sábado, dezembro 03, 2022

Nada de novo no front

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O filme do esteta Edward Berger é o pré-indicado ao Oscar pela Alemanha. A julgar pela recepção que o filme está tendo mundo afora desde a sua estreia no Festival de Toronto em setembro e, no fim de outubro, na Netflix, há uma boa chance de ele acabar entre os 5 finalistas de Melhor Filme Internacional. 

O enredo baseia-se na obra In Westen Nichts Neues, escrita por Erich Maria Remarque e publicada a primeira vez em 1929, cuja ação se passa durante a I Guerra Mundial, sob o prisma dos alemães. A primeira adaptação ao cinema foi em 1930 (All Quiet on the Western Front / Sem novidades no front), Oscar de Melhor Filme, com direção de Lewis Milestone.

 

 

A história é contada do ponto de vista de Paul Bäumer, um rapaz que se alista no exército aos 17 anos para combater nas trincheiras do front ocidental. Os ideais que o levaram a se alistar vão aos poucos sendo minados pelo dia a dia brutal e sem sentido do front de batalha.

A alimentação precária da tropa é algo que fica bem realçado em várias sequências. A sujeira e a falta de condições sanitárias, também. 

 A construção dos personagens se dá sem pressa, com os vários combatentes do pelotão sendo apresentados ao espectador, em meio a cenas de combate e nas tréguas. 

 

 

A maioria dos soldados tem menos de 18 anos e se vê obrigada a esquecer dos sonhos de um dia ter uma namorada e uma vida próspera para chafurdar no infernal "front do ocidente", comandados por insensíveis marechais.

Algumas cenas horripilantes se destacam, como a que o jovem soldado alemão se vê sozinho com um soldado francês num lodaçal que circunda uma cratera cheia d'água fétida.

 


 É matar ou morrer, e Paul não hesita em sacar o punhal e, após derrubar o oponente, cravar várias vezes a lâmina no peito do inimigo. Paul se afasta dele, mas o moribundo emite sons gorgolejantes que fazem Paul cair em si e se arrepender de seus atos. Uma das muitas cenas do filme que retratam com crueza a estupidez das guerras.

 

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O estreante Felix Kammerer faz um trabalho digno de nota no papel do protagonista. A fotografia é outro destaque, assim como a trilha sonora hipnotizante e, nos momentos que antecedem as lutas sangrentas, mesmo assustadora. Por sua vez, o diretor Edward Berger revela um olhar preocupado em veicular conteúdo potente, mas com veracidade e beleza, até onde a insensatez pode ser bela. 

 

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Em pleno 2022, um filme antibélico, em que os líderes por trás da guerra são dementes, teimosos, orgulhosos e cegos, poderia soar deslocado, se hoje vivêssemos num mundo em paz, sem governantes de potências bélicas com essas características.

Mas o libelo de Edward Berger soa atualíssimo e por isso merece ser visto, apreciado e comentado.

 Uma das coisas interessantes é estabelecer um paralelo entre o filme germânico de hoje e o americano de 1930, bem como entre o livro e os filmes. Um artigo da Collider aborda as diferenças do livro de Remarque e do filme atual.

Da estirpe do já citado Sem novidades no front (Lewis Milestone), Gallipoli (Peter Weir) e 1917 (Sam Mendes), to name a few, Nada de novo no front de Edward Berger entra para essa seleta galeria de filmes essenciais e imperdíveis sobre a I Guerra Mundial.


segunda-feira, agosto 29, 2022

Tudo em todo lugar ao mesmo tempo

 



Se a graça de ir ao cinema é ser desafiado, Tudo em todo lugar ao mesmo tempo promete e entrega graças mil.

A multiplicidade é o tema aqui.

Multitarefas.

Multidisciplinar.

Multidão.

Multiplicar.

Multitude.

Multiverso.




Multidesafiado, o espectador tem duas opções: se deixar levar ou multiplicar a tensão na poltrona.

Na sessão percebo que só sei de uma coisa: 

ainda não sei se o tipo de humor dos "Daniels" é o tipo de humor que me agrada.

Nesse meio-tempo, digo, multitempo, 

múltiplas razões me levam a relaxar e encarar tudo isso com a maior multidisciplinaridade possível.

Afinal de contas, o multi é o novo uni.

Unidunitê, o multiverso está em você.

Muita gente achou graça na cena das pedras. 

Multipedante é o filme com múltiplos capítulos. 

Dunkirk seria melhor sem as subdivisões. 

Nope seria melhor sem as subdivisões.

Todos esses diretores multitalentosos têm esse probleminha.

Nem tudo pode ser perfeito em todo lugar e ao mesmo tempo.










Não! Não olhe!


 
Jordan Peele é o mais estranho caso do cinema autoral da atualidade.

A sua voraz paixão por contos do escarro e do bizarro é avassaladora, seu interesse por investigar os meandros sombrios da alma humana e do universo é irrefreável.

Logo na estreia, chegou, chegando.

O acachapante Corra! tem um dos roteiros mais criativos e funcionais do século. Misto de ficção científica aterradora com terror psicológico, o filme tem desdobramentos que dão calafrios na espinha.  

Em Nós, um perturbador estudo sobre a dualidade, Peele busca um amadurecimento narrativo, escancarando no processo tendências de estilização e exageros formais. Embora em alguns momentos esses excessos soem um tanto farfetched, ainda assim, é um filme sem concessões e bem acima da média.

O que nos conduz a Nope, que no Brasil ganhou o inventivo título Não! Não olhe! O terceiro longa-metragem de Jordan Peele, que em Portugal manteve o título original e foi resenhado por Cátia Santos no site Cinema Sétima Arte, só comprova a nossa afirmação inicial.


O mestre das estranhezas e das bizzarrices desta vez foca suas lentes não no sobrenatural (Nós) nem na perversidade humana (Corra!), mas noutro, talvez mais prosaico, tipo de visita, que nos remete a clássicos como O dia em que a Terra parou Contatos imediatos do terceiro grau, de Spielberg.

O diferencial de Peele é transformar o que poderia ser um filme trivial em uma aula de cinema, com cenas de uma plasticidade irresistível.


Em Nope, a fenomenal avidez por citações (do banho de sangue na casa que lembra Amytiville às entranhas de uma assustadora Viagem fantástica, para citar apenas duas) anda lado a lado com a iconicidade por trás dos motivos dos protagonistas.

O mais importante no filme é fazer o registro.

Documentar.

Ter a prova.

Com fotos estáticas ou "fotos em movimento", os fantásticos acontecimentos do rancho Haywood precisam ser fixados em rolo ou em forma digital.




A história paralela, em que um chimpanzé participante de um sitcom tem o seu dia de fúria diante das câmeras, serve como elemento adicional para compor o suspense, mas qual a relação com o tema principal? Por que está no filme? Preciosismo? Ou exerce uma função? Talvez subliminarmente uma crítica ao uso de animais em filmagens? 

É o ganha-pão da família Haywood, que treina cavalos para participarem de filmes. A minha intuição é que a história vem como um bônus, um "plus a mais", um recorte extra na mente doentia de alguém obcecado por sangue, pelo inusitado, pelo que nos causa medo e pavor.

O foco é a relação entre os irmãos Emerald e O. J., que, após a inacreditável morte do pai, têm que manter a viabilidade financeira do rancho. Sim, no frigir dos ovos, Nope é sobre os laços fraternos, sobre um irmão que ajuda a irmã e vice-versa, em prol de um objetivo comum.

 


domingo, julho 03, 2022

Jane Campion em dose dupla

Em 2022, a cineasta neozelandesa Jane Campion tornou-se a terceira mulher a ganhar o Oscar de Melhor Direção.


Para quem acompanha a carreira de Jane Campion, desde os tempos de O piano (1993), que venceu a Palma de Ouro em Cannes e valeu o Oscar de Atriz Coadjuvante a Anna Paquin, isso não foi nada surpreendente. 

Recentemente assisti a um filme antigo dela e também ao que lhe rendeu o Oscar, é claro. 

Um anjo em minha mesa, de 1990, da fase neozelandesa, é a tocante cinebiografia da escritora Janet Frame. 

O ataque dos cães, de 2021, é um filme difícil de rotular, um conto envolvente de mistério e um estudo contundente sobre as complexidades da alma humana.

UM ANJO EM MINHA MESA




Janet Frame, a escritora neozelandesa, foi diagnosticada com esquizofrenia enquanto estava na faculdade. Por conta disso a vida dela sofreu uma violenta transformação e por pouco ela escapou de sofrer uma lobotomia.

Jane Campion estruturou o filme em três partes.

Parte I

Conta a infância de Janet na Nova Zelândia, um local paradisíaco. A família morava num penhasco com vista para o mar.

A vida familiar, com o pai rígido e as quatro irmãs dormindo na mesma cama, com o único irmão sofrendo de convulsões, a amiga que lhe ensina a palavra "Fuck" e que as crianças não vêm com as cegonhas, os professores quase todos eles rigorosos, à exceção do professor de Literatura, que elogia os poemas da pequenina aluna ruiva.

A parte I é a mais leve, mas também conta alguns dramas e tragédias familiares. A vida de Janet Frame nunca foi realmente uma vida fácil.

Parte II

Esta é parte crucial do filme, em que Janet entra na faculdade, onde tenta enfrentar a sua fobia social. O cabelo ruivo e crespo é um motivo de chacotas, como também os dentes podres.



A maneira pela qual se expressa melhor é escrevendo. O professor elogia o seu trabalho, mas um dia Janet é surpreendida. O mesmo professor que a elogiou aconselha a Universidade a enviar a aluna para o hospital. Janet aceita, pensando que estavam preocupados com a saúde dela. A princípio não se dá conta da gravidade do que está acontecendo, até o dia em que descobre que está na ala psiquiátrica. Esta parte do filme é um show de horrores, como se a vida de uma promissora poeta estivesse entrando num infernal turbilhão de suspeitas, mentiras e erros médicos. Ela passa 8 anos internada. E só recebe alta porque seus livros começam a ser publicados e premiados. 

Parte III 
 



Janet volta para casa. A chegada ao lar é com certeza uma das mais emocionantes cenas de "homecoming" da história do cinema.

Esta parte conta a redenção de Janet Frame, como ela fez "do limão uma limonada", se tornou uma pessoa completa e realizada, lavou a alma com uma segunda opinião de seu diagnóstico (contar mais do isso seria um spoiler) e continuou sua trajetória para se tornar uma das mais importantes escritoras do país.




O ATAQUE DOS CÃES

Com roteiro de Jane Campion, inspirado no livro homônimo de 1967, de Thomas Savage, The Power of the Dog recebeu em Portugal o título O poder do cão. No Brasil o título escolhido foi O ataque dos cães.


Com locações na Nova Zelândia, O ataque dos cães tem uma fotografia admirável, um roteiro bem trabalhado (escrito pela própria cineasta, com as tomadas já prontas em sua cabeça), figurino caprichado e um grande elenco que se entrega à missão de dar vida a esses densos e multifacetados personagens. 


O resultado é um filme de altíssima qualidade, digno da filmografia memorável de Jane Campion. Um filme que merece ser conferido por todos que apreciam o bom cinema, e é uma pena que só assinantes de uma plataforma específica possam assisti-lo. O rumo que a indústria de entretenimento tomou não é exatamente o mais democrático. 

É impossível assinar todas as plataformas, e nem todos esses filmes chegam aos cinemas. Então, o poder dos cães da indústria se revela da forma mais tortuosa e traiçoeira.


MULHERES NA DIREÇÃO

Este post é uma homenagem a Jane Campion e a todas as diretoras que eu gosto, desde a Kathryn Bigelow (a primeira a ganhar o Oscar de Melhor Diretora) a Liliana Cavani (O porteiro da noite, ver foto abaixo), de Agnieszka Holland a Sofia Coppola, entre outras.  Esta matéria do Nerdizmo cita 45 diretoras, muitas delas da nova geração. Por sua vez, o site High on Films apresenta uma lista mais ortodoxa, com as 20 maiores cineastas mulheres de todos os tempos.




sábado, junho 25, 2022

Feriado no harém


 Escolhido por John Wilson, o fundador do prêmio Framboesa de Ouro, como um dos "100 filmes mais deliciosamente ruins da história", Harum Scarum (no Brasil, Feriado no harém, 1965), tem a direção de Gene Nelson.

Espécie de "pau-para-toda-obra" da indústria do entretenimento, Gene Nelson alcançou mais reconhecimento como ator do que como diretor. Era um excelente e hábil dançarino. Atuou por exemplo em Oklahoma! (1955), dirigido por Fred Zinneman. Mais tarde Gene Nelson migrou para a direção de seriados de tevê, inclusive Star Trek.

O background e o conhecimento do diretor como bailarino são notáveis na ênfase dada em Harum Scarum às sequências de dança, talvez as partes mais bem dirigidas do filme, que tem como outros pontos fortes a direção de arte e o figurino.

Uma pena é o roteiro. De autoria de Gerald Drayson Adams, a história, segundo o site Elvis Australia, careceu de ser mais bem trabalhada: "Little effort was invested in the script". Não é uma surpresa que isso acaba se tornando o maior problema do filme.

Diga-se de passagem, Elvis Presley já tinha feito um filme com direção de Gene Nelson e roteiro de nosso querido e, às vezes, pouco esforçado (ou quem sabe, pressionado pelo tempo?) G.D.A: Kissin' Cousins (Com caipira não se brinca, 1964). 

Voltando à Feriado no harém, a atriz principal é a Miss América de 1959, Mary Ann Mobley, no papel da princesa Shalimar, que, é claro, se apaixona pelo personagem de Elvis.

Já a atuação de Elvis Presley na pele do cantor estadunidense Johnny Tyrone, que é raptado com o intuito de ser obrigado a assassinar o rei de Lunarkand, oscila ao longo do filme, como se em alguns dias de filmagem ele estivesse mais focado que em outros.

Inclusive na interpretação das canções é possível notar diferenças em seu empenho e consequente desempenho.

AS CANÇÕES

O filme tem boas canções, algumas até surpreendentes, como "Shake That Tambourine", em que Elvis toca um pandeiro e dança no meio da multidão, enquanto Baba (Billy Barty, portador de nanismo) sub-repticiamente vai fazendo a limpa entre a plateia.

Outra curiosidade é "Hey Little Girl", entoada por Elvis enquanto a menina órfã dança e, ao longo do número, Elvis passa a dançar com ela.



O auge musical do filme, se é que podemos chamar assim, está na balada "So Close, Yet So Far (From Paradise), do compositor Joy Byers.

Elvis canta com seu estilo único, sentado junto às grades de sua prisão.



DESPERDÍCIO DE TALENTO OU AS COISAS COMO ELAS SÃO?

Analisar o rumo que a carreira de Elvis tomou cinematograficamente é algo que envolve muitos fatores. É muito fácil criticar esse ou aquele, escolher um "culpado".

Mas a impressão que temos é que a indústria do cinema subestimou não só Elvis como também os fãs de Elvis.

O seu empresário, Coronel Parker, era muito bom em pragmatismo, mas não tão bom em perceber as aspirações artísticas genuínas de Elvis, que almejava participar de algo mais substancial e duradouro como ator. E se ele tivesse tido a oportunidade de atuar mais maduro, em papéis de cunho dramático? Elvis não teve essa chance.

Ao longo da década de 1960, parece que Elvis tentou, sem sucesso, se desvencilhar dessa fórmula de filmes "B" de nicho, mas ele também tinha sua dose de pragmatismo e acabou fazendo o seu melhor nas condições que recebeu e dispunha.  

O Rei atuou em mais de 30 filmes de resultados artísticos variados.

 LISTAS QUE RANQUEIAM OS MELHORES FILMES DE ELVIS PRESLEY

Estão disponíveis na web algumas listas úteis:

10 Melhores Filmes de Elvis Presley (Variety, Joe Leydon)

Todos os 33 filmes de Elvis ranqueados do pior ao melhor (The Wrap)

Dez melhores filmes de Elvis Presley para assistir antes de "Elvis" de Baz Luhrman (Collider)

Um guia dos "Filmes de Elvis" para fãs (Elvis Information Network, EIN)


Olha quem está falando

 


O que acontece quando um pai cinéfilo resolve "escolher" o filme na Netflix? Um verdadeiro caos doméstico, um pastelão nas telas e em casa.

A mulher saiu da sala sob protestos (absurdos, no meu ponto de vista) de que a película escolhida seria "machista".

O filho adolescente mostrou indiferença e deu uma espiada em momentos chave, sempre fazendo questão de tecer comentários sobre a falta de fundamentação científica de toda aquela premissa (como que o bebê podia "pensar" palavras que sequer havia aprendido?).

A salvação foi o meu preá.

Leia-se, "Pre-Adolescente".


O garoto de dez anos ficou com os olhos grudados na tela e adivinhou o final logo nos primeiros minutos do filme, assistido em sua versão dublada, é claro. E a dublagem brasileira é muito bem-feita, obrigado, ao contrário do que pensam os arrogantes cinéfilos que "só assistem a filmes legendados".

"Ela vai ficar com o James", vaticinou o Antônio.


 Ela, no caso, é Molly (Kirstie Alley), e James é ele (John Travolta).

Na verdade, Olha quem está falando (1989), o filme dirigido e escrito por Amy Heckerling, tem uma crítica bem-humorada aos homens machistas (simbolizado pelo boçal Albert, o pai biológico do menino Mikey).

As cenas do táxi em disparada no começo e no fim do filme estão entre as menos verossímeis e mais divertidas da história do cinema. 

Em suma, o que na minha cabeça otimista era pra ser uma harmoniosa sessão "para toda a família" acabou sendo isso que foi descrito aí em cima. Antônio salvou meu dia!




sexta-feira, junho 24, 2022

Tributo a Peter Bogdanovich: Na mira da morte e A última sessão de cinema

 A obra "Afinal, quem faz os filmes?" (Who The Devil Made It) focaliza essa figura um tanto desconhecida do "grande público", o diretor de cinema.



INTRO

Sendo filho de uma cinéfila que amava filmes de Ingmar Bergman e Woody Allen, foi algo natural para mim desde cedo começar a escolher filmes pelo diretor.

Após Peter Bogdanovich, o autor do livro citado e também ele próprio um cineasta de carreira respeitável, falecer em janeiro de 2022, estive na Zílvia Locadora em Passo Fundo (sim, estamos em junho de 2022, e a locadora permanece aberta) e aluguei dois filmes dele que ainda não tinha visto.

Targets, sua estreia como diretor, em que Peter também atua como ator, e A última sessão de cinema, talvez o ápice de sua carreira como diretor.


NA MIRA DA MORTE

Targets (Na mira da morte, 1968) é um filme assustador pelo retrato que faz de um franco-atirador, esta figura um tanto enigmática da ficção, e infelizmente, da realidade também.

A história deste filme é interessante. O lendário Boris Karloff devia dois dias de trabalho para o produtor e diretor Roger Corman, que escalou Peter para dirigir e escrever o roteiro, que teve Karloff como o herói que no final é um dos alvos do atirador.



Segundo Quentin Tarantino, Na mira da morte não é um thriller com um comentário social embutido, mas um comentário social com um thriller embutido. Espécie de precursor de Pânico na multidão, continua sendo até hoje um libelo a favor do controle de vendas de armas e munições nos EUA. 

Além disso, o diretor que estreou com Cães de aluguel declarou também que Targets é um dos mais poderosos filmes de 1968 e uma das maiores estreias como diretor de todos os tempos. 

Duas sequências são aterradoras: quando o psicopata surta e sobe em um tanque à margem de uma rodovia e começa a atirar a esmo, abatendo as pessoas como se fossem gado. E a parte final em que o mesmo perturbado personagem invade um cinema drive-in, instala-se atrás da grande tela e começa um novo frenesi assasino, só interrompido por...


A ÚLTIMA SESSÃO DE CINEMA

Do ponto de vista artístico, A última sessão de cinema (1971) é o mais admirável trabalho de Peter Bogdanovich como diretor.



É a clássica história de "coming-of-age" de uma heterogênea turminha numa cidade pequena dos EUA. O livro homônimo de Larry McMurtry foi a base do roteiro.

Com atuações magistrais de Timotty Bottoms, Ellen Burstyn, Jeff Bridges e, é claro, Cybill Shepherd, o filme foi rodado em preto e branco, e passa uma melancolia e uma desilusão que muitos filmes de hoje tentam passar, mas não conseguem.




Mas passa também sensualidade, um ar de mistério e os laços que se formam entre verdadeiros amigos.

Segundo Sérgio Vaz, titular do site "+50 anos de filmes":

 Nós todos envelhecemos – mas A Última Sessão de Cinema não envelheceu um dia. Não perdeu nada do seu brilho, não ficou datado, desfocado. Porque é um clássico, em vários dos sentidos da palavra. É modelar, exemplar. É também consagrado, teve seu valor posto à prova e resistiu à passagem do tempo. Mas, sobretudo, é sóbrio, sem excessos, sem modismos. Clássico.

A tristeza explode nas telas quando o cine Royal da pequena cidade vai fechar. A última sessão é um filme de Howard Hawks, Rio vermelho, com John Wayne. As personagens principais do filme comparecem à sessão e aceitam a vida como ela é: os cinemas têm de fechar quando o público migra para outras plataformas de entretenimento, ou simplesmente migra. No caso, os poucos habitantes da cidade preferem ficar em caso assistindo à televisão (a ação se passa no começo da década de 1950).

Só quem mora em cidade pequena e viu o cinema da cidade ser obrigado a fechar as portas sabe das sensações de perda e impotência envolvidas no processo. Mas é inexorável. O cinema fecha.

Na pacata cidadezinha de Anarene, segue o ímpeto irrefreável de peças pregadas pelo destino: temos a ironia de Jacy (Cybill Shepherd) que apesar da beleza (ou talvez por causa dela) tenta, tenta, mas não consegue a tão ansiada perda da virgindade, e o desalento de Duane, que em seu embarque para a guerra da Coreia pede para o amigo Sonny cuidar do seu carro. 

Para culminar, o mascote da cidade, o incompreendido, mas encantador Billy (Sam Bottoms), o garoto que inutilmente varre as ruas em meio às tempestades de areia, vai protagonizar uma das sequências mais tocantes do filme e do cinema. 


CONCLUSÃO

O diretor Peter Bogdanovich (1939-2022) tem um currículo com outros bons filmes, como Esta pequena é uma parada (1972), Daisy Miller (1974), Marcas do destino (1985), Um sonho, dois amores (1993), etc. mas se você assistir a estes dois terá assistido dois de seus filmes mais significativos.









quinta-feira, maio 26, 2022

O homem do Norte em três sonetos






SONETO 1 


Filme rústico

Filme nórdico

Filme escolástico

Filme lúdico


Filme lúgubre

Filme acústico

Filme simbólico

Filme plástico


Filme sônico

Filme icônico

Filme-Deus-Marte


Filme de árvore

Filme de espada

Filme de arte




SONETO 2 

Filme paradoxal

Filme drástico

Filme metafórico

Filme arlequinal


Filme paranormal

Filme místico

Filme metalinguístico

Filme transcendental


Filme capaz

Filme sem paz

Filme que traz


Filme metamorfose   

Filme osmose

Filme de luz





SONETO 3


Filme grotesco

Filme de dor

Filme animalesco

Filme de amor


Filme de uivo

Filme de lobo

Filme de urso

Filme-tambor


Filme que pulsa 

Filme que jorra

Filme que parte


Filme que corta

Filme que sangra

Filme que é arte




Em tempo: Ethan Hawke já viveu Hamlet.
The Northman é o terceiro filme de Robert Eggers. O primeiro é The Witch e o segundo, 




domingo, abril 24, 2022

Antes tarde do que nunca

 
Antes tarde do que nunca, tire o livro da gaveta e publique. Antes tarde do que nunca, declare o seu amor guardado. Antes tarde do que nunca, corra atrás de seus sonhos.

Antes tarde do que nunca, conheça mais o rock underground de sua cidade.

Foi isso que eu fiz no feriado de Tiradentes, dia 21 de abril de 2022.

Acompanhei o ensaio da banda carazinhense Antes tarde do que nunca num estúdio de gravação da cidade. Consiste numa salinha de controle separada do estúdio propriamente dito, cujas paredes estão cobertas por tapetes para melhorar a acústica.

Quando você não conhece uma banda, fica curioso: quais são as referências musicais dos componentes?

Que canções compõem o repertório?

À medida que o rock'n'roll começou a dominar o estúdio, essas perguntas começaram a ser respondidas.

O baixista Douglas Ribas, que também faz o backing vocal, busca inspiração nas raízes do blues enquanto traça linhas de baixo pulsantes que dialogam à perfeição com a radical guitarra de Evandro Pinheiro, instrumentista que tem no metal profundo o seu modelo. Os dois criam acordes que mantêm o ritmo em alta aceleração e densidade sonora. Essa massa de graves e agudos da linha de frente ganha a visceral vibração que vem da voz gutural do vocalista Ivan Lara e da bateria avassaladora de Ulf Drechsler, que se inspira em bandas de hard rock como Guns N' Roses.

O setlist do ensaio:

1. Cum'on Feel the Noise (canção do Slade, lançada em 1973, depois regravada pelo Quite Riot, em 1983, e Oasis, em 1996). Uma pauleira do começo ao fim em que a banda mostra todo seu entrosamento e Lara entrega todos os seus pulmões para tentar não ser abafado pela banda.

2. Que país é este? (Legião Urbana, 1987). A clássica e sempre atual canção de Renato Russo e sua trupe, numa versão mais pesada, de acordo com a filosofia e os preceitos da banda carazinhense, que emendou com a primeira música, num impacto de tirar o fôlego.

3. Rock'n'roll Preacher (Slade, 1981). Uma breve pausa antes dessa canção do álbum Til Deaf Do Us Part. A escolha mostra o quanto o quarteto local vai fundo em suas pesquisas, resgatando uma faixa que não fez tanto sucesso nas rádios, mas que é ideal para headbangers de todas as idades.

                                            *

Após esse aquecimento básico, o grupo enveredou em sua interessante tríade de canções autorais. Perguntei sobre o processo de composição. Eles me responderam que as letras são de Lara e a música conta com contribuições de todos. A banda tem se dedicado a divulgar o material próprio por meio de clipes no YouTube.

Ivan Lara, o cantor e letrista da banda, é fã do Kiss e um eterno romântico: as canções próprias da banda abordam de modo sarcástico o universo das relações interpessoais, mais particularmente, os deleites e dramas de amores platônicos ou não.

4. Acorda Zeca.  

5. Ela roubou meu coração. Um refrão que gruda na cabeça da gente.

6. Roseli psicopata.

                                       *

O repertório de covers continuou, mostrando a eclética diversidade e a força do rock brasileiro, para arrematar com a homenagem a uma das mais icônicas bandas do rock pesado internacional. 

7. Sônia Marisa (cover de Ana Júlia, com letra adaptada).

8. Garota de Berlim. O punk pop de Supla (1986) encontra o peso do rock carazinhense.

9. Até quando esperar. O eterno hino da Plebe Rude dos anos 80. Nessa parte do ensaio eu não me contive: saí da sala de controle e fui me posicionar lá no fundo do estúdio, ao lado do baterista. Foi muito legal acompanhar a banda entregando tudo bem ali na minha frente. Meus tímpanos estão zunindo até agora, mas valeu a pena. 

10. Envelheço na cidade. O sucesso do Ira! em uma roupagem mais pesada.

11. Paranoid. Black Sabbath na veia... 

O ensaio chegou ao fim. Aproveitando a deixa da letra de "Rock'n'roll Preacher", fiquei pensando uma coisa. Se o rock é uma religião, e toda banda de rock é um "pregador", acabo de ver um culto muito convincente. 



A banda de hard rock carazinhense ATDQN em momento bem-humorado. 

Da esquerda para a direita: 

Douglas (baixo e backing vocal), Lara (vocal), Ulf (bateria) e Evandro (guitarra). 

Foto: Marcos Tatsch.