domingo, setembro 14, 2025

A vida de Chuck

 


A vida de Chuck
é um filme com diversos ingredientes capazes de atrair e agradar aos espectadores que curtem ciência, dança, astronomia e a obra de Stephen King.

Carl Sagan e sua obra e seriado mais famosos, "Cosmos", são citados ao longo do filme para denotar a irrelevância do ser humano e do tempo em que vivemos no contexto astronômico. 

Uma forma humilde de encarar o universo e a perspectiva do que é importante e "grande".

Ao mesmo tempo em que o filme nos conduz a esse ponto de vista mais amplo, nos faz mergulhar na individualidade de um professor que vê o mundo (esse nosso mundinho cotidiano, do trânsito, do solucionar os perrengues do dia a dia) se desintegrando ao seu redor.

Coisas estranhíssimas estão acontecendo em sua rotina, sem que ele consiga encontrar uma explicação plausível, mesmo sendo um sujeito com pés no chão e científico.

A situação caótica o leva a buscar uma reaproximação com a esposa de quem está separado.

Esse é o "Terceiro Ato" do filme, que na montagem vem por primeiro lugar.

No segundo ato, o mais divertido e leve do filme, o personagem principal, Chuck, assume o protagonismo em todos os planos da narrativa.

Ele está participando de um simpósio sobre contabilidade e no intervalo passa por uma artista de rua, tocando uma bateria em praça pública.

E o inesperado acontece.

Esta sequência é do tipo que surpreende, encanta e enternece, e tem gente que criticou o filme justamente por causa disso.

Gente que não tem sangue nas veias.

Gente que não concorda com Tobias Barreto:

"O coração também é um metafísico:

 Estremece por formas invisíveis, 

Anda a sonhar uns mundos encantados, 

E a querer umas coisas impossíveis…"

Todas essas pessoas que chinelearam

A vida de Chuck 

criticaram o filme por seus insights 

astronômicos e conversas astrofísicas,

isso é cansativo para elas.

Sim, estofo e conteúdo exigem mais do 

espectador que o intensivo 

"tcha-tchaka-na-butchaka" 

de Anora e quejandos.

Justamente o que cansa uns encanta outros.


O terceiro ato é um enternecedor mergulho na 

vida de um garoto que precisa enfrentar 

muitas perdas, e ainda assim não desiste, 

segue a sua vida inspiradora.

O meu filho de 13 anos disse ao final do filme 

que devemos aproveitar a vida, foi esse o 

moral do filme para ele.

Acho que o Stephen King ficaria satisfeito com essa análise simples.

Afinal, a singeleza de valorizar as pequenas coisas e cada momento é a essência de A vida de Chuck, a mais nova adaptação fílmica da vertente literária de King menos ligada ao terror, e que nos rendeu 

Um sonho de liberdade

Conta comigo

À espera de um milagre. 

Não sei explicar direito, mas sei que é bom sair do cinema com a sensação de ter "lavado a alma" e visto cenas catárticas, que reforçam a esperança em um cinema íntegro, que suscita debates e que permite diferentes interpretações.

Em tempo: não vou me surpreender se este filme receber indicações para o Oscar, como, por exemplo, Mark Hamill a Melhor Ator Coadjuvante.




quarta-feira, setembro 03, 2025

Planas ou redondas? Givin' Anora a Chance: análise das personagens de acordo com a Teoria Literária

 


Uma das coisas que mais abomino é a injustiça.

E uma injustiça cometida por mim mesmo é a mais abominável. 

Portanto, para não cometer injustiças com o badaladíssimo e premiadíssimo filme Anora, volto a me dedicar a ele, agora para analisar uma a uma das personagens segundo a Teoria Literária.

Lulu (Luna Sofia Miranda): colega de Anora como strip no clube noturno, é convidada por Anora para ir a uma festa de Ano-Novo na mansão de Vanya. As motivações e atos de Lulu são flats e planas como uma panqueca. Como diria Hamlet, Frivolidade, teu nome é mulher!

Tom (Anton Bitter): um dos amigos de Vanya, trabalha em uma loja de doces e protagoniza uma das cenas mais estapafúrdias do filme em que pretende dar uma de corajoso diante dos capangas do oligarca russo. Brande um bastão de beisebol que é tomado de seus braços como um adulto tira um doce da mão de uma criança. A definição de personagem plana é aquela que tem "emoções, motivações e personalidades simples". Mais plano que Tom apenas Crystal.

Crystal (Ivy Wolk): namorada de Tom e parte da gangue de Vanya, um grupo de pessoas desintelectualizadas ao extremo, sem nada a acrescentar para a humanidade, ao menos pelas cenas que Sean Baker nos mostra e pelas falas que saem das bocas dessas personagens moralmente constrangedoras.

Diamond (Lindsay Normington): Diamond é a rival de Anora no strip-club e quando Anora pede as contas e vai embora para viver seu conto de fadas, ela vaticina: não vai durar duas semanas o casamento. Vias de fato é claro vão acontecer entre as duas, em uma das mais convincentes demonstrações de "personagem-planismo" dos últimos tempos.

Galina Zhakarov (Darya Ekamasova): a mãe do noivo é uma bruxa malvada, uma megera de cuja boca só emergem maldades e falas preconceituosas contra a pobrezinha Anora. Flat, extremamente flat, pra cair os butiá do bolso de você, de mim e de todo mundo.

Nikolai Zhakarov (Aleksei Serebryakov): o pai do noivo é um pândego que acha graça de tudo, é o criador (Sean Baker) se revoltando contra a própria criatura, sem dó nem piedade, um personagem que tem lá sua graça, mas flat as flat can be.

Toros (Karren Karagulian): ele abandona um batizado para iniciar o processo de "colocar as coisas nos eixos", coisas que saíram de seu controle quando Vanya se casa com Anora. As motivações dele são simplórias, nada nele é profundo, superficialidade extrema na construção do personagem e na escolha de suas falas.

Garnick (Vache Tomvasyan): irmão mais novo de Toros, é nitidamente escolhido como o saco de pancadas do filme, alívio cômico, mas até nisso o roteiro soçobra, porque Garnick é um personagem que não oferece uma graça autêntica, é tudo muito forçado. Garnick é plano porque "permanece praticamente inalterado ao longo da história, (...) têm um ou dois traços ou características dominantes que são claramente definidos e não evoluem".

Ivan "Vanya" Zhakarov (Mark Eidelshtein): o filho de magnata é o protótipo de um riquinho mimado, o roteiro não se dá ao trabalho de tentar mostrar alguma qualidade do pobre Ivan, só seu lado tênue e superficial. O uso de personagens planos e essa falta de profundidade geralmente servem a um propósito específico na narrativa, como apoiar o desenvolvimento de personagens redondos ou aprimorar os temas da narrativa. Mas a pergunta que não quer calar: existe algum personagem redondo no filme?

Anora (Mikey Madison): uma cena da vida cotidiana de Anora é a única que nos dá um insight de sua personalidade "fora do mundo do strip". Ela chega em casa e vai dormir, a amiga com quem mora reclama que o combinado era ela ter comprado o leite, e ela ironiza. O comportamento de Anora se mantém previsível a maior parte do tempo. 

AVISO DE SPOILER 

Na última cena ela revela algo que pode ser considerado uma evolução, uma reação emotiva, um fluxo torrentoso de dúvida e fragilidade. É justamente nessa cena que Anora, construída o filme inteiro como personagem plana, dá um passo para se tornar uma personagem redonda. Mas daí o filme acaba e a gente não tem mais tempo de conhecer a verdadeira Anora. Ou alguém imagina que haverá um Anora 2?

Igor (Yura Borisov): creio que Igor, apesar de sua aparente truculência, consegue demonstrar em algumas atitudes certa profundidade de caráter, certa capacidade de nos surpreender. É muito pouco para um filme tão premiado, mas então, reconheço aqui, Igor é redondo, não é um capanga tradicional.

AVISO DE SPOILER

Não que a ideia de uma "síndrome de Estocolmo" entre a raptada Anora e Igor, um dos sequestradores, seja algo original, é um clichê dos mais óbvios. 

Mas estou aqui tentando reparar uma injustiça que posso ter cometido com Anora, e fazendo algumas observações adicionais que talvez amenizem o rigor de minha avaliação inicial.

E, mesmo com a melhor das intenções, constato que pela Teoria Literária Sean Baker não se esforçou para criar personagens redondos, além de Igor.

E Anora, a personagem? Bem, como observei, Anora mostrou uma faceta nova apenas no fim da história, e para mim isso foi decepcionante, ela permanece e age como uma personagem plana o tempo inteiro, e só no fim mostra ser "gente como a gente". 

Ainda vou ter que fazer um post só para comentar a última cena do filme.

Mas, como assim, se o filme é tão ruim, por que você se dá ao trabalho de fazer 3 posts sobre ele? Ou será que Anora não é tão ruim assim?


Em tempo: Joana Araci, no artigo "Why Anora Exposes Everything Wrong with the Oscars", explica porque ela, também, como eu e outras muitas pessoas, considerou Anora indigno do Oscar de Melhor Filme.

O último azul: The Blue Trail


Uma das coisas que eu mais prezo é a coerência. 

E quem lê este blog sabe das vicissitudes de um amante do cinema que mora no interior, longe da capital.

Sabe que eu vivo comentando o quanto é difícil filmes de arte chegarem aqui.

Então seria muita incoerência de minha parte não ir assistir a O último azul no Cine Lumine de Carazinho.

Ainda por cima na semana em que o ingresso está a 10 pila.

Com direção de Gabriel Mascaro e elenco liderado por Rodrigo Santoro e Denise Weinberg, o filme brasileiro foi consagrado com o Urso de Prata do Grande Prêmio do Júri no Festival Internacional de Cinema de Berlim, segunda maior honraria do festival (só perdendo para o Urso de Ouro).

O roteiro focaliza a saga de Tereza (Denise Weinberg) que, aos 77 anos, recebe do governo a ordem de ser levada compulsoriamente à colônia dos idosos. Ela reluta porque tem outros planos.

Dispensada dos trabalhos no frigorífico de jacarés onde trabalha na linha de abate e esfola, Tereza se vê tolhida por um sistema governamental autoritário, pelo qual ela deve usar fraldas e morar longe dos familiares mais jovens.

Rebelde, ela dribla a equipe responsável pela "coleta" dos idosos e parte para uma viagem em busca de redenção e livramento.

A jornada que ela faz é pelas águas, e em cada embarque vai conhecendo pessoas e tendo experiências diferentes.

Um dos barcos é pilotado por Cadu (Rodrigo Santoro), que a ensina como conduzir o leme e acionar as alavancas de comando. 

Entre um aprendizado e outro, Tereza mergulha nos mistérios das águas amazônicas e no poder místico e esotérico de um caracol que solta um muco azul.

Cadu mostra à Tereza que, ao pingar esse muco nos olhos, as pupilas dilatam e a parte branca do olhos se colore de anil, com a pessoa entrando em um transe ou delírio sensorial.

Algo que remete o espectador às experiências psicodélicas do livro As portas da percepção, de Aldous Huxley, em que o autor narra suas experiências com a mescalina, livro que inspirou Jim Morrison a criar a banda The Doors.

Outro livro que dialoga com o filme de Mascaro é um que li recentemente, escrito por Drauzio Varella: O sentido das águas: Histórias do Rio Negro

Enquanto Tereza deslizava pelas misteriosas águas amazônicas na tela, recordei de algumas histórias contadas no livro do famoso médico brasileiro, histórias reais, histórias de casas flutuantes e de palafitas, histórias sobre os indígenas, flagrantes intimistas de esperança e singeleza, exemplos de preservação histórica e da natureza, mas também sobre o pior que o ser humano é capaz.

No distópico mergulho ao futuro brasileiro de Mascaro, esse contato com a natureza nos faz migrar do bucólico e romântico ao cruel e ganancioso, e isso chega ao auge em uma sequência emblemática, em que Tereza, desesperada para conseguir dinheiro para comprar sua liberdade, aposta tudo que tem e até o barco em uma briga mortal de peixes-beta. 

Em O último azul, a beleza da natureza está sempre contrastada com a rudeza dos homens.