segunda-feira, fevereiro 19, 2018

Um longo caminho


O diretor Zhang Yimou, enquanto filmava a trilogia Wuxia, mais exatamente após Herói e O clã das adagas voadoras, fez uma pausa para realizar este filme que se passa entre o Japão e a China, e cujo tema principal é a dificuldade de comunicação entre os seres humanos.

Essa dificuldade é mostrada de várias formas, mais diretamente na dificuldade linguística que japoneses e chineses enfrentam para se entenderem. Mas na verdade isso é apenas um detalhe que enfatiza uma dificuldade de comunicação mais prosaica e singela: a dificuldade que pessoas da mesma família têm de pedir desculpas, fazer as pazes, viver relacionamentos afetuosos e sinceros.

Mais especificamente, Um longo caminho (Riding Alone for Thousands of Miles, 2005) aborda a relação entre pai e filho. O foco concentra-se no pai, o sr. Takata, interpretado pelo ator japonês Ken Takakura, que é chamado pela nora para visitar o filho Kenichi que foi hospitalizado em Tóquio. O filho se recusa a ver o pai, em razão de um ressentimento antigo. A nora entrega ao sogro uma fita de VHS sobre as viagens de Kenichi a China.
Na fita, um ator de uma ópera folclórica chinesa alega problema na voz, mas promete interpretar a ópera em outra ocasião. Surge então a vontade do pai se redimir diante de seu filho e de mostrar que se importa com ele: viajar à província de Yunnan, na China, para filmar a apresentação da ópera.



Essa é a premissa talvez um pouco frágil em torno da qual o filme se desenvolve. 

O espectador precisa aceitar essa aparente fragilidade do roteiro, qual seja, a de que um homem já vivido resolva fazer uma longa viagem e se afastar do filho, exatamente quando precisa estar perto dele.

Mas a medida extrema resume um pouco a personalidade obstinada do sr. Takata. E também explicita a forma com que cada um enfrenta problemas afetivos e a ameaça de perder um ente querido.

Uma das estratégias narrativas do filme consiste nas ligações telefônicas entre a nora e o sogro. Ela o informa do diagnóstico: câncer terminal no fígado. Isso deixa o sr. Takata mais ainda convicto de que precisa realizar a filmagem.

Na China, ele tem o apoio da intérprete Jasmine. Com paciência, educação e delicadeza, ela verte as falas do japonês ao chinês e vice-versa, e mantém a fleuma mesmo diante da solicitação do sr. Takata para substituí-la. 



Um complicador ainda surge na busca de redenção do sr. Takata. O ator/cantor que aparece na fita VHS agora está preso, e filmar numa prisão chinesa vai exigir ultrapassar várias barreiras burocráticas. 

Surge um dos subtemas do filme: até que ponto a obstinação de uma pessoa a permite superar barreiras aparentemente intransponíveis? A decisão mais óbvia seria desistir do intento, mas esta palavra, desistência, parece não existir no dicionário do sr. Takata.

Assim, uma a uma, as dificuldades vão sendo transpostas.

Mas quando para completar sua tarefa autoimposta o sr. Takata precisa viajar a uma aldeia remota e se aproximar de um serelepe menino de 8 anos, será que o sisudo e pragmático senhor conseguirá?

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A exemplo do que fez em Nenhum a menos, o diretor Zhang Yimou apostou na escolha de atores sem experiência prévia, para interpretar a maioria dos papéis coadjuvantes. Impossível não citar o carisma e a facilidade do menino Yang Zhenbo, que vive o garoto Yang-Yang. As melhores cenas do filme são aquelas em que o pequeno, com sua inocência e pureza, contracena com o grande Takakura.

A China revelada em Um longo caminho é mais otimista, por exemplo, do que o país aflito e em desagregação mostrado no filme Em busca da vida, do cineasta Jia Zhang-ke.

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Yimou mostra o interior das prisões, as inter-relações humanas e também a vida simples nas aldeias sob um prisma construtivo. E usa as paisagens como ferramenta para contar a história.

Esse uso das paisagens não passou despercebido na obra Cinema and Landscape, que observa: "Um longo caminho mostra a paisagem da China como um espaço em que mudanças positivas podem ocorrer. (...) A paisagem chinesa abre a possibilidade de conexão entre diferentes culturas, idiomas e música, e, em última análise, famílias chinesas e japonesas".

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Uma curiosidade. Nos extras, o ator Ken Takakura (falecido em 2014) elogia o diretor Zhang Yimou, comparando-o, por seu dinamismo e atenção com todos os detalhes, e a vontade de participar de todas as decisões, com outro diretor com quem ele trabalhou (em Black Rain): Ridley Scott. Que, por sinal, também está na minha lista dos TOP TEN.

terça-feira, fevereiro 06, 2018

A forma da água



Deformação. 

Pois é. Eis-me aqui, o arauto do olhar cinéfilo, o defensor dos diretores oprimidos pelas críticas ferozes, na situação de estar prestes a me tornar um iconoclasta. 

Guillermo del Toro é um diretor que acompanho e costumo apreciar o seu geralmente honesto pendor pelo fantástico, visto, por exemplo, em estranhezas como O labirinto do fauno A colina escarlate. 

Nada mais natural que eu me colocasse na posição de ficar torcendo para A forma da água levar o Oscar de Melhor Filme. Em se tratando de um cinéfilo que se considera coerente e fiel aos cineastas preferidos, isso seria mais do que natural. Seria naturalíssimo.

Só que não.

A forma da água é um pastiche de pretensas críticas ao "sistema", um amontoado de cenas ansiosas para levantar bandeiras e avisar: olhem só, eu sou politicamente correto!

Nessa vibe, Del Toro cria o vilão mais estereotipado dos últimos tempos: machista, consumista, chauvinista, torturador, militarista.

Torço mesmo para que, entre os 9 concorrentes, existam filmes melhores e menos "ansiosos" por ganhar o Oscar do que Dunkirk e A forma da água. Entre os favoritos, só falta assistir a Três anúncios para um crime, que estreia dia 15 de fevereiro. Mas se fosse para escolher entre Dunkirk e A forma da águaDunkirk seria a minha escolha.

Por mais pretensioso que o Christopher Nolan consiga ser, Dunkirk é um filme infinitamente melhor que este conformado A forma da água

Nem a boa atuação de Octavia Spencer como a amiga da moça muda salva o filme. Ela também é casada com um marido estereotipado, um estafermo feito sob medida para agradar as feministas.

Nem a caracterização de uma indústria do cinema em recessão, perdendo o fôlego diante do fenômeno da televisão salva o filme.

Nem a homenagem ao clássico O monstro da lagoa negra (The creature from the black lagoon, 1954) salva o filme.

A acusação de plágio não ajuda muito nesse contexto. 

Let Me Hear You Whisper, de Paul Zindel, tem um enredo no mínimo com elementos semelhantes. Del Toro alega desconhecer a peça teatral sobre a senhora da limpeza que tenta salvar um golfinho que é cobaia de laboratório. Mais informações sobre as flagrantes semelhanças das duas obras você pode encontrar neste post.

Certamente o diretor mexicano não desconhece o conto A queda da casa de Usher, de Edgar Allan Poe, no qual ele pode ter se inspirado para realizar A colina escarlate. Confesso que fiquei esperando alguma menção tipo "inspirado na obra de Edgar Allan Poe", mas talvez Del Toro tenha considerado desnecessário.

Acontece que no caso de A forma da água estamos falando de direitos autorais em plena vigência, enquanto a obra de Poe está em domínio público. 

Vamos acreditar na palavra de Del Toro. Ele nunca ouviu falar antes dessa tal peça teatral. Mas será mesmo que nenhuma pessoa em toda a produção do filme não notou as flagrantes semelhanças entre as duas histórias? Smells like very unlikely.

O desinformado Del Toro realizou um filme repleto de ideias disformes: A forma da água.

domingo, fevereiro 04, 2018

The Square: a arte da discórdia



A escola sueca de cinema é muito respeitada mundo afora. Geração após geração, a Suécia revela ao mundo cineastas talentosos e com estofo para criar filmografias autônomas e relevantes. Ingmar Bergman, Lasse Hallström e Tomas Alfredson são alguns diretores suecos que comprovam essa afirmação. Bergman (1918-2007) foi o principal responsável por atrair a atenção internacional para o cinema sueco, ao vencer o Oscar de Melhor Filme Estrangeiro por duas vezes consecutivas: em 1961 e 1962, com A fonte da donzela e Através de um espelho, respectivamente. Voltaria a ganhar o prêmio em 1984, com Fanny e Alexander. Lasse Hallström (nascido em 1946) após Minha vida de cachorro tornou-se um diretor internacional e até hoje se mantém no circuito de filmes "comerciais", mas com bastante qualidade. Já Alfredson, nascido em 1965, realizou o acachapante Deixa ela entrar, cult vampiresco de 2008.
Um dos motes de The Square é o conteúdo explosivo de um vídeo criado por dois ousados marqueteiros para promover a nova exposição de arte do museu dirigido por Christian (Claes Bang). O museu está prestes a lançar a exposição chamada The Square, que estimula a solidariedade e o altruísmo entre as pessoas. Östlund acompanha o dia a dia da vida do diretor de museu, que, em meio à dinâmica atuação profissional precisa se dedicar às filhas. Todos os dias, a caminho do trabalho, Christian caminha por uma Estocolmo em que mendigos são ignorados pelos transeuntes. Outra trama que corre paralela é o modo como Christian tenta reaver o celular e a carteira que foram roubados, estabelecendo um contraste entre o discurso de altruísmo e seus atos cotidianos.

Em seus piores momentos, em especial na gratuidade de explorar a imagem das crianças, The Square nos remete a uma espécie de mal-estar que eu só senti poucas vezes numa sala de cinema. Em sua falta de pudor em mostrar crianças em situações vulneráveis, The Square me fez lembrar do polêmico A Serbian Film, que tanto auê causou ao passar nas telas nacionais em 2011.


O intertexto entre os dois filmes aumenta se você levar em conta que um dos temas de The Square é justamente os limites da arte contemporânea. Muita gente na época que A Serbian Film passou no Fantaspoa questionou o fato de uma obra com aquele conteúdo estar sendo divulgada num festival que recebia financiamento de empresas estatais brasileiras.




Em contrapartida, em seus melhores momentos, The Square faz jus à tradição sueca de cinema provocante e polissêmico. As cenas, em seu conjunto e isoladamente, suscitam uma diversidade de reações na plateia, abrindo um leque de várias camadas de leituras e interpretações. O espectador pode aproveitar sequências de humor sutil e um caleidoscópico festival de alegorias.



Diga-se de passagem, ainda sobre a retrospectiva do Oscar de Melhor Filme Estrangeiro. Outros dois diretores suecos receberam nada menos que 3 indicações cada um: Bo Widerberg (1964, 1969 e 1995) e Jan Troell (1971, 1972 e 1982). 
Para um país com tanta tradição na categoria de Melhor Filme Estrangeiro (no total, são 14 indicações, com os 3 Oscars para Ingmar Bergman), não será surpresa nenhuma se a Suécia vencer de novo em 2018.

sábado, fevereiro 03, 2018

Viva: a vida é uma festa

Dante, o cão da ancestral raça Xoloitzcuintle que adora acompanhar Miguel, e Héctor, uma figura folclórica do mundo dos mortos, que vai ajudar Miguel a se aproximar de Ernesto de La Cruz.

Como tem sido tradicional no meio da animação, Vida, a vida é uma festa é codirigido por um experiente diretor de animação e um, digamos, novato. O experiente seria Lee Unkrich, nascido em 1967, cujo Toy Story 3 venceu o Oscar de Melhor Animação sete anos atrás. O novato é Adrian Molina, nascido em 1985, que também é coautor do bem elaborado roteiro de Coco.

Sim, por incrível que pareça, Coco é o título original. Trata-se de um daqueles dilemas tradutórios solúvel apenas pela pragmática inspiração dos distribuidores em uma reunião em que provavelmente o tradutor nem estava presente. Foi assim também que Shane deve ter virado Os brutos também amam. É uma tradição aqui no Brasil. Sempre que uma situação aponta para um problema de estranhamento linguístico, pesa o lado comercial, e inventa-se um nome novo ou copia-se a tradução do título para outro país.


De acordo com um artigo do Buzzfeed, este foi o motivo da mudança do título brasileiro. A matéria não leva em conta que no Brasil a palavra Coco não tem circunflexo no segundo "o". Além disso, o nome da personagem Coco no Brasil não é Lupita, e sim Inês.


Sinceramente, na minha opinião, tanto Coco quanto Shane tiveram seus títulos melhorados no Brasil. No caso de Coco, absolutamente não funcionaria deixar como título o nome da personagem, no caso, a nonagenária que quando menina viu o pai abandonar a família para se tornar um músico de sucesso. A mãe dela, então, começou a fabricar sapatos para sobreviver. E a música foi abolida naquela casa. 

Algumas gerações depois, Miguel, menino de 12 anos, enfrenta esse dilema de ser apaixonado por música no seio dessa família que simplesmente erradicou toda e qualquer manifestação musical em seus componentes. 

Ele se rebela contra a família e decide se apresentar no show de talentos na praça da cidade, justamente no Dia dos Mortos. Mas ele vai precisar de um violão novo...


A econômica sessão das 14h estava com meia lotação, e, comparando-se com a sessão de O touro Ferdinando, posso afirmar sem medo de errar: Viva é uma animação "menos infantil" e que exige mais do público.

Senão, vejamos: o filme sobre o herói bovino provocou muitas risadas e gargalhadas no público infantil, enquanto Viva resultou em apenas tímidas risadinhas em momentos muito específicos. Também uma menina reclamou e pediu para ir embora, pois estava com medo dos personagens (de uma altura em diante, os mortos, representados como esqueletos de crânios muito personalizados, têm participação importante na trama).

Qual filme ganhará o Oscar de Melhor Animação? Os dois favoritos abordam temas universais e relevantes. A ênfase de Viva é a importância da família, de seguir o coração. O trunfo de O touro Ferdinando é a questão da diversidade, do respeito às individualidades. Seja a ser quase inacreditável, mas o livro de Munro Leaf foi considerado perigoso em alguns países, subversivo e não educativo para as crianças. Eu torço para o brasileiro Carlos Saldanha, mas vai ser difícil para O touro Ferdinando superar os animados acordes de Viva.