Busquei no Google “Resenha de Não vai cair no ENEM - uma peça” e não
encontrei nada além do boletim informativo sobre a peça.
Será que ninguém teve a coragem de escrevê-la? Afinal de contas, dá um certo frio
na barriga “mexer” com uma pessoa sem papas na língua ferina e desbocada. Mesmo assim resolvi correr o risco e fazer uma utilidade
pública.
“Se Maomé não vai à montanha, a montanha vai a Maomé”: eis a
resenha da peça “Não vai cair no ENEM – uma peça”, autoria e encenação de
Eduardo Bueno, vulgo “Peninha”.
Antes de mais nada, um esclarecimento. Escrevo-a na condição
insólita de um colorado que se acostumou a ver o Peninha "chineliando" o meu
time. Vou procurar, na medida do possível, sublimar e relevar as tantas e
insistentes provocações do jornalista-historiador, que não se importa em correr
o risco de limitar o seu público ao criar um personagem de uma gremistice tão notória quanto pernóstica.
Em segundo lugar, um outro parêntese para esclarecer o meu
estado de espírito antes do espetáculo. O meu álibi era agradar minha esposa
que adora História, é gremista (não lá muito praticante) e aprecia o Peninha como comunicador. Eu era
puro ceticismo. Embora conhecesse o trabalho do Peninha em seus vídeos (ou
talvez por isso mesmo), eu tinha lá minhas sérias dúvidas sobre os rumos da
peça. Não é todo ator que sustenta “solo” a atenção de uma plateia por duas
horas.
Mas eis que logo fica claro que Peninha é um showman. A sua silhueta esguia, seus
cabelos e barba desgrenhados e sua descomunal altura se impõem diante da
plateia com a ajuda de sua voz sui generis. Seu modo escrachado de apresentar
as coisas estabelece um vínculo com até o mais cético dos espectadores.
Aos poucos, o meu receio de que a peça se tornasse árida vai se dissipando. Isso acontece menos pelo talento cênico de Peninha do que pela
sua capacidade de contar histórias relevantes com pitadas de curiosidades e
pelo seu ímpeto de fazer conexões esdrúxulas e mostrar por meio de detalhes
bizarros como a História tem (e deve ter) múltiplas interpretações.
A coluna vertebral da peça se constrói em torno de 8 personagens
principais: Luís de Camões, Pedro Álvares Cabral, Américo Vespúcio, Maurício de
Nassau, Zumbi dos Palmares, Tiradentes, D. Pedro II (?) e Marechal Deodoro da
Fonseca.
À vontade no meio de uma plateia essencialmente gaúcha, e à medida que vai explorando as nuanças desses personagens,
também menciona a importância de muitos outros, como Pero Vaz de Caminha e
Domingos Jorge Velho, o bandeirante que liderou a expedição que desbaratou o
Quilombo dos Palmares e matou Zumbi.
Falando em Zumbi, o momento em que Peninha encarna Ganga
Zumba e gorgoleja estirado no palco tem grande poder teatralmente falando.
Farpas não faltam para muitos personagens (e revoluções) da
História, e também para a concorrência. Peninha dá uma nos dedos da turma dos “Guias
Politicamente Incorretos”. Acredito que isso seja uma maneira estranha de Peninha
elogiá-los por conseguir também, ao modo deles, despertar o interesse de muita
gente sobre o que há por trás das versões “oficiais” da história. Em essência,
é o mesmo que Eduardo Bueno tenta fazer, embora a visão de Bueno seja mais “centrada”, para usar a expressão com a qual se descreve.
Falando nisso, essa habilidade de se desvencilhar de um viés
maniqueísta é o mínimo que esperaríamos de um historiador digno desse título, e
Peninha, embora defenda posições nítidas, mantém uma certa saudável ambiguidade
filosófica que permite às minorias ideológicas presentes na plateia também
acharem graça de alguns de seus ácidos comentários.
Por sinal, o palavreado de Peninha é um caso à parte. Com
deboche e irreverência, a sua impetuosa verve cáustica destila um vocabulário
digno de uma pessoa que lê muitos livros, mesclando palavras tipo “tonitruante” com o “baixo calão” de "m****”, “p****” etc.
Peninha vai suando em bicas (às vezes, o espectador chega a
recear por uma síncope) e trocando de figurino para encarnar figuras já
carimbadas (e outras nem tanto) de nossa História. Uma das partes mais
significativas e que acrescentou para a minha “cultura” foi a preleção sobre o caminho do Peabiru, sobre o
povo rico que morava nas montanhas e tinha muito ouro e muita prata.
Às vezes, porém, algumas piadas improvisadas parecem “passar do ponto”.
Isso acontece quando o nosso brilhante orador perde um pouco a noção de que nem
tudo se presta a virar piada e que nem sempre é bom e aconselhável sair do
“script” para se referir aos fatos da semana.
Ao fim e ao cabo, Peninha consegue o imponderável: dar uma
divertida aula de História e incitar a curiosidade dos “alunos” a pesquisar e
ler mais. Acredito que esse deve ter sido um de seus objetivos. Além, é claro,
de ganhar uma graninha honesta e (bastante) suada para ver se consegue reembolsar o
dinheiro que ele deve ao sogro.