Fiquei pensando uma palavra que definisse o filme vencedor da Palma de Cannes e me veio à mente o adjetivo "ambicioso".
O trabalho de Justine Triet não é menos que isso, começando pela metragem de 2h36m.
Outro detalhe que torna o filme ambicioso é o fato de ser uma espécie de estudo de personagem às avessas, afinal de contas, o personagem estudado nunca aparece vivo.
A primeira cena em que ele aparece está estirado na neve avermelhada com os miolos arrebentados e sangue coagulado no crânio.
Outra característica que torna o filme ambicioso é o fato de ser um thriller sem um detetive formal, na verdade o detetive é o espectador.
As pistas vão sendo fornecidas pelas cenas em tempo real, paulatinamente, e depois, em flashbacks, na fala das personagens sobreviventes à queda.
Snoop é o cão que merecia um Oscar de melhor atuação. Ao redor dele o filme se constrói, ele tem uma relação especial com os três personagens principais, o garoto Daniel (Milo Machado Granier), a mãe dele, Sandra (Sandra Hüller) e a pessoa que morreu na queda, o pai de Daniel e marido de Sandra, Samuel (Samuel Theis).
Com Daniel, Snoop é o protetor e maior companheiro. O menino de 11 anos tem uma deficiência visual decorrente de um atropelamento. Mas ao lado de Snoop, Daniel se sente confiante e amado o tempo inteiro, explorando a paisagem nevada em dias de sol.
O cenário é uma cidadezinha da França, a cidade natal de Samuel. O casal mora com o filho e o cão em uma casa retirada, na zona rural de Grenoble. Sandra é escritora e tradutora, Samuel é professor e um aspirante a escritor, que tem boas ideias, escreve bem, mas não consegue terminar os romances devido a bloqueios.
A investigação sobre a queda se dá por meio da polícia, que vai fazendo induções e deduções, coletando indícios, fazendo descobertas. Passo a passo, o que poderia ser um mero acidente se torna uma morte suspeita que acaba em um tribunal, com Sandra sendo acusada de homicídio.
A maneira como a diretora Justine Triet conduz a trama é ambiciosa pelos motivos citados, ela confia que os espectadores vão aceitar a narrativa não linear, o vaivém na linha do tempo, a angústia crescente de Sandra e, principalmente, de Daniel, a maior vítima de toda a situação.
O menino que está tentando processar o luto começa a questionar a inocência da mãe e se perguntar se ela está dizendo a verdade.
De quebra, no tribunal, se vê obrigado a saber detalhes íntimos sobre a vida dos pais.
Pela sensação de opressão crescente e dos sentimentos de culpa que permeiam os personagens, Anatomia de uma queda fez um intertexto com outro filme ambicioso, pesado e dramático, também sobre um homem angustiado, Manchester à beira-mar.
Ser ambicioso per se não é algo ruim.
O filme de Justine Triet em muitos aspectos se mantém íntegro e passa uma honestidade que o filme de Kenneth Lonergan na época não me transmitiu.
O que diferencia o filme de Triet são dois fatores: um humor que corre por baixo da superfície, críticas sociais muito discretas, sem levantar bandeiras ou coisas do tipo, um humor que alivia tanto sofrimento que as personagens vivenciam. E, claro, todas as cenas de ternura com o cão Snoop, interpretado pelo border collie Messi. O expressivo Messi inclusive ganhou a Palm Dog, prêmio não oficial que existe há 22 anos no Festival de Cannes. Este ano foi um dos mais disputados e Messi acabou vencendo.
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