segunda-feira, abril 27, 2020

Morte às seis da tarde




Este post é dedicado aos brasileiros de sangue polonês. É salutar poder assistir a um filme em língua estrangeira, conhecer um país pouco badalado, mergulhar na história e na cultura da quarta maior cidade polonesa, tudo isso embutido num thriller de primeira categoria.


Plagi Breslau na Showmax. Kożuchowska w filmie Vegi

Plagi Breslau em inglês foi intitulado The Plagues of Breslaw. Faz muito sentido. Já no Brasil sempre tem o "jeitinho brasileiro" e alguma sumidade teve a brilhante ideia de "mudar o approach" e inventar um nome mais "chamativo". Mas é preciso reconhecer que o título original contém uma espécie de "spoiler", e o título tupiniquim ficou funcional. 

Patryk Vega está fazendo filmes há décadas e, portanto, não é nenhum neófito.

Isso salta aos olhos pelo ritmo desenfreado do roteiro, as cenas econômicas e eficazes.

Às vezes, o pragmatismo chega a ser chocante, mas o cineasta/roteirista polonês abre mão de tudo para que a história ande.

Morte às Seis da Tarde - Vertentes do Cinema

Essa qualidade também pode ser listada como o maior defeito do filme.

Vega não faz questão de "guardar surpresas" para o final, ou de manter o suspense. O que ele quer é que o espectador não abandone o barco e isso ele consegue, pelo modo como a história é construída - e pela metragem relativamente curta.

Morte às Seis da Tarde - Vertentes do Cinema

Essa ideia na mão de um David Fincher renderia um moroso filme de 2 horas e meia. 

Nas mãos do polonês Patryk Vega tornou-se um hit instantâneo mundo afora, chamando a atenção para a vasta filmografia do diretor, cujo currículo versátil traz comédias e dramas, sempre centrado em mostrar o que o ser humano tem de mais controverso.

Se você curte filmes de serial killers com uma detetive prestes a explodir, Morte às seis da tarde é o filme ideal para curtir após o expediente.

domingo, abril 26, 2020

Brincando com fogo

Too Hot to Handle's Francesca Reveals Retreat Life Was Strict ... 

Tudo que é droga vicia, e o nome já diz, 

é uma droga mesmo.

E toda droga que se preze tem seus efeitos colaterais.

Estou atualmente viciado no seriado Brincando com fogo, e o efeito colateral é que, a cada episódio que assisto, tenho a desagradável sensação de que meu QI está baixando.


 Too Hot to Handle: See Matthew 'Jesus' Smith Beardless on New Girl ...

A minha sorte é que tudo termina em 8 episódios.


Francesca, ah, Francesca...

O nome dela deveria ser "Franfresca". 

Às vezes me dá um dejàvu e fico me perguntando se em outra reencarnação terei quem sabe conhecido alguém tão volúvel e desmiolada quanto. Ela faz jus ao título original do seriado:

The Problem With 'Too Hot To Handle' | Grit Daily News



Temos também Kelv, o contador, que pretende resistir bravamente às tentativas de sedução de todas as bonitinhas, mas ordinárias do recinto.



Sharron é o que mais inspira pena.

Pateticamente se agarra às recordações de um relacionamento malfadado para justificar suas atitudes porcochauvinistas.

O seu obscuro objeto de desejo, a esvoaçante Rhonda, sofre os ataques do sensível David, o amigo perfeito, mas muito sincero para se tornar atraente para as moçoilas que pelo jeito não gostam de bons moços.

Too Hot To Handle: Who Actually Deserved to Win the Prize Money ...











Estou no ponto em que um novo garotão chegou no pedaço, despertando o interesse da magérrima britânica. Ele toca teclados e se vangloria de levar ao seu iate uma garota por dia. E sempre uma garota diferente! 

Como será que vai acabar este trepidante reality show, em que seres humanos são comandados por um cone chamado Lana?

 Com sorte, a perda de QI não será irreversível e, ao cabo dos 8 episódios, eu consiga regenerar meus combalidos axônios relendo algum livro como Sapiens ou A história da filosofia ocidental



domingo, abril 19, 2020

O velho e o mar

The Old Man and the Sea (1958) - John Sturges, Fred Zinnemann ... 
Dirigido pelo especialista em faroestes e filmes de ação John Sturges (que está no meu TOP 10 de diretores que já não estão mais entre nós), o filme O velho e o mar, lançado em 1958, transporta com sobriedade ao cinema o clássico literário de Ernest Hemingway.

A grande qualidade de Sturges sempre foi ser um cara "matter-of-fact", ou, em outras palavras, um dos caras mais "no-nonsense" com quem você pode se deparar na indústria do cinema.



Seu envolvimento nesse filme é algo que à primeira vista pode parecer um tanto estranho, como se ele fosse um "peixe fora d'água", se me perdoem o trocadilho. Na verdade Fred Zinneman desistiu de dirigir o filme e Sturges foi chamado para substituí-lo. Mas, pensando bem, Hemingway também tem um estilo meio "pão, pão, queijo, queijo" e gostou do resultado ao ver o filme.


The Old Man and the Sea filme - Onde assistir

Eis que Sturges usa e abusa das cenas de estúdio, pega metragens de documentários, um roteiro que mescla partes narradas com trechos de ação, sonhos com duras realidades e, como sempre, cumpre a sua função de realizador que leva ao cabo a sua missão.

Para isso, contou com um grande ator no papel principal, com quem já havia trabalhado no filme Conspiração do silêncio (1955).

Spencer Tracy faz o que pode para tornar verossímil o seu personagem, e consegue isso com mais propriedade nos diálogos com o menino Manolin, que foi seu aprendiz, mas agora está pescando em outro esquife, pois Santiago (o nome do "velho) anda sem sorte na pesca.

Hemingway's The Old Man And The Sea: Part 1 — The Novel

Completando 84 dias sem pescar um peixe decente, lá vai Santiago em uma nova tentativa, levando apenas uma garrafa d'água e nenhum almoço.


No alto-mar fisga um marlim-azul, o maior que ele jamais imaginou um dia fisgar.

O peixe inicia uma luta ferrenha pela vida e arrasta o esquife de Santiago cada vez mais para longe da costa.

The Old Man and the Sea (1958)







A luta dura 3 dias. As mãos de Santiago estão em carne viva. Dominado pelo cansaço e pelas cãibras, o velho percebe que a visão está turva. 

O fim desta história não é um segredo para ninguém, mas não vou contar aqui.



27 Inspiring Survival Movies To Make You Appreciate Life - onedio.co







Vale a pena ver o filme e ler o livrinho, que em número de páginas está mais para uma "noveleta" do que para um "romance".

A luta de Santiago para provar que não é uma pessoa sem sorte é um conto que tem tudo o que de melhor pode ter a melhor literatura: ironia, dor, humildade, respeito, arrependimento.


A trilha sonora valeu mais um Oscar a Dimitri Tiomkin, que já vencera pela música do clássico Matar ou morrer (1953).  Os acordes de Tiomkin contribuem para que O velho e o mar mereça ser assistido, apesar de ser, nas palavras de John Sturges, "tecnicamente o filme mais desleixado que eu já fiz".

Mundo Fantasmo: 0109) O velho e o mar (27.7.2003) 








Esta página comenta também outras adaptações do livro para as telas, como a versão de 1990 com Anthony Quinn e a elogiada animação russa de 1999.

quinta-feira, abril 09, 2020

O bar

O Bar | Netflix

Bizarra mistura de O anjo exterminador de Luis Buñuel com Uma noite alucinante de Sam Raimi.

De Buñuel, temos aquela velha e saudosa sensação claustrofóbica de ser incapaz de evadir de um determinado espaço.

De Raimi, temos aquele velho e bom recurso do alçapão que dá para um porão escuro e horrendo.

A diferença em relação aos dois filmes é que O bar (2017) não é um filme fantástico nem surrealista.

Pega esses elementos e os transforma numa história perfeitamente plausível, ainda mais nos tempos pandêmicos atuais.

Foto de O Bar - O Bar : Foto Jaime Ordóñez - AdoroCinema

Talvez outra referência pudesse ser citada aqui: Doze homens e uma sentença.

De Lumet, O bar não tem os doze homens. Afinal de contas, são oito homens e três mulheres que ficam presos no bar. 

Mas os dois filmes têm em comum uma característica muito própria: a de que a história se desenrola num só ambiente, com personagens interagindo entre si e demonstrando suas fraquezas e pontos fortes.

Sim, o roteiro de O bar poderia perfeitamente ser adaptado e virar uma peça teatral de suspense, crítica social e drama existencial.


Apesar de ser relativamente "pés no chão" (ou seja, tudo acaba tendo uma explicação científica), Álex da la Iglesia (de Crime Ferpeito e O dia da besta) caprichou no gore e no body horror, e nisso também se afasta de dois dos filmes citados, à exceção, é claro, do filme de Sam Raimi, que também é bastante violento e sanguinolento.

The Bar – Review | Netflix Horror Comedy 'El bar' | Heaven of Horror

Em O bar paulatinamente as pessoas vão descendo às profundezas do subsolo e, ao mesmo tempo, degradando seu grau de humanidade.

Do térreo ao porão, do porão ao esgoto: no descenso as pessoas vão se revelando como realmente são, hediondas e asquerosas como chafurdar nas galerias do esgoto.

Mais uma referência! Os miseráveis

Diga-se de passagem, aliás, a melhor versão da clássica história de Victor Hugo é a de Richard Boleslawski com Fredric March e Charles Laughton, realizada em 1935.

Um filme que nos faz lembrar de tantos outros filmes bons não poderia ser ruim, é claro. 

Mas, e tudo tem sempre um "Mas"...

SPOILER SPOILER SPOILER SPOILER NÃO ABRA ESTE TENEBROSO ALÇAPÃO 

SPOILER SPOILER SPOILER SPOILER 

SÓ ABRA ESTE TÉTRICO ALÇAPÃO
DEPOIS DE ASSISTIR A "O BAR"
FUNESTO FILME 
DE HUMOR MACABRO 
NA NEFANDA NETFLIX

O Bar - Filme 2017 - AdoroCinema

A única crítica que o diretor e o seu corroteirista poderiam receber é de terem sido politicamente "incorretos"...

Um personagem que até a metade do filme é uma espécie de anti-herói, crítico da sociedade, acaba "sacrificado" pelo roteiro, apenas para ganhar mais alguns minutos de terror.

Esse é um "clichêzinho" que poderia ter sido evitado, mas foi tão irresistível que acabou sendo inevitável, pelo jeito.

Cair em tentação, eis algo que todos bons roteiristas e bons diretores acabam fazendo.

E por cair nessas tentações, seus filmes deixam de ser excelentes para se tornarem apenas bons.

Para encerrar o post em tempos de notícias tristes, uma triste informação: O bar foi o último trabalho da atriz Terele Pávez.

Terele Pávez muere a los 78 años





quarta-feira, abril 01, 2020

Kika





Só um diretor no mundo é capaz de pegar ingredientes como sexo, traição, complexo de Édipo, catalepsia, suicídio, voyeurismo, invasão a domicílio, estupro, êxtase, homicídio, sensacionalismo, onanismo, lesbianismo, invasão de privacidade e assassinatos em série, colocar tudo isso no liquidificador e produzir uma surpreendente... comédia!


Kika (1993) é um filme da fase intermediária da carreira do diretor espanhol. 

Veio depois de Mulheres à beira de um ataque de nervos (1988), Ata-me (1990) e De salto alto (1991), todos sucessos internacionais. Portanto, Almodóvar já era um diretor reconhecido e muito respeitado. 

O livro Pedro Almodóvar, de Thomas Sotinel, da coleção Masters of cinema, da Editora Cahiers du Cinema, é taxativo. Sentencia que "Kika é o menos apreciável dos filmes de Almodóvar" (the least likable of Almodóvar's films).




Sotinel apresenta uma série de motivos para a recepção fria da crítica e do público, como a "bizarra brutalidade", a "raiva violenta contra os programas de TV", uma agressividade "raramente comovente e, às vezes, desagradável".

O autor cita, porém, o contraponto de Almodóvar, que se defendeu das críticas declarando: "Eu decidi imbuir Kika de um otimismo incorrigível, mas as outras três personagens se compuseram por si sós".


ATENÇÃO: Por favor, se ainda não assistiu ao filme, NÃO leia a "sinopse" acima reproduzida, que consta na contracapa do dvd. Além de conter vários spoilers, traz a intragável expressão "Como resultado", que vem da tradução literal de "As a result".

Não cometerei uma sinopse e sim apresentarei os personagens principais: Kika (Verónica Forqué) é uma maquiadora que se apaixona por um cadáver... Andrea Caracortada (Victoria Abril) é uma apresentadora de TV que protagoniza a célebre cena da gota de sêmen no rosto. Ramón é um fotógrafo atormentado pela lembrança da mãe morta. E Nicholas (Peter Coyote) é um escritor, padrasto de Ramón.  

Kika representa um marco negativo na carreira de Almodóvar, pois ele nunca havia recebido críticas tão duras. Talvez tudo isso tenha contribuído para que Almodóvar desse um salto de qualidade e encontrasse um equilíbrio, moldasse um estilo mais maduro, a ser concretizado em filmes mais "sérios", que vieram depois de Kika

A flor de meu segredo (1995);

Carne trêmula (1997);

Tudo sobre minha mãe (1999);

Fale com ela (2002) e 

Volver (2006).

Sob um prisma mais otimista, Kika também pode ser visto como um filme importante, que marca o fim (ou seria o ápice?) da fase mais genuína e divertida deste cineasta sui generis que fez do cinema espanhol um produto de exportação.