sexta-feira, dezembro 08, 2017

Possessão













      Aqui no RS temos um ditado: "se o cavalo passa encilhado...", ou seja, é bom aproveitar a oportunidade quando ela se descortina à sua frente. No ano em que o estadunidense Darren Aronofsky cometeu mother! e me inspirei a rever a obra-prima do belga Harry Kümel, nada mais apropriado do que falar sobre a controversa obra do polonês Andrzej Żuławski. Cada qual a seu modo peculiar, existe na obra desses três diretores um denominador comum: o inconformismo, a rebeldia, o ímpeto de causar um curto-circuito cerebral no espectador.

Possessão (1981), de Andrzej Żuławski, que deu a Isabelle Adjani a Palma de Ouro de Melhor Atriz no Festival de Cannes, é um exemplo dessa capacidade de chutar o balde e realizar coisas corajosas e imprevisíveis.

Por sinal, o polaco Andrzej 
Żuławski faleceu ano passado de câncer após realizar Cosmos, produzido em Portugal, quando preparava-se para filmar uma adaptação de "Os trabalhadores do mar" no arquipélago dos Açores.

Quatro anos antes, em 2012, uma retrospectiva de sua obra foi realizada nos EUA, com o título "Excesso histérico: descobrindo Andrzej Żuławski". Nesta entrevista, o diretor polonês comenta que abomina a palavra "histeria" para descrever seu trabalho, e prefere Zulawskienne, que, por sua vez, significa "over-the-top", ou seja, "extremely or excessively flamboyant or outrageous".

Com sua morte, muitas retrospectivas têm sido feitas mundo afora, inclusive no Brasil, com a mostra Cinema em êxtase, promovida pelo Cinesesc, que apresentou em outubro último sete filmes que dão uma ideia do trabalho avant-garde de Żuławski. As sinopses dos 7 filmes da mostra (que incluem O importante é amar) podem ser conferidas aqui. Depois, em novembro, foi a vez do Rio de Janeiro sediar uma retrospectiva da filmografia zulawskiana.

Este é o contexto ideal, pois, para falar aqui de Possessão, talvez o filme mais comentado de
Żuławski, e cujo monstro teve como criador o italiano Carlo Rambaldi, que trabalhou em filmes como King Kong, Contatos imediatos do terceiro grau e E.T





Certos filmes bem concebidos independem de serem interpretados, você assiste a eles e pronto. Dez minutos depois já os esquece. Outros, porém, ficam martelando na cabeça durante semanas, anos, décadas, suscitam debates ferrenhos, polarizações, perplexidades.

A ousadia da arte está na polissemia, na ambiguidade, na multiplicidade de caminhos interpretativos. Está em entregar um produto que já não pertence ao autor. As intenções do autor podem ter sido nobilíssimas, acontece que agora o seu rebento está sendo analisado e decupado: ele respira, pulsa e parece se rebelar contra o criador. Também tem suas intenções próprias. Por sua vez, na outra ponta, o receptor deixa de ser o receptor passivo e sente-se livre para coerentemente (ou não) interpretar o que leu ou viu. Nesses trabalhos artísticos, a interpretação "tricotômica" (intenções do diretor/autor, obra/filme e leitor/espectador) de que fala Umberto Eco é testada com o máximo vigor.





Assistir a Possessão me suscitou uma reação violenta de repulsa. Confesso que ainda não tive coragem de rever o filme, mas algo me diz que hoje o veria com outros olhos.

Redigi na época uma espécie de alerta irônico para que as pessoas abordassem o filme preparadas de antemão para não se decepcionar. Escrevi a resenha antes de começar a blogar no olhar cinéfilo e, não obstante seu pobre maniqueísmo, reconheço alguma qualidade nela, por isso, retrabalhei-a e vou publicá-la solenemente agora, com overdubs, ou seja, com acréscimos, e com cortes também.


Considero-me uma pessoa em evolução e não me sinto "refém" de minhas limitadas opiniões de outrora. Quero crer que o conciso verso do Radiohead "Fitter, happier, more productive", do O.K. Computer, me cairia bem: é isso que desejo ser e me tornar a cada novo dia. Uma das características deste blog, inclusive, é que vou mudando e, espero, melhorando os posts com o tempo.

Segue então minha duvidosa homenagem ao cinema transgressor de Żuławski, citado como um dos expoentes do cinema cult polonês nesta dissertação de Anna Draniewicz, excelente apanhado do cinema daquele país.



Possessão (texto de 2002, retrabalhado em 2017)






                                                              Todos os personagens deste filme são possuídos. Sam Neill é o marido possuído pela desconfiança, pelo ciúme e pela dúvida. O que sua inconstante mulher (Isabelle Adjani) andou fazendo enquanto ele viajava a trabalho? Bob, o filho do casal, é possuído pelo medo de que os pais se separem, e respira uma atmosfera de brigas e neuroses. A personagem de Isabelle Adjani, por sua vez, se vê possuída por um desejo ardente e incontrolável enquanto o marido estava fora, o que a leva a ser literalmente possuída pelo amante Heinrich, um intelectual possuído pela vontade de possuir as mulheres alheias, que mora com a mãe, possuída pela mania de controlar a vida do filho. Temos também, para completar esse quadro de deixar qualquer um possesso, a amiga de Isabelle, possuída pela vontade de transar com o marido da amiga, e a professora de Bob, Helen, também interpretada por Isabelle Adjani, possuída pela vontade de tomar o lugar da outra, como mãe de Bob e esposa de Sam Neill.
          Se você pensa que isso é tudo, enganou-se. Há também os dois detetives gays que descobrem em sua investigação o mistério dessa possessão toda.
       Isabelle Adjani ganhou o prêmio de melhor atriz em Cannes, 1981, por seu papel duplo nesse filme do diretor alemão polonês Andrzej Żuławski. Cena realmente chocante é a cena do metrô. De deixar a endemoninhada de O exorcista no chinelo. Convulsões, estertores, gemidos, fluidos corporais, babas, babas e mais babas, sangue, gritos, gritos e mais gritos, em uma sequência que exigiu muito preparo físico de Isabelle. Como a atormentada esposa de Sam Neill e a maternal professora, a primeira com seus originais olhos azuis, a segunda com olhos esverdeados pelas lentes de contato, a bela filha de pai argelino e mãe alemã é um dos possíveis motivos para alguém se motivar a conferir esta curiosidade do cinema fantástico.
     Um espectador ortodoxo poderá observar: Possessão (1981) não se resolve entre o drama, a ficção, o suspense; tenta se equilibrar pretensiosamente numa corda bamba sem rede, e quanto maior a altura, maior o tombo. Sob esse prisma crítico, Sam Neill faz o que pode com seu personagem, mas o roteiro não ajuda, é cheio de partes truncadas e descartáveis. Para isso podem ter contribuído, é claro, os famigerados cortes que os estúdios fazem na ânsia de tornar o filme mais palatável para “as grandes massas”.
     Sempre tive o propósito neste blog de não escrever para “malhar” explicitamente nenhum filme. Confesso que volta e meia cometo alguns deslizes e deixo de cumprir esse desiderato. Sim, eu confesso. Eu poderia paciente e placidamente passar sem me expressar sobre Possessão. Mas neste ano de 2017, em que os cinemas mostraram a bizarrice de mother!, não é de se admirar que eu tenha sido inapelavelmente atraído a escrever sobre Malpertuis, o cult dos cults e a lembrar de outros filmes que deixam uma plateia contrariada e desconcertada. É nessa vibe que me permito fazer a seguinte declaração bombástica.

ALERTA DE SPOILER DANTESCO E BOMBÁSTICO: interessados acessar expansão do post abaixo.

 Aparecem os créditos finais, e a recompensa pela perseverança: você poderá, enfim, começar a convalescença de seu sequelado cérebro. O consolo disso tudo é que sempre existe vida após a dantesca morte de um relacionamento doentio  no caso, Andrzej Żuławski, após se divorciar da bela atriz polonesa Małgorzata Braunek, se casou com a linda atriz francesa Sophie Marceau.
      E a vida cinéfila continua após decepções como Possessão, sem esquecer que uma boa prática cinéfila é procurar não fazer afirmações bombásticas e definitivas. Afinal de contas, muitas vezes caímos na tentação de “dar uma segunda chance” para pessoas que nos decepcionaram. Por que, não, dar uma nova chance a um filme ou a um diretor?
     Ainda mais, se esse diretor é o sujeito que afirmou: “Agradar a maioria é o requisito do Planeta Cinema. De minha parte, não faço concessões aos espectadores, essas vítimas da vida, que pensam que um filme é feito apenas para seu bel-prazer, e que não sabem nada sobre sua própria existência”.
     Sirva o chapéu a quem servir. De minha parte, com o rabo entre as pernas, faço um último comentário para concluir o post: a relevância de uma obra pode ser julgada por sua fortuna crítica, ou seja, o acervo de críticas sobre ela. E a fortuna crítica sobre Żuławski é riquíssima. Por exemplo, um trabalho aprofundado sobre algumas das possibilidades de recepção e interpretação do filme pode ser encontrado em Monsters Within and Without: Reading Female Identity Through Monstrosity in Andrzej Żuławski’s Possession, de Nikola Grbavac.



ALERTA DE SPOILER DANTESCO E BOMBÁSTICO

Sinto-me na obrigação de alertar os incautos que estejam cogitando cair na tentação de ver Isabelle sendo dantescamente possuída pela criatura concebida por Carlos Rambaldi. Com sorte, o filme cometido pelo sequelado polonês Andrzej Żuławski (que na época em que escreveu o roteiro do filme estava em meio a um tumultuado processo de divórcio) não lhe deixará sequelas.

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