sábado, agosto 23, 2025

A hora do mal: Weapons

 


Acho engraçado quando pessoas cultas, inclusive jornalistas, artistas e escritores, se confundem na hora de se expressar sobre um assunto que envolve a escolha de títulos de filmes.

Só para dar um exemplo, o escritor José Roberto de Castro Neves, na obra Shakespeare e os Beatles: o caminho do gênio, fez o seguinte comentário:

"(...) Os reis do iê-iê-iê (a tradução feiosa de A Hard Day's Night) ".

Como se a "culpa" do título escolhido fosse de um tradutor.

Desconhecimento de como se faz a escolha de títulos. 

Nem sempre (ou talvez o mais exato seria dizer raramente?) a equipe de tradução é ouvida, ou se é ouvida, a opinião dela não é levada em conta.

Seja como for, em muitos casos é realmente necessário uma adaptação, porque a tradução literal "não funciona" culturalmente ou até mesmo afugentaria o público.

No caso citado acima, chama atenção o fato de que o autor, recentemente escolhido para a Academia Brasileira de Letras, se acha engraçadinho ao criticar a "feiura" da tradução, mas prefere, é claro, ficar longe de tentar uma "tradução" melhor.

Do ponto de vista de um tradutor profissional, eu preciso elogiar, primeiro, o trabalho da tradução das dublagens brasileiras (outra coisa que os arrogantes que acham que sabem inglês vivem criticando, sempre se apressando a declarar que só assistem a filmes legendados, afinal, é claro, assistir a filme dublado é coisa do povão).

E em segundo lugar, vai meu elogio também aos gênios que colocam títulos brasileiros nos filmes.

Muitas sacadas são geniais e os títulos originais são superados (p. ex. Levada da breca, O poderoso chefão, Curtindo a vida adoidado, etc.) 


Quem são esses gênios?

Eu gostaria de saber.

Funcionários e executivos da distribuição de filmes, imagino eu.

Em mesas-redondas, se reúnem para tomar a decisão.

"Armas", sugere o tradutor literal.

"Armas do crime", palpita o tradutor explicativo.

Um debate sobre o filme se segue, e a especialista em plots avisa:

"O título original não vai funcionar e ainda por cima é spoiler."

E explica os motivos.

O estagiário levanta a mão:

"Tenho uma ideia. O fato desencadeador acontece às 2:17 da madrugada. Que tal 'A hora fatal?'."

O tradutor explicativo protesta dizendo que nesse caso deveria ser "O horário fatal".

Um brainstorm se segue, em que vêm à tona vários títulos nessa linha, entre eles, "A hora da bruxaria", "A hora das armas" (sugerida pelo tradutor literal), e "A hora do enigma".

Até que o executivo-chefe, em sua poltrona maior na cabeceira da mesa, com seu infalível faro comercial, vaticina:

"A hora do mal".

Aplausos e comemorações se seguem, e o grupo sai dali direto a um happy hour.

Tudo isso para dizer que Weapons é um bom filme de Zach Cregger, cujo título original "Armas" não funcionaria, além de ser meio spoiler, e por isso foi bem ou mal substituído pelo genérico e insosso A hora do mal.

E por que é spoiler? Se eu explicar aqui, vou estar dando spoiler.

A estrutura do filme, arquitetada em sequências contadas sob diferentes pontos de vista, cada qual intitulada com o nome do personagem em questão, é um dos pontos fortes do roteiro.

Permite ao espectador reconstruir os fatos sem pressa e compreender as  angústias e intenções de cada pessoa envolvida.

O fato de Zack Cregger ser um comediante que está se especializando em filmes de terror é algo digno de nota, e explica o constante e eficiente uso de alívios cômicos ao longo da tensa narrativa.

Que a indústria não absorva mais esse novo talento em franquias.



domingo, agosto 10, 2025

Ennio, o maestro

 O melhor antídoto para um filme muito ruim é um filme muito bom.

Lançado em 2022, o documentário de Giuseppe Tornatore, o cineasta de Cinema Paradiso, é um excelente resumo da trajetória do compositor Ennio Morricone.

Um invejável rol de cineastas significativos desfila ao longo de 2h30, alguns em entrevistas especiais para o longa, como Clint Eastwood, Liliana Cavani, Bernardo Bertolucci, Roland Joffé, Tarantino e os irmãos Taviani, outros em imagens de bastidores, como Sergio Leone, Brian De Palma e Terrence Malick.

Pessoas do meio acadêmico, colegas compositores, críticos, cantores, cantoras, produtores musicais e produtores de cinema, enfim, muita gente boa vem dar o seu depoimento e ajudar a contar a história de Ennio Morricone.

Começou a estudar trompete por determinação paterna, Ennio na verdade queria ser médico. As origens humildes, quando o dinheiro da música mal dava para a alimentação, não o deixaram esmorecer.

Matriculado em uma das escolas de músicas mais bem conceituadas da Europa, a Academia Nacional Santa Cecília de Roma, Ennio foi se tornando um profissional do trompete, mas se encontrou mesmo quando começou a estudar composição, incentivado por professores que perceberam o seu talento.

Após concluir os estudos trabalhou em várias funções, mas começou a se destacar como arranjador da RCA Victor, fazendo arranjos inventivos e muito populares para gente como Paul Anka, vide a canção "Ogni Volta":


Ali Ennio já mostrava uma queda por frases musicais melódicas e desconcertantes, que mais tarde fariam parte de seu estilo inconfundível nas trilhas sonoras para filmes, gênero em que se tornou especialista.

A estreia no cinema se deu aos 33 anos e inicialmente sofreu com a crítica dos pares, que arrogantemente desdenhavam esse tipo de composição, considerando uma atividade indigna de um compositor de verdade.

A grande habilidade de escolher os acordes e a música certos para cada cena, o dom de entender a psicologia de cada realizador, tudo isso Ennio foi mostrando e aprimorando, mas o grande talento sempre esteve à mostra, desde o começo.

Prova disso é o quanto é difícil para quem conhece suas trilhas escolher uma década preferida.

A década de 60, com as trilhas de Por um punhado de dólares, O vingador silencioso, Três homens em conflito e Era uma vez no Oeste?



A decada de 70, com as trilhas de Investigação sobre um cidadão acima de qualquer suspeita, Sacco & Vanzetti e Allonsanfàn?


Ou a de 80, com A missão, Os intocáveis e Cinema Paradiso?


O filme de Giuseppe Tornatore abrange todas as fases, inclusive as mais recentes, em que Tarantino o convidou para fazer a trilha de Os oito odiados, ironicamente, a que lhe valeu seu único Oscar de Melhor Trilha Sonora Original, trilha que segundo o próprio Ennio marca uma ruptura ou "vingança" dos filmes de faroeste, pois compôs uma sinfonia completa.

A colaboração com a cantora portuguesa Dulce Pontes também ganha destaque no filme, e a influência da obra de Morricone na música pop e no rock, em samplings e covers de bandas como Metallica.

Bruce Springsteen e Pat Metheny declaram no documentário a influência de Morricone em suas respectivas carreiras e a sua admiração pela obra dele.

Emocionante e esclarecedor, Ennio, o maestro é um filme imperdível para quem ama cinema.

Bônus:





 

sábado, agosto 09, 2025

Anora


 Com a conquista do Oscar e da Palma de Ouro em Cannes, Anora se junta ao clube seleto de três filmes que fizeram essa façanha: Lost Weekend (Farrapo humano, 1946), Marty (1955) e Parasita (2019).

E agora que o filme entrou no Prime Video na categoria "Incluído no Prime", sem custos adicionais, eu, na condição de cinéfilo que acompanha ambos os prêmios, tive de conferir, não sem uma grande expectativa.

A decepção foi, contudo, inevitável.

Trata-se de um filme que em raríssimos momentos conseguiu me envolver, um filme cujo roteiro fraco tem diálogos tacanhos e cenas que não funcionam, um filme cujos personagens sem carisma não permitem uma identificação, um filme, enfim, que não merecia ter vencido a Palma de Ouro e muito menos o Oscar.

Uma hype e um diretor badalado então provocaram uma histeria coletiva que gerou essas premiações?

Eu que sou um cinéfilo ultrapassado e anti-humanista, afinal de contas, o cinema de Sean Baker é humano, demasiadamente humano?

Eu que não entendi a proposta, que não achei graça em cenas incrivelmente divertidas, que não percebi o humor por trás do tétrico, o profundo por trás do raso, o filosófico por trás do previsível?

O filme foi passando e eu não conseguia acreditar em meus olhos: como este filme ruim ganhou os dois maiores prêmios do cinema? Qual o futuro do cinema como arte se a enganação é marca do cinema atual?

Sean Baker é o maior enganador da história.

Fez uma cena bem-feita (a última) e achou que isso consertaria um amontoado de cenas malfeitas.

Pelo jeito conseguiu enganar muita gente, de críticos a pessoas que votam em Cannes e na Academia.

A vitória da atriz esforçada e iniciante Mikey Madison é um acinte, levando em conta as concorrentes brilhantes, Demi Moore e Fernanda Torres, em filmes muito mais significativos.

O emblema de Anora é o personagem Vanya, o apelido de Ivan, o personagem mais ridículo de todos os tempos do cinema, e como a personagem principal consegue "se apaixonar" por um babaca tão grande é que é a pergunta que não quer calar.

É como se o coitadismo da situação vulnerável de Anora servisse como justificativa para que ela transformasse uma relação de uma semana, em que o mancebo filhinho-de-papai-oligarca-russo a contratou para ser sua "namorada" em uma viagem com amigos tão idiotas quanto ele próprio, para participar de festas idiotas com músicas idiotas e drogas idiotas, em um conto de fadas. E como se o dinheiro do namoradinho rico a impedisse de ver o babaca que ele era, ou que só porque alguém lhe presenteia com um anel caro esse certo alguém se transforme em um príncipe encantado.

Os personagens de Sean Baker são patéticos, incoerentes e profundamente odiáveis.

Você não consegue criar empatia por ninguém até a última cena, quando talvez surja um pouco de simpatia por um personagem que até então oscilou entre o truculento, o violento e o asqueroso.

As cenas vão se sucedendo, uma após a outra, e a raiva só aumenta, porque nada faz sentido, culminando com o instante em que os "babás" de Vanya entram em ação, um senhor das antigas e seus dois capangas trapalhões e atrapalhados. 

Menos pior que outros mundo afora reagiram como eu ao assistir à "obra-prima" de Baker.

Em dezembro de 2024, Elena Ringo classificou Anora como "A vulgar ass-ault on cinema". Em sua carta aberta a Sean Baker, The Sunshine Man menciona a acusação de plágio e que daqui a 5 anos ninguém estará falando de Anora.

É esta a mesma sensação que eu tive ao ver Anora, a de estar vendo um filme descartável, com muito sexo explícito e pouca densidade.

É como se no mundo de hoje querer gostar de algo fosse suficiente para dar consistência a algo.

Mas por mais que alguém se esforce para gostar de Anora, a personagem, ou de Anora, o filme, o mais que a gente consegue é ter pena de ambos.

 Anora é uma menina perdida que aparentemente se deixou desumanizar pelo sistema em que está inserida, mas um filme que usa isso como artifício para justificar suas fraquezas comete um "golpe baixo". É como se eu ao declarar aqui que não gostei de Anora (o filme), eu estivesse declarando a minha insensibilidade pela situação das Anoras mundo afora.

Não é verdade, tanto que reconheço a força da cena final, mas, como eu disse, não tem como uma cena, por mais boa e comovente que seja, consertar todas as cenas grotescas que vieram antes.

Filmes vencedores da Palma de Ouro são filmes imortais, que não envelhecem, filmes da estirpe de Coração selvagem, Os guarda-chuvas do amor e O espantalho. Filmes que podem ser vistos e revistos e que ainda hoje encantam e emocionam.

E vencedores do Oscar de Melhor Filme são em geral épicos e inesquecíveis, grandiosos, obras-primas indiscutíveis do cinema, tradição que se cristaliza em títulos como A lista de Schindler, Titanic e Um estranho no ninho.

A premiação do caquético Anora desvitaliza esses dois prêmios de uma forma que o cinema jamais vai se recuperar.

O futuro dirá se vivemos em 2024 e 2025 uma insanidade no mundo das avaliações cinematográficas, em que um filme ruim ganhou dois prêmios importantes, revelando o quanto o cinema está à mercê de hypes e das redes sociais, e o quanto a ânsia de "causar" e a vontade de receber "likes" superam o trabalho honesto e o talento verdadeiro.

Ou se os detratores de Anora são uns retrógrados incapazes de reconhecer a genialidade no trivial.