Aconteceu naquela noite. Não foi nada planejado. Eu tinha 18 anos. Uma atração irresistível me arrastou àquele beco, depois àquela sala escura. Foi uma revelação à flor da pele. Uma experiência sensorial sem precedentes. Assisti a Malpertuis no Cineclube do Bexiga, em São Paulo.
O local é descrito assim na obra Na metrópole, textos de antropologia urbana: "Na rua Treze de Maio (...) foram abertos (...) espaços de experiências de vanguarda que fizeram desse bairro boêmio um local de encontro para artistas, intelectuais, poetas marginais, punks, freaks, junkies e roqueiros".
Embora eu não saiba precisar em quais dessas categorias eu me enquadrava, acho que isso ajuda a explicar o efeito que o filme teve em meu cérebro imaturo, ávido por literatura fantástica, Poe e Maupassant. Aquela sessão despretensiosa, mas absolutamente vanguardista sob todos os prismas, longe de minha terra natal, tornou-se uma das mais emblemáticas de minha trajetória cinéfila.
Anos depois, Malpertuis passou na capital gaúcha, e botei pilha numa galera para conferir a película. Resolvemos ir a pé e tivemos que descer correndo a Alberto Bins para chegar ao Cine Sesc a tempo. Nova revelação, desta vez com toques um pouco traumáticos.
Ao final da sessão, as opiniões se dividiram: eu, o fã incondicional, incomensuravelmente feliz por revisitar aquelas oníricas ruas medievais e ter renovado a experiência. Eu queria compartilhar a alegria de poder indicar um filme cult belga que dificilmente voltaria a entrar em cartaz. Eu queria compartilhar a paixão pelo cinema.
Mas os meus amigos não curtiram muito, alguns torceram o nariz. Sem sombra de dúvida, não sentiram por Malpertuis um décimo da empolgação que eu senti. Por isso, lembro-me daquela ocasião com certa frustração. Não deveria. Afinal de contas, eles me acompanharam, e ainda se submeteram ao mico de sair correndo rua abaixo para não chegarmos atrasados. Mostraram a amizade deles por mim ao toparem a minha suspeita indicação. Ninguém era obrigado a gostar do filme com a mesma intensidade que eu havia gostado. Ninguém era obrigado a apreciar aquela bizarrice belga, falada nessa língua mais bizarra ainda, que é o holandês, que tem palavras parecidas com as do inglês, do alemão e até do português.
A propósito, o roteiro baseia-se no livro homônimo, escrito pelo belga Jean Ray. O diretor Harry Kümel, cineasta belga nascido em 1940, é considerado por Jean Tulard um especialista em cinema fantástico. Temperou o vampirismo com pitadas de erotismo no filme Escravas do desejo, também chamado Filhas das trevas (1971). Segundo Tulard, Malpertuis (1971) foi malvisto pela crítica "injustamente".
Pois acabo de assistir a Malpertuis pela terceira vez, no aconchego do lar. Novamente o filme fez meus pelos se arrepiarem, em especial no desenlace. Consigo entender por que este filme me marcou tanto, consigo entender por que ele "me define", ou, para usar um termo da moda, "me representa" como cinéfilo. Sou o tipo de pessoa capaz de gostar de Malpertuis. Para o bem ou para o mal.
O blog This Island Rod traz um comentário pouco elogioso e repleto dos mais escandalosos spoilers sobre Malpertuis, estabelecendo um paralelo com Lisa e o diabo, filme de Mário Bava, também realizado em 1972.
Por sua vez, o site 366 Weird Movies lista Malpertuis como um desses tais 366 filmes estranhos. A página sobre Malpertuis é bastante informativa e a avaliação menos rigorosa, comparando as versões lançadas pelo estúdio United Artists e a "director's cut".
Já o professor Valdir Baptista bem observa as citações de Malpertuis à obra do pintor surrealista belga René Magritte enquanto tenta decifrar os labirintos do filme à luz da semiótica e da literatura borgiana no artigo Os signos crescem em Malpertuis.
O dvd traz um extra com depoimentos do diretor, da atriz Susan Hampshire, que interpretava 3 papéis no filme, e do diretor de fotografia Gerry Fisher. A entrevista deste último é particularmente esclarecedora sobre a força visual do filme. O diretor de fotografia é uma cabeça pensante que procurava harmonizar as suas próprias ideias com as ideias do diretor, que já eram bastante detalhadas e significativas. Já o diretor Kümel declara que trabalhar com Orson Welles foi muito difícil, o ator era teimoso e queria usar um roupão verde na cena em que a cor principal do cenário era vermelha. Por sua vez, a atriz Susan Hampshire comenta sobre a dor de usar lentes de contato que na época eram muito desajeitadas e pouco flexíveis.
Nessa pesquisa suscitada pela revisita fiquei me perguntando: por que cargas d'água um filme de 1972 só foi passar nos cinemas brasileiros no fim da década de 80? Uma pista para responder a isso é o prestígio da Mostra Internacional de SP, que em sua 9ª edição (1985), incluiu Malpertuis. Imagino que essa tenha sido a semente que disseminou o filme nas cinematecas e no circuito alternativo nos anos seguintes.
Se, por um lado, Malpertuis, talvez por ser ousado demais, acabou condenando prematuramente a promissora carreira de Harry Kümel a uma espécie de ostracismo, por outro, acabou se tornando, por sua estupenda força visual e narrativa labiríntica, um dos marcos do cinema fantástico.
Assisti Malpertuis numa mostra diferenciada para aficionados num cinema da rua Augusta, às 16 horas, na década de 80. Fui impactada pela obra. Hoje, 40 anos depois, ainda é o melhor filme que vi em toda minha vida.
ResponderExcluirassisti tambem despretensiosamente o filme no CCCSP numa quarta feira de tarde. No meio do filme, o negativo queimou e fez aquele efeito clássico na imagem que so tinha visto ate entao como after effects. O projetista rapidamente trocou o rolo, mas assegurou que perdemos somente alguns segundos do filme. Isso so aumentou o clima e a atmosfer. Sem duvida um dos melhores filmes que ja vi na minha vida
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