O diretor Henry Selick adaptou a obra de Roald Dahl para realizar uma pequena obra-prima da fantasia. Antes de mais nada, quem é Henry Selick? Um especialista em stop-motion que gosta de colaborar em projetos de Tim Burton. O primeiro filme que fizeram juntos foi O estranho mundo de Jack (The Nightmare Before Christmas, 1993). E o segundo foi justamente James e o pêssego gigante (James and the Giant Peach, 1996), um sucesso de crítica e público.
A carreira de Selick foi um pouco prejudicada pela recepção do terceiro filme, Monkeybone - no limite da imaginação. Depois Selick ajudou Wes Anderson na animação em stop-motion do filme A vida marinha com Steve Zissou, de 2004.
Em 2005, Selick realizou Moongirl, seu primeiro curta-metragem de animação por computador, e abiscoitou vários prêmios. Em 2009, voltou à carga com Coraline, adaptação do livro de Neil Gaiman. A técnica usada foi o stop-motion estereoscópico, ou seja, 3-D. Por sua vez, Roald Dahl (1916-1990) é um autor emblemático da literatura infantojuvenil britânica do séc. XX. Eu diria que Roald Dahl está para as crianças britânicas como Monteiro Lobato está para as crianças brasileiras. Nascido no País de Gales, conquistou os leitores da Grã-Bretanha e do mundo com suas histórias fantásticas, muitas das quais já foram adaptadas para o cinema. A fantástica fábrica de chocolate, O Bom Gigante Amigo, Matilda, O fantástico Sr. Raposoe James e o pêssego gigante estão entre os títulos de sua autoria. Quando eu tive a honra de realizar a Oficina de Tradução Literária de Beatriz Viégas-Faria, grande tradutora shakespeariana da L&PM, um dos exercícios foi traduzir o texto "The enormous crocodile", de Roald Dahl. A experiência permitiu aos aprendizes dar asas à imaginação para tentar fazer jus às estratégias linguísticas de Dahl, com aliterações, brincadeiras sonoras, trocadilhos, etc. O estilo de seu texto exige que o tradutor procure não só o significado, mas também a forma, pois no caso de Roald Dahl, e de outros grandes escritores, a forma está a serviço da função.
E o que dizer do filme James e o pêssego gigante?
É uma ótima pedida para sair da mesmice e proporcionar aos filhos uma sessão divertida e repleta de intertextos. Uma das coisas mais legais é a estrutura do filme. Começa em live action, depois transmigra para stop-motion até que, no epílogo, volta a ser live action.
O stop-motion é utilizado justamente quando o elemento fantástico se torna mais pulsante, na parte da travessia oceânica, em que James trava contato com novos e estranhos amigos.
Os intertextos? Achei semelhanças entre a história de James Henry Trotter e a de Harry Potter. Não estou dizendo que J. K. Rowling se inspirou em Roald Dahl, longe disso. Seja como for, a literatura é um eterno reciclar de ideias e reaproveitar de elementos. Tanto James quanto Harry sofrem nas mãos de parentes nas casas onde moram. Tanto James quanto Harry têm suas vidas modificadas pela magia.
Meus filhos de 7 e 11 anos curtiram a sessão em plena sexta-feira à noite. A metragem de 1h19 minutos permite iniciar a sessão às 19h30 e terminar antes das 21h.
Este artigo traz sete suculentas curiosidades envolvendo a produção do filme.
Então anote na agenda e aproveite que este clássico do stop-motion está "disponível na Netflix". Em se tratando de infantojuvenis, é um dos melhores no catálogo atual, junto com A ganha-pão (aguarde comentário em breve).
Em tempo: corre o boato de que a refilmagem de James e o pêssego gigante em live action agora vai sair do papel. Em 2016, o diretor Sam Mendes estava sendo cogitado para dirigir o filme, mas ele se afastou do projeto, que contaria com roteiro de Nick Hornby. Será que agora vai? Quem viver, verá!
Na primeira noite da primavera gaúcha, o cineasta Werner Herzog foi a atração do ciclo de palestras do Fronteiras do Pensamento. O jornalista Daniel Scola fez uma breve apresentação do currículo do diretor alemão.
Em seguida a plateia recebeu o orador com uma calorosa salva de palmas. Herzog começou a sua fala improvisada e foi falando meio em fluxo de consciência, intercalando com trechos de filmes projetados no telão. No final, a já consagrada seção de perguntas, desta vez com uma convidada especial ligada à produção de cinema.
Herzog começou dizendo que era a sua primeira vez no Sul do Brasil. Já conheceu Amazonas, São Paulo, Rio de Janeiro e Brasília, onde recentemente esteve filmando um estranho povo da região. Ele comentou que o filho dele também é diretor de cinema. Caoticamente Mr. Herzog foi tecendo comentários sobre diversos tópicos e mostrando trechos de filmes ainda não lançados, um trecho de Vício frenético (a sequência das iguanas) e uma cena de Jack Reacher em que ele trabalha como ator. Caoticamente vou apresentar as minhas anotações, mas tentando ordená-las em subtópicos.
INFÂNCIA * Cresceu num local muito remoto, sem água encanada, sem eletricidade, de pés descalços no verão, fez a primeira ligação telefônica aos 17 anos. LEITURA * Se quiser ser um cineasta, leia! Leia, leia, leia, leia, leia, leia. E leia! FAZER CINEMA COM BAIXO ORÇAMENTO. * Você pode gravar um filme no celular, editar no seu laptop e distribuir no YouTube. * Não reclame (da falta de dinheiro). Arregace as mangas! (DO NOT COMPLAIN, ROOL UP YOUR SLEEVES!) * Você pode realizar um filme para cinema com um orçamento baixíssimo. A IMPORTÂNCIA DA TRILHA SONORA * A música eleva as imagens causando sensações quase religiosas (mostra Chapter Two - Landscapes of the Soul), sítio neolítico na Inglaterra.) * Coros medievais dos pastores tornam as imagens sublimes (mostra trecho do documentário sobre meteoritos). * A música faz você entender as paisagens de um modo mais profundo. O QUE É PRECISO PARA REALIZAR FILMES * Para fazer um filme você precisa entender o momento certo. Isso você não aprende na Faculdade de Cinema. * É preciso entender o coração das pessoas para se tornar um cineasta profundo. * "I FOLLOW THE IMPULSE OF MY FANTASY" = Eu sigo o impulso de minha fantasia. * Tudo depende da intensidade da visão que você tem. FACILIDADE PARA FAZER ROTEIROS (SEM FALSA MODÉSTIA) * Em Hollywood leva-se um ano para fazer um roteiro. Eu levei 2,5 dias para escrever Aguirre, a cólera dos deuses. METEORITOS * Vou mostrar uma parte de um documentário ainda não editado sobre um meteorito que deixou uma cratera de 1 km de diâmetro, "um pedaço de ferro" do tamanho de metade de um encouraçado. IGUANAS * Explica como filmou a cena em que o personagem de Nicolas Cage, sob a ação de entorpecentes, enxerga iguanas imaginárias no filme Vício frenético (2009). Para ele, as iguanas ficaram com uma expressão "estúpida". * "Os outros personagens não enxergam as iguanas, só o Nicolas Cage. Assim eu criei um vínculo entre a plateia e o protagonista, pois só eles que enxergam as iguanas." HOLLYWOOD * Sou um bom contador de histórias, mas sou melhor que Hollywood. A contação de histórias está sendo negligenciada. Já tive "pontos de encontro com Hollywood. * Eu não preciso de Hollywood, mas Hollywood também não precisa de mim. STORYBOARDS * Eu confio na minha imaginação na hora e no local de filmar ("on the spot"). * Storyboards são as ferramentas dos covardes. FILMAR SÓ O QUE IMPORTA * Se você tem ideia do que está fazendo, não precisa filmar excesso de horas. * Você precisa ser rápido. Levei 9 dias para editar O homem urso. * 300 minutos de filme para Family Romance, 2 semanas para editar. ESPÉCIE HUMANA * Somos autodestrutivos. * Precisamos diminuir o consumismo e o desperdício. Nos EUA, 45% da comida produzida é desperdiçada. AMAZÔNIA * A Europa derrubou suas florestas. Não concordo com a atitude imperialista de querer dizer ao Brasil como fazer. CALOR HUMANO * O povo brasileiro gosta de contato físico (Brazil is very "tactile".). No Brasil, as pessoas tocam na gente. (In Brazil, they touch you!). O contato direto é necessário. SONHOS * Sou um realizador de filmes, eu não tenho sonhos. DESPOJAMENTO * Eu só tenho um par de sapatos. LINGUAGENS EXTINTAS * A cada 10, 15 dias uma linguagem se extingue no mundo. * "Não quero viver num mundo sem leões, mas também não quero viver num mundo em que idiomas desaparecem facilmente." DECLARAÇÃO BOMBÁSTICA * "I am a fluffy husband." O bem-humorado cineasta declarou isso após mostrar a cena em que encarna um vilão amedrontador no filme Jack Reacher. Na sequência, ele obriga um sujeito a tentar comer seus próprios dedos. SOBRE O ENCONTRO DO PAPA COM ALIENS * Mr. Herzog estava falando sobre os meteoritos e sobre as teorias que a vida teria se originado na Terra trazida por meteoritos. Então, acrescentou o seguinte comentário, se um dia ele se encontrasse com o Papa. "Eu gostaria de perguntar ao Papa: se o senhor se encontrasse com um Alien, o senhor o batizaria?"
No final, Herzog respondeu a algumas perguntas. Qual o critério da escolha? Sei que a minha sobre o filme A caverna dos sonhos esquecidos não foi selecionada. Seria legal ter ouvido Herzog falar sobre um de seus filmes mais instigantes. No frigir dos ovos, mais uma jornada inspiradora neste ano primoroso para o Fronteiras do Pensamento.
Série documental sobre o secreto universo de Rockland Ranch, a comunidade de mórmons fundamentalistas que mora no costado de uma grande rocha, no Estado de Utah. A energia é solar, e as crianças crescem saudáveis, com bastante contato com o ar livre. Com um pormenor: algumas famílias do local são polígamas, com um marido e duas ou três esposas.
Lançado há 2 anos no Reino Unido, o documentário de 4 episódios focaliza principalmente as famílias de Enoch, que tem 17 filhos com 2 mulheres, e está namorando uma terceira mulher que em breve poderá se incorporar à família, e de Abel, que precisa administrar algumas rusgas entre as três esposas.
Um dos episódios mostra que Abel prometeu ao irmão, que estava com câncer terminal, casar-se com as duas viúvas, o que aumentaria seu número de esposas para 5.
Uma das famílias mostradas não é polígama, mas o homem afirma que desposar uma nova mulher ainda está nos planos. A mulher é indagada se concorda e ela diz que sim. No episódio 4, questões jurídicas e políticas afloram, quando o Estado de Utah ameaça criminalizar a prática da poligamia, fato que poderia ocasionar a prisão dos pais e a perda da guarda das crianças.
Achei válido o tempo investido para desmistificar um tabu e tentar conhecer como pode funcionar um modus vivendi tão inimaginável para os parâmetros ocidentais considerados "normais". A "civilização" parece se perguntar: quem são essas pessoas que acham que podem viver à margem das leis? E "essas pessoas" se perguntam: que civilização é esta que parece não tolerar o que é diferente?
Cada povo tem seu humor característico. O humor britânico é fleugmático e sutil. O humor francês é irônico e satírico. O humor brasileiro é escrachado. O humor belga é...
Bem, aí que reside o problema. O humor belga parece não ser algo definido. A Bélgica é um país esquisito com influências flamengas e francófanas. O célebre H. Van Loon, na obra O mundo em que vivemos, descreveu a Bélgica assim: "Um país criado por farrapos de papel, rico em todas as coisas, exceto em harmonia interna".
Deve ser por isso que algo na Bélgica me atrai. Curto os cult movies do diretor Harry Kümel. Adoro o surrealismo divertido dos quadros de René Magritte. Nunca me esqueci d'O homem que via o trem passar de Georges Simenon. Sou fã do Hergé. As histórias de Tintim nos fazem viajar pelo mundo, conhecer culturas diferentes, embarcar em grandes aventuras... Mas o bom humor é uma característica importante dos álbuns de Hergé. O humor de Hergé está no nonsense de Milu falando com Tintim. Está nos rompantes e no vocabulário sui generis do Capitão Haddock. Nas idiossincrasias do Professor Girassol. Nas trapalhadas dos gêmeos Dupont e Dupond. Enfim, quem lê Tintim conhece bem o humor belga. Só que é meio indefinível, como o próprio país e o próprio povo.
Ben Stassen é um diretor belga de animação especializado em filmes 3-D. Corgi: Top Dog (The Queen's Corgi,2019) é o seu novo filme. Ele coassina a direção com Vincent Kesteloot. O roteiro? É uma parceria da dupla Rob Sprackling e John Smith, da série Gnomeu e Julieta.
Os roteiristas do filme, portanto, são ingleses. Eles contam nesta reportagem o caminho tortuoso que o roteiro fez até cair nas mãos do belga Ben Stassen. Então na verdade o que temos em Top Dog: Corgi é uma mescla do sutil humor britânico com pitadas do humor belga.
Cinéfilos vão se deliciar com as referências ao filme Clube da luta. Feministas, porém, vão torcer o nariz para os estereótipos femininos, como a volubilidade personificada na cadelinha Wanda.
Num dócil e inocente filme de animação sobre cachorrinhos ninguém esperaria tantas críticas à realeza e ao atual presidente dos EUA. Uma coisa é certa: não espere uma obsessão com o
"politicamente correto". Pelo contrário. Algumas piadas beiram o gosto
um tanto duvidoso.
Enfim, essa mistura esquisita de humor tem o bizarro potencial de desagradar a gregos e troianos adultos. Já a criançada adorou e bateu palmas no fim da sessão.
Este é o segundo de três posts da série "Eu vi no Brasília", que homenageia o cinema de minha cidade natal. O primeiro foi sobre Pânico na multidão e o terceiro será sobre... aguarde a surpresa! Era uma vez na América do Sul uma sala de cinema que com sua sangrenta programação moldou o estoicismo e a tenacidade de um pequeno cinéfilo. Era uma vez um menino tímido que sofria bullying na escola e buscava um porto seguro naquelas catárticas matinês de sábado.
Era uma vez uma cena trágica que ficou na retina do menino, uma cena entristecedora, ao som da atmosférica trilha de Enio Morricone...
A sessão? Orca, a baleia assassina, de Michael Anderson. A cena? Uma orca fêmea é ferida com arpão e pendurada no barco. Então, para a surpresa e a perplexidade de todos, um feto é abortado no convés do pesqueiro.
Esta cena ficou gravada em meu cérebro e somente agora tive a oportunidade de rever o filme, em companhia de meu filho de 11 anos. Quando eu vi no Brasília eu deveria ser mais novo do que ele.
Eu ia sozinho ver tudo que é tipo de filme, dos mais trágicos aos mais sanguinolentos. Os danos ou benefícios que esse hábito (ou vício?) causou a minhas faculdades cognitivas em formação, só um estudo mais aprofundado poderá revelar.
Voltando à vaca, digo, à orca fria: existem muitos detalhes neste filme que poderiam permitir que ele se tornasse um cult, mas um cult daquele tipo "renegado pela crítica".
Foi destruído pelos especialistas mais eruditos. Guias o classificam com cotações nada lisonjeiras.
Dino de Laurentiis, o pragmático produtor, contratou uma dupla de roteiristas imaginativos, um excelente compositor, um diretor com Oscar de Melhor Filme na estante (A volta ao mundo em 80 dias), um ator carismático (Richard Harris, na pele do pescador Nolan) e uma atriz hipnotizante (Charlotte Rampling, que vive a bióloga marinha que tenta ajudar/entender Nolan). Tudo isso para contar uma trama de vingança das mais básicas. Para completar o prato, umas pitadas de atores para serem sacrificados ao longo do percurso, como a estreante (e estonteante) Bo Derek (que faria depois Mulher Nota 10) e um deslocado Robert Carradine, de A vingança dos nerds.
Este último, na pele do marujo Ken, tem uns 30 segundos de tela antes de encerrar sua patética participação e ser destroçado pelos dentes afiados da orca macho que deseja se vingar de Nolan e sua tripulação.
A ambientação da história não poderia ser mais adequada: a ilha de Terra Nova, no Canadá. A orca fêmea trucidada por Nolan acaba encalhada na praia, trazida pelo revoltado companheiro. Então o vingativo e inteligente cetáceo começa a protagonizar vários ataques ao redor do píer. A comunidade de pescadores pressiona Nolan a voltar ao mar para resolver o "problema" criado por ele. Sinceramente, ao rever o filme eu fico me perguntando como ele foi tão estigmatizado. Não é tão ruim assim. É um filme B que se propõe contar uma história de vingança e conta de modo bastante honesto, com as "armas" e o orçamento que tem. Um filme simples, mas não simplório. Um filme que não precisa se agarrar na desgraça alheia para atrair público. E digo mais, a obsessão com o tema vingança está ali de um modo incrivelmente original.
O filme carece de verossimilhança? Ora, esse argumento é um mau argumento. Orca tem uma forte "verossimilhança interna", uma congruência e lógica que funcionam naquele mundo ficcional.
Um certo misticismo é acrescentado à trama com a presença de um nativo americano, que conta sobre as lendas envolvendo orcas em gerações passadas.
Na parte final, o filme se torna mais e mais soturno, com Nolan se transfigurando num Ahab moderno.
Pelas cenas originais, a trilha etérea, a atuação de Harris e Rampling, a direção discreta de Anderson e o surrealismo da sequência final, Orca, a baleia assassina tem o seu honroso lugar na categoria de filmes Humanidade x Natureza. Em certos aspectos, o filme é um verdadeiro precursor da preocupação com a harmonia entre seres humanos e o mundo marinho.