segredo do Licorne e O tesouro de Rackam, o Terrível? Algumas poucas cenas dos dois álbuns são aproveitadas em As aventuras de Tintim, e nas raras vezes que isso acontece, os fãs das histórias de Hergé se regozijam.
Edgar Wright e Joe Cornish (dupla que assina o roteiro de Ataque ao prédio), com a ajuda do estreante Steven Moffat, pasteurizaram Tintim. Indianajonizaram Tintim. Na melhor das hipóteses, modernizaram Tintim, na ânsia de torná-lo mais apetecível às novas e novíssimas gerações.
Pensando bem, eles devem ter lido a coleção toda, sim. Imagino inclusive que tenham recebido “carta branca” para fazer uma mixórdia de citações e uma cornucópia de situações. Toda e qualquer “cena de ação” poderia ser pinçada de outros álbuns e acrescentada ao enredo. E, é claro, uma ou outra “criação original”, como atesta a esdrúxula cena dos guindastes no porto.
É preciso fazer justiça: algumas misturas funcionam, como a participação da carismática Branca Castafiore. Mas nada, absolutamente nada, perdoa a ausência do professor Girassol.
A pergunta inevitável: eu gostei de Tintim pasteurizado, indianajonizado e modernizado?
A resposta irrefutável: claro!
O tintinófilo é, antes de tudo, um cinéfilo.
E até mesmo os tintinófilos mais ortodoxos têm lá seus motivos para gostar de As aventuras de Tintim.
Milu não fala nem pensa como nos quadrinhos de Hergé, mas em compensação Spielberg e seu trio parada dura de roteiristas nos reservam sequências em que o cãozinho-de-pelagem-de-neve revela toda a sua perspicácia.
A Tintim, por mais descaracterizado, sobram ainda resquícios de sua magnética personalidade. Tintim é honesto, intimorato, arguto, direto. No filme de Spielberg essas qualidades transparecem.
O capitão Haddock é o trunfo da adaptação, o personagem mais fielmente transposto à tela. E é por meio de Haddock que o filme se sustenta. As idiossincrasias do velho lobo do mar provocam risos no público, mais ainda naqueles que cresceram (?) aprendendo, nos balões de Hergé e no palavreado sui generis do capitão Haddock, xingamentos como flibusteiros, sacripantas, bucaneiros, cataplasmas, marinheiros de água doce, cornamusas, etc.
Os atrapalhados gêmeos Dupont e Dupond também receberam a merecida relevância.
Sobre os ‘aspectos técnicos’: seria, além de redundante, desnecessário, mencionar que os efeitos de captura de movimentos impressionam pela perfeição e que a escolha desse método híbrido e inovador foi (é) eficaz.
Pergunto-me o que Hergé acharia se pudesse assistir, seja lá de onde ele esteja, ao filme inspirado em sua obra. Misto de orgulho com surpresa? Quem sabe, uma ponta de decepção pelas “liberdades” tomadas?
Uma coisa é certa: se Hergé, o gênio dos quadrinhos, assistisse ao filme sem os pudores de autor que teve a obra adulterada, teria que reconhecer: Spielberg é um gênio do cinema.
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