quinta-feira, janeiro 16, 2025

Ode a David Lynch


 Ó David, meu amado David.

Você que fez Eraserhead, o cult movie que desconcerta o espectador de um modo que ninguém mais se esquece, talvez o filme mais influente da segunda metade do século XX, o filme que assisti no "cinema cofre" do cine Santander de Porto Alegre, na primeira sessão pública em terras gaúchas.

Você que fez O homem elefante, sobre um homem julgado um monstro pela sua aparência horrenda, mas uma pessoa bonita por dentro, muito castigada pela vida, pelo preconceito, pelo julgamento precipitado, pela ignorância humana de não querer conhecer o diferente. Recentemente revi o clássico em versão com extras, que contam a história do verdadeiro homem elefante. 

Você que fez Coração selvagem, o filme que todas as mulheres por quem me apaixonei foram "obrigadas" a ver. O filme que resume a minha personalidade, do qual pincei o toque de meu celular, o filme que se você for mulher, e não viu, e quiser ver comigo, não vai ver, porque agora estou casado e bem casado, mas pode ver com seu amorzinho, se ele for um cara cabeça aberta, um cara alternativo, inteligente, de bom gosto, que aprecia cenas violentas, cenas engraçadas, cenas patéticas, cenas de pura declaração de amor entre um casal, cenas de louvor à liberdade pessoal.

Você que fez Duna, o Duna primordial, que a crítica malhou, que o público não gostou, mas o único que tem o Kyle, portanto o Duna com o protagonista mais carismático, o Duna com as cores mais fortes, o Duna com o Sting, o Duna que todo fã de Duna tem que assistir, porque é o Duna de David Lynch, for God's sake.

Você que fez História real, o filme mais normal de sua filmografia de 10 filmes, o mais inusitado "road movie" já feito, com certeza, o mais lento, afinal o veículo é um cortador de grama John Deere. Na jornada Alvin Straight conhece pessoas que mudam ao conhecê-lo, uma moça grávida que está fugindo da família, uma motorista que atropela cervos, um padre que aconselha os andarilhos, um bom samaritano que o ajuda a consertar o veículo, uma dupla de mecânicos atrapalhados que recebe uma lição... tudo para se encontrar com o irmão e fazer as pazes com ele.

Você que fez A estrada perdida, sessão odiada por alguns amigos que foram comigo, e quanto mais as pessoas odeiam David Lynch, mais eu entendo porque eu gosto dele, foi assim também com a série Twin Peaks, indiquei o piloto para um colega de Ensino Médio e o cara odiou e veio me tirar satisfação, por que eu havia indicado aquela porcaria para ele? Com isso aprendi que não devo indicar nada para ninguém, afinal, eu que devo estar perdido em minha estrada alucinógena pilotada por um onírico David Lynch.

Falando em onírico, você que fez Cidade dos sonhos, O império dos sonhos e Twin Peaks: Fire Walks With Me, filmes que nos fazem andar na corda bamba entre a realidade e o sonho, a mentira e a verdade, o sólido e o etéreo...

Você que fez o sadomasoquista "Hit me!" Veludo azul, embalado pelas canções celestiais de Angelo Badalamenti, estrelando a sua musa fatal Isabela Rosselini, com um Dennis Hopper mais doido do que em Born to Be Wild.

David, você que nasceu para ser selvagem e foi doce, que me encantou e me emocionou, 

muito obrigado, 

David, pelas cenas sobre as lavouras de milho em História real,

pela cena dos gravetos que não se vergam quando amarrados, símbolo de família forte,

Ó David que nos fez rir muito nos episódios de Twin Peaks, com um humor mais revigorante que já passou nas telas da televisão mundial,

Ó David que veio ao Brasil para o Fronteiras e que me autografou seu livro, ó David que vai deixar saudades infinitas.

Amanhã acordarei num mundo sem David Lynch, um mundo menos desafiador.

O cinema sem David Lynch é um cinema menos rebelde.

E não haverá um "novo" David Lynch, ao menos não para mim, porque não existe outra pessoa capaz de juntar tantas coisas que me agradem no mesmo filme.

Restam os 10 filmes e as 3 temporadas de Twin Peaks...

Restam as cenas que jamais saem da retina. 

E a convicção de que sou um cara de sorte.

Sorte de ter acompanhado "em tempo real" a trajetória desse cineasta. 


domingo, janeiro 05, 2025

A substância



Desde já, A substância fica sendo o suprassumo do filme sobre autodestruição. 

E autodestruição em A substância não é metáfora, é o retrato literal do que acontece com uma pessoa insatisfeita com a própria aparência.

O maior barato do filme é como ele mistura gêneros, transitando com muita leveza e desenvoltura da ficção científica ao drama, do horror à comédia...

Influências lynchnianas e aronofskyanas pululam em A substância, filme que é ao mesmo tempo original e uma colagem de muitos outros...

Na sequência final do filme de Coralie Fargeat é inevitável lembrar-se da cena final de Carrie, a estranha.

E isso acontece em muitos e muitos momentos.

A obsessão com a tevê, a solitude e a loucura da personagem de Demi Moore nos remete à assustadora transformação de Ellen Burstyn em Réquiem para um sonho, de Darren Aronofsky. E outra coisa os dois filmes têm em comum: a chaga no braço de Jared Leto parece ter uma ligação direta com a chaga na medula de Demi Moore. Com a diferença que na primeira, a agulha da seringa é inserida para injetar heroína até o braço do herói apodrecer, e na segunda a agulha da seringa penetra insistentemente na medula da heroína para retirar a substância que rejuvenesce, até a chaga por fim também entrar em putrefação. 

Por sinal, o body horror é levado ao extremo em A substância, filme em que Dennis Quaid rouba a cena como um produtor asqueroso. Decididamente não é para estômagos fracos, não vá ao cinema nem tente ver em casa se você tem a tendência de se impressionar com cenas chocantes. Para quem gosta de se autodesafiar, são muitas e muitas cenas de degradação física e mental.

O cinema de David Lynch é homenageado em cenas como a conversa no café, e à medida que as coisas começam a dar errado no experimento, o filme nos remete a cults do horror como Freaks, mas nunca a deformação humana foi explorada com tanta sensibilidade quanto em O homem elefante de David Lynch. 

A obsessão com a aparência e o porco-chauvinismo são temas de Coralie, mas o filme também satiriza a busca da fama e o patético das almas solitárias.



O que salva A substância de se tornar um pastiche não é apenas o ritmo frenético e a inteligente mescla de gêneros, mas um humor subliminar que aflora muito forte em certos momentos, sempre em forma de crítica social, como nas partes em que o repulsivo personagem de Dennis Quaid está em cena.  

Como o nome deste blog poderia ser intertexto, aí vai uma canção do álbum Substance do Joy Division, cujo refrão descreve um pouco a saga de Elizabeth e Sue em A substância.



Nosferatu

 


Segue a minha relação ambígua com o cinema de Robert Eggers.

Diferentemente de um Peter Weir, um David Lynch e um Darren Aronofsky, Eggers é um cineasta que mexe com meu intelecto, mas nem sempre consegue fazer o mesmo com minhas emoções.

Visualmente, Nosferatu é um triunfo.

Tem cenas que merecem ser emolduradas como clássicas do cinema gótico.

Depois do palhaço Pennywise em It, o sueco Bill Skarsgård segue sua senda de monstros encarnados.

A sorumbática protagonista lembra a imagem de uma Emily Dickinson, a poetisa da solidão e da angústia, misturada com o tormento interno das personagens arrebatadoras de uma Emily Brontë, autora de outro clássico da literatura fantástica (O morro dos ventos uivantes).

Outro porque Drácula de Bram Stoker está no livro O horror sobrenatural na literatura de ninguém menos que H. P. Lovecraft, e Drácula é o gatilho que levou Murnau a lançar o filme Nosferatu em 1922, película que depois foi condenada por quebra de direitos autorais. Na década de 70, também da Alemanha, veio o remake de Werner Herzog, com Klaus Kinski no papel principal.

Agora temos um filme mais americanizado, moderninho, com cenas que lembram cenas de possessão, devido ao domínio a distância que a criatura exerce sobre a heroína, que sofre transes e acessos oníricos.

O foco de Eggers é provocar o medo, mas sua obsessão com a estética às vezes perturba os seus objetivos. Entre criar uma imagem bonita e um efeito eficiente, parece que Eggers sempre escolha a primeira opção. Quando as duas coisas convergem o seu cinema funciona, e é bom frisar que isso acontece em 80% das cenas.

Meu problema é com esses 20% restantes, em que a plateia está em silêncio e eu caio na risada por achar um exagero, ou porque a cena não me convenceu. Em vez de pavor, a cena me insuflou perplexidade... Seriously?

Então, é isso, mas não vou cuspir no prato que me nutriu, e claro que vou continuar a acompanhar a interessante trajetória de Eggers, sem me empolgar, mas sem me privar desses momentos de "self-indulgement".



Zona de interesse x Triângulo da tristeza (Oscar x Cannes)




    Cinéfilo que se preze é cinéfilo que busca estar por dentro do melhor do cinema não só americano e brasileiro, mas mundial.

      Para essa tarefa, mantém em seu radar os filmes ganhadores de Oscar de Melhor Filme Internacional e da Palma de Ouro em Cannes. Manter no radar nem sempre significa ter acesso a esses filmes em salas de cinema, mas o prêmio de consolação é poder conferir mais tarde, em algumas das plataformas disponíveis.



É o caso do vencedor do Oscar de Melhor Filme Internacional de 2024, Zona de interesse, do britânico Jonathan Glazer, e do ganhador da Palma de Ouro de 2022, Triângulo da tristeza, do sueco Ruben Östlund.



Zona de interesse, Oscar de Melhor Filme Internacional

2023, o ano de ouro da atriz Sandra Hüller. De rosto desconhecido no mundo, protagonizou dois filmes que lhe deram extrema notoriedade, fama e reconhecimento.

De atriz underground a atriz mais badalada no ano.

É o dilema de Sandra.

Quis o destino que Jonathan Glazer e Justine Triet a chamassem para dois filmes que seriam agraciados com prêmios importantíssimos. 

O filme de Glazer é emblemático porque toca na ferida do holocausto de um modo diferente, abordando a rotina prosaica da família de um oficial de alta patente responsável por cuidar da parte operacional de um dos mais famosos campos de concentração, Auschwitz. 

O drama enfatiza a ironia da situação de uma família que finge ignorar as atrocidades que acontecem do outro lado do muro.

Tenho lá minhas dúvidas sobre uma parte do filme, que não posso contar, porque seria spoiler. Será que o filme não seria mais contundente sem aquele momento de quebra de paredes e paradigmas?

Jonathan Glazer, o diretor do filme não se omitiu na cerimônia do Oscar e em seu discurso de agradecimento quebrou o protocolo para tecer uma crítica ao governo de Israel e à matança de inocentes na Faixa de Gaza.




Triângulo da tristeza, Palma de Ouro em Cannes

A transformação de patriarcado em matriarcado, a migração do poder, a corrupção do ser humano são temas dessa fábula moderna que coloca um naufrágio provocado como elemento desencadeador dessas mudanças.

O sueco Östlund não é exatamente um novato em se tratando de premiações em Cannes, em 2017 já tinha levado a Palma de Ouro com o filme Square: a arte da discórdia, resenhado neste blog.

A principal característica do cinema de Ruben é ser provocador e tirar o espectador da zona de conforto.

Se a sua zona de interesse é sair de seu triângulo da tristeza, esses dois filmes são uma boa pedida.

quarta-feira, dezembro 04, 2024

A contadora de filmes

 


A contadora de filmes (La contadora de películas/ The Movie Teller) é um filme falado em espanhol, corroteirizado por um brasileiro e dirigido por uma dinamarquesa.

Lone Scherfig, após surfar nas ondas da fama com o lançamento de Educação (2009), andava um pouco sumida do mainstream. Agora em 2024 voltou em grande estilo ao mercado internacional de filmes independentes, com esse delicado e pungente A contadora de filmes.


O projeto, a adaptação fílmica do romance de um dos escritores latino-americanos mais importantes da atualidade, o chileno Hernán Rivera Letelier, foi acalentado por muitos anos pelo diretor brasileiro Walter Salles até este o entregar nas mãos de Scherfig.

Por sinal, Letelier, o autor do livro, após assistir ao filme, o comparou a Cinema Paradiso, coisa que também me veio à mente durante a sessão de A contadora de filmes. 

Letelier conclui: “No pampa,* eu assistia a 365 filmes por ano, porque todos os dias passavam um filme diferente. E me parece incrível que hoje eu seja de alguma forma o fabricante ou o criador de um filme. Isso me parece incrível”. A entrevista com Letelier pode ser lida aqui.  

Já a diretora Lone Scherfig conta como foi realizar o filme em terras chilenas, mais especificamente no Deserto do Atacama, na revista Screen Daily, no artigo intitulado 

TIFF Spotlight: Lone Scherfig on shooting ‘The Movie Teller’ in Chile’s Atacama desert


A diretora dinamarquesa explica porque aprecia filmar em terras estrangeiras: 

 “Ir ao exterior tem a ver com filmar no sentido de compartilhar”, pondera Scherfig. “Prefiro compartilhar o meu fascínio por [um mundo diferente] do que retratar o meu próprio mundo. Em retrospectiva, o meu trabalho tem filmes todos relacionados, em termos de tonalidade, caracterização, com uma mescla de melancolia e perspicácia, e [temas comuns como] a perda da inocência e a insegurança.

“Quando leio um roteiro, sempre [sei ] se posso fazer jus ao escritor e ao roteiro ou ao romance, e se posso acrescentar algo", prossegue ela. "Consigo expressar amor pelos personagens porque os filmes não são sobre mim. Ou talvez eu me interesse ainda mais por eles por não serem uma projeção de mim mesma. Tem mais a ver com filmar como ato de generosidade. Além do mais, a Dinamarca não é uma sociedade muito dramática.”



E o que o titular deste humilde blog pensa sobre o filme?

Que a homenagem ao cinema é bonita, mas a parte sobre a família que se [spoiler] é muito [spoiler].

Assista ao filme e preencha as lacunas com um verbo e um adjetivo de sua preferência.

  

*N. de T.: O Pampa do Tamarugal é uma planície localizada na Região de Tarapacá, Chile; e está inserido no núcleo hiper árido do deserto do Atacama. O pampa recebeu este nome devido à árvore nativa Prosopis tamarugo, que nasce na região.

quinta-feira, novembro 21, 2024

Ainda estou aqui

 No Feriado de 20 de novembro, Dia da Consciência Negra, uma única funcionária negra atendia no setor de Pipocas e Refris a fila enorme de espectadores que se aglomerava para assistir ao filme brasileiro Ainda estou aqui, de Walter Salles.

O meu filho de 12 anos era um que estava na fila. Pegou uma pipoca grande salgada, a 22 reais. O filho maior, de 17 anos, pegou os 4 canudinhos no balcão. Os 4 refris comprei no Záffari, e foi bom, menos serviço para a sobrecarregada funcionária supracitada, obrigada a servir pipoca e bebidas. A senhora da etnia afro-brasileira, muito eficiente, cobrava escanteio e corria para cabecear.

Alô organização do Cine Laser de Passo Fundo, custava ter reforçado o pessoal no Feriado, em que o movimento seria maior? E justamente nesse Feriado da Consciência Negra.

Agora, sobre o filme em si.

Ainda estou aqui foi escolhido pelo Brasil para tentar concorrer ao Oscar de Melhor Filme Internacional.


Acredito que foi uma boa escolha, é um tema sensível à Academia, politicamente enviesada à esquerda, e com a eleição do Trump e tudo mais, esse detalhe pode influenciar no sentido de aumentar as chances da película (?) brasileira.

Artisticamente analisando a obra de Walter Salles, é muito bem-feita, mas a peneira é muito exigente, são muitos filmes bons mundo afora.

A primeira meta é entrar nos 5 filmes finalistas. Um passinho de cada vez.

Se conseguirmos entrar, as chances se tornam no mínimo de 20%, e algo me diz que o Brasil meio que se tornaria um dos favoritos, pelo hype criado, pelo frisson da imprensa, pela máquina de publicidade que está sendo ativada, e as engrenagens de apoio como de atores hollywoodianos (p. ex., Sean Penn).

A pergunta que pretendo responder aqui é: 

hype ou não hype?

A definição de hype é

to make something seem more exciting or important than it is.

Eis que o filme de Walter Salles é realmente empolgante e importante o suficiente para merecer um Oscar!

E claro, eu ficaria muito feliz se o Brasil, enfim, ganhasse o seu primeiro Oscar nessa categoria, justamente com uma obra inspirada em livro de um escritor brasileiro como Marcelo Rubens Paiva, um lutador em todos os sentidos.

Ainda estou aqui é um filme sobre injustiças, mas também sobre convívio familiar.

É essa paulatina construção dos laços familiares que torna o filme tocante e universaliza sua mensagem de luta pelos direitos humanos.

O cuidado na recriação de época também merece um comentário à parte, desde a fotografia até os veículos e imóveis, tudo beira a perfeição.

Falar nas atuações seria "chover no molhado", de modo que vou me abster. Apenas vou me concentrar em algo que costumo analisar nesse blog, que é a direção.

Walter Salles realiza um trabalho discreto na direção, tanto que o seu nome só aparece nos créditos finais. O foco dele não é o mérito pessoal e sim em contar a história. Acredito que ele tomou a decisão certa e conseguiu seu intento com louvor.

Não vou escrever o clichê "agora vamos torcer", porque torcida é algo inútil no caso de prêmios da Academia.

Como acontece no enredo do filme, inspirado em fatos verídicos acontecidos no Brasil em dezembro de 1970, 25 anos depois e 44 anos depois, tudo vai depender dessa articulação, da rede de contatos, das camadas de inter-relacionamentos envolvidas entre as pessoas com direito a voto.

Elas têm que estar motivadas a assistir ao filme e a votar nele, por motivos artísticos ou políticos, ou ambos.

Uma coisa é certa: Ainda estou aqui é um filme muito bem realizado que merece a estatueta de Melhor Filme Internacional.

Por motivos artísticos, políticos ou ambos.

Na verdade, está mais do que na hora de o cinema brasileiro entrar nesse seleto clube dos países com Oscar de Melhor Filme Estrangeiro/Internacional.

Assistir ao filme é uma grande oportunidade para todos, independente de onde a pessoa pensa estar no espectro político, de se aprofundar no assunto, sem medo de enfrentar os erros que foram cometidos em nome dessa ou aquela ideologia.

Para uma família de cinéfilos, assistir a Ainda estou aqui é mais do que apenas um programa de família, é fazer o tema de casa.



domingo, novembro 03, 2024

Druk: mais uma rodada

 


Um filme dinamarquês em uma tarde dominical, o que mais eu posso esperar próximo da felicidade?

Claro, o fato de ele ter sido o vencedor do Oscar de Melhor Filme Internacional é um mero detalhe se levarmos em conta as emoções que o filme me proporcionou.

O nível de quanto um espectador se envolve com um filme vai depender de vários fatores.

Das experiências que a pessoa teve, de como o filme faz esse balanço entre a história contada e o dia a dia do indivíduo em questão.

À superfície, não tenho motivos para me identificar com o protagonista, um professor de Ensino Médio com a carreira estagnada, que dá aulas sofríveis, e tem como única válvula de escape os encontros com os três amigos e colegas de profissão (e de escola).

A gota d'água é quando a turma reclama à direção sobre a falta de empenho do professor, que confunde os tópicos e divaga durante as aulas.

Martin busca o refúgio em um singelo jantar com seus três camaradas, evento que vai mudar o rumo dessa história - e da vida do próprio Martin.


Os quatro cultivam uma relação divertida, embora com influências mútuas um tanto perigosas, principalmente quando o quarteto resolve testar uma tese.

Todos nascemos com um déficit de nível alcóolico prejudicial ao nosso desempenho, e a melhor versão de nós mesmos só é atingida quando esse nível é alcançado e mantido.

À medida que o experimento vai evoluindo, com o álcool diminuindo a ansiedade e deixando a imaginação aflorar, as aulas de Martin (Mads Mikkelsen) e de seus colegas professores melhoram substancialmente, inclusive a do professor de educação física, que tenta estimular o aluno apelidado de "Oclinhos" a ir bem no futebol.




Mas o filme é então sobre etilismo e a redenção de um professor, um misto de To Sir With Love com Farrapo humano?

Ledo engano.

Aí que está o truque de nosso insidioso diretor Thomas Vinterberg.

Nunca, jamais, confie em um diretor escandinavo, ou pior, dinamarquês, que na verdade nem é da Escandinávia, mas todo mundo vive confundindo.

A Dinamarca fica no extremo norte do continente, espécie de nariz da Europa, terra da Lego e terra em que não existe arrendamento. Só produz quem é dono, e só pode ser dono, quem quiser produzir. Isso que eu chamo de povo porreta.

No Oscar de Melhor Filme Estrangeiro, a Dinamarca tem 

55 submissões, 

12 indicações e 

3 Oscars:

o glorioso, forte, inesquecível e sempre merecedor de uma revisita,

A festa de Babette (Gabriel Axel)

e o épico    

Pelle, o conquistador (Bille August),

dois filmes da década de 1980, e 

agora este nosso adorado DRUK.

A propósito, existe o intertexto entre Druk e A festa de Babette

O filme de Gabriel Axel sobre uma chef de restaurante que vai se refugiar num vilarejo remoto serve como estudo sobre o desprendimento, que "da vida nada se leva", mas também aborda alguns temas afins a Druk: a dualidade entre o sóbrio e o ébrio, a contenção e a descontração, a estagnação e a vida pulsando nas veias.

Como eu disse, nunca confie em um diretor dinamarquês, você pensa que a história é sobre isso, mas é sobre aquilo, ou não é apenas sobre isso, é sobre isto e aquilo.

No caso, Anika.

Maria Bonnevie interpreta a esposa de Martin.

Mãe de dois filhos, um adolescente, um pré-adolescente, ela é o fator principal do filme. Sim, o filme é sobre Anika.

Thomas Vinterberg faz um filme para falar de um personagem que mal aparece, está em apenas duas ou três cenas, mas o filme é sobre ela.

Sobre como Martin deixou de prestar atenção nela.

Sobre como Martin permitiu que ela se distanciasse.

Martin, Martin, onde você estava com a cabeça?

É a mãe de seus filhos, Martin.

Haverá tempo para Martin resgatar sua vida, o amor pela profissão, o amor por Anika, o amor por si mesmo?



É que o Thomas Vinterberg tenta nos responder em Druk, e não vou contar mais nada, além de uma confissão. 

Uma lágrima escorreu em meu rosto na última cena.


sábado, julho 06, 2024

Blues, Beatles e Rock de Galpão: três showzaços em Carazinho

 


Estamos apenas em julho, mas Carazinho, mesmo encravada no coração do Planalto Médio gaúcho, já recebeu três grandes shows no ano.

No primeiro, o SESC trouxe a Carazinho uma cantora internacional, J. J. Thames, a diva do blues. Esse primeiro show foi antes das enchentes de maio, e os outros dois foram após os trágicos eventos dos quais o povo gaúcho tenta, aos poucos, se recuperar.

O segundo show celebrou a trajetória da banda mais importante do pop rock, a banda que em dez anos de carreira passou por todas as fases possíveis e imagináveis, os Beatles, fielmente encarnados pela banda cover Star Beatles.

O terceiro show, com a banda gaúcha Rock de Galpão e sua potente mescla de nativismo com rock, é simbólico sobre como o RS tenta se recompor buscando forças em suas raízes e no amor pelo torrão natal.

Este post traz o registro fotográfico de cada um desses grandes shows com uma breve resenha sobre a experiência.

J. J. THAMES: 10 de abril, quarta-feira

O show começa sem a presença da vocalista principal. O consumado guitarrista Alexandre França e sua afinada banda introduz a plateia ao tema e aquece o público, aumentando a sensação de espera e expectativa. Até que a Diva do Blues entra em cena para o delírio do público presente.



Mostrando um repertório que mistura clássicos do blues com canções próprias, a americana arrebentou no palco do SESC ao embalo do suingue do guitarrista Alexandre França e seus comparsas. Inusitadamente um grupo de crianças locais na primeira fileira da plateia baixa criou um "fã-clube" improvisado, mostrando à cantora mensagens no celular que diziam "YOU ARE THE BEST SINGER". Com um apoio desses, a cantora se sentiu cada vez mais à vontade para soltar as cordas vocais e dar uma aula do ritmo que deu origem ao rock & roll.




Diga-se de passagem, o terceiro show de que vamos falar teve em seu final uma inusitada referência ao blues, mas não vamos colocar a carroça na frente dos bois.

Um dos destaques do show de J. J. Thames é a canção de sua própria lavra, "Woman Scorned", que, ao ser contextualizada, pareceu ganhar ainda mais força com sua mensagem de resistência.

O show guardou para o final uma surpresinha extra: como bis, a imortal balada do Radiohead, "Creep".

STAR BEATLES: 23 de junho, domingo

A banda formada por dois argentinos (Francisco John Lennon Desalvo e Nino Paul McCartney Zalazar) e dois mexicanos (Dany George Harrison Torres e Efren Ringo Starr Herrera) fez uma homenagem empolgante e divertida aos Beatles, com uma desenvoltura de quem conhece muito sobre o assunto.

A escolha das canções, em especial, mostrou apuro e cuidado, com um setlist arrasador. Desde o clássico dos tempos do Cavern, "Some Other Guy", até a canção finalizada ano passado, "Now And Then", passando por covers da época das temporadas de Hamburgo, como "Besame Mucho" e "Roll Over Beethoven", o Star Beatles desfilou uma coleção de melodias e letras imortalizadas na cultura universal.

"Roll Over Beethoven" entoada pelo George Harrison latino, clássico de Chuck Berry também gravado pela Electric Light Orchestra
O George Harrison latino entoa "Roll Over Beethoven", 
o clássico de Chuck Berry também gravado pela Electric Light Orchestra

É difícil de conceber como uma só banda compôs canções tão simples e ao mesmo tempo tão diferentes e tão ricas, com suas variações de pontes, contrastes (middle-eights), refrões grudentos, iê-iê-iês, psicodelismos, riffs de harmônica...


Entre uma troca de figurino e outro, a banda saía enquanto um deles ficava para fazer uma canção solo. Nessa categoria entraram "Yesterday" e "Blackbird" (na voz do McCartney portenho) e "Something" (com o Harrison mexicano).


Não faltaram preferidas do público como "Hey Jude" e até uma da carreira solo de Lennon, "Imagine". 

No fim deste post, você pode ter uma "palhinha" do que foi o show do Star Beatles, tanto em termos de qualidade musical quanto de atualização do repertório. No palco do SESC/Carazinho, o quarteto fez uma tocante interpretação da novíssima "Now and Then".



ROCK DE GALPÃO: 05 de julho, sexta-feira

A densidade sonora da banda formada pelo vocalista Tiago Ferraz e companhia é algo digno de nota. O Kongos (banda sul-africana que também tem um acordeonista) gaúcho traz uma revigorante mistura de sonoridades, aplicando a roupagem de rock a canções clássicas do cancioneiro gaúcho.


O respeito ao que melhor o RS produziu em letra e música é celebrado em arranjos modernos e surpreendentes para canções imortais.

A banda que não se apresentava há dois meses voltou aos palcos em Carazinho. 

Uma canção nova, "Boina e alpargata", musicalização de um poema de Luiz Coronel, foi tocada em primeira mão ao público agradecido pela oportunidade e honra.

O vocalista mostrou grande domínio de palco, conseguindo a proeza de descontrair o público que parecia estar imobilizado pelo frio.



A riqueza do léxico gaudério é um tópico merecedor de estudo, mas um gaúcho comentar isso pode soar, digamos, querer puxar a brasa para o nosso assado. O fato é que essa riqueza de expressões locais e regionalismos dá ao folk do Rock de Galpão o seu diferencial. 

O que o Pogues fez com a música tradicional irlandesa nos anos 80, o Rock de Galpão faz há quinze anos aqui em nossas plagas distantes, talvez  ainda com menos reconhecimento do que merece.

Perto do final, o tecladista protagonizou um "duelo" com o gaiteiro, em uma salutar disputa entre blues e nativismo que nos remete a um desafio ao melhor estilo de "Trova" (Kleiton e Kledir).  

Antes disso, a entrega vocal de Tiago Ferraz em "Entrando no M'Bororé", entoando versos surpreendentes como "E uma perdiz se degola no último fio do alambrado", é só um exemplo dos muitos pontos altos de um show que merecia casa cheia. Frio ou faltou divulgação? A minha parte eu fiz, e a banda com certeza fez a parte dela, como bem explicita o setlist raiz:


O SHOW NÃO PODE PARAR: A importância de um bom roadie

Dos três shows, o único que não teve problema na bateria foi o do Rock de Galpão. Isso demonstra o quanto é importante um roadie atento e precavido. No show de J. J. Thames, o baterista teve que enfrentar um problema no suporte de uma das caixas. No show do Star Beatles, o baterista cantava "With a Little Help of My Friends" (por sinal, com um vozeirão mais límpido que o de Ringo Starr) quando o seu microfone começou a falhar. Diga-se de passagem, nas duas ocasiões, as respectivas bandas ignoraram os problemas e seguiram em frente, com os técnicos resolvendo depois. 

O espírito é este: "O show não pode parar". 
Vida longa ao blues, ao rock & roll e ao nativismo em suas diferentes manifestações.

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"NOW AND THEN" AO VIVO EM CARAZINHO

Conforme prometido, para fechar o post, um vídeo em que Francisco Desalvo e o Star Beatles cantam "Now And Then" e no meio da canção mandam um recadinho a John Lennon:






segunda-feira, maio 27, 2024

Furiosa x Tristana: um exercício de cinema comparado

 


De um lado, um dos maiores diretores australianos de todos os tempos. Do outro, um imortal cineasta espanhol, o mestre do surrealismo.


De um lado, ainda na ativa, George Miller, o criador da franquia Mad Max, e de outros clássicos australianos como Babe, o porquinho atrapalhado (não confundir com seu homônimo). Do outro, alguém que já não está mais entre nós, mas entrou na categoria de realizadores clássicos: Luis Buñuel, o mestre de O anjo exterminador, O discreto charme da burguesia, A bela da tarde e Esse obscuro objeto de desejo.

Este texto vai abordar as semelhanças e as diferenças entre Furiosa, de George Miller, e Tristana, de Buñuel. 

Em outras palavras, um exercício inusitado de uma nova disciplina, o cinema comparado. Enquanto a literatura comparada mergulha no cotejo de obras de literaturas de diferentes países e épocas, nos intertextos, nas influências, o cinema comparado faz o mesmo com filmes. Os links acima remetem a trabalhos de Mariana Souto e Monaliza dos Santos, pioneiras adeptas do método no Brasil.

Recentemente abordagem semelhante virou tema de uma cadeira de pós-graduação, chamada Estudos comparados de cinema mundial, no segundo semestre de 2023, na UFBA.




Tristana (1970) chocou o público com o modo simples com que retratou a hipocrisia de Dom Lope, um sujeito mórbido que adota a menina Tristana, na motivação suposta de a proteger, mas com a ideia de se aproveitar dela. Um dos papéis mais emblemáticos da carreira de Catherine Deneuve, a jovem Tristana traz a tristeza no nome, e parece perseguida por uma sombra, a sombra da incapacidade de sonhar com dias melhores.




Furiosa (2024), conto distópico pós-apocalíptico, narra a trajetória de Furiosa, menina que é raptada brutalmente por uma tribo bárbara. A atriz Anya Taylor-Joy emplaca seu maior sucesso, o filme pelo qual sempre será lembrada. Ela traz no nome o sentimento que a move: a fúria, o ódio, o desejo de vingança. 


Em Tristana (que no Brasil, o país dos subtítulos, não escapou de ganhar "uma paixão mórbida" nos cartazes e capas de dvds), Dom Lope, na célebre interpretação de Fernando Rey, é o esquerda caviar, que despreza as autoridades, a polícia, o clero, e odeia trabalhar como ganha-pão (na cabeça dele, apenas o trabalho por prazer é digno). Ensina Tristana que o casamento é uma instituição podre, ela precisa permanecer livre. Mas não pensa duas vezes em induzir a menina ao erro e em se tornar amante da inocente órfã, a sua suposta protegida, a menina que vem morar sob o seu teto após a morte da mãe.



Em Furiosa: uma saga Mad Max (subtítulo, como o de Tristana, desnecessário, mas estamos no país dos subtítulos), a menina Furiosa também perde a mãe, torturada pelos animalescos personagens que compõem o bando, ou tribo, ou exército de Dementus, encarnado por Chris Henworth. Como um Dom Lope do futuro, o asqueroso sequestrador dos desertos sanguinolentos tenta se autojustificar a todo instante. E, como todo bom vilão, pensa ter seus momentos de "redenção", em que pretensamente toma atitudes nobres, sem segundas intenções. 




As duas meninas vão crescendo e amadurecendo. Tanto Tristana quanto Furiosa têm seus momentos de esperança, em que surge alguém com potencial de aplacar o sofrimento, alguém por quem ambos recrudescidos corações femininos amolecem por um tempo, um amigo, um amor, alguém com quem talvez valesse a pena sonhar um futuro... 

Tristana conhece e se apaixona pelo pintor Horácio (Franco Nero).



Furiosa encontra uma amizade forte e, quem sabe, algo mais, em Pretoriano Jack (Tom Burke). 




Em meio às constantes turbulências, esses momentos de esperança parecem fugazes. Em sua luta pela sobrevivência, Furiosa perde um braço, e Tristana, uma perna.

Sob o sol estorricante do deserto, Furiosa não vai descansar enquanto não lavar em sangue o seu desejo de vingança.

Sob a neve impiedosa, Tristana só vai resolver sua dor de um modo que faz o espectador enregelar o sangue nas veias.




Em meio a cenas que ficam na retina, a alma humana é despida e esquartejada, a hipocrisia é revelada. 

Tristana. Furiosa. Deneuve. Taylor-Joy. Buñuel. Miller. 

Se o que forja um filme é a capacidade de permitir múltiplas leituras, Tristana e Furiosa são filmes viscerais. 

Se o que caracteriza atuações perenes é a mágica de mesclar acidez e doçura, Deneuve-Tristana e Furiosa-Taylor-Joy estão na mesma categoria de personagens e intérpretes imorredouros.

Se o cinema é a arte de provocar e fazer pensar, Buñuel e Miller são mestres do ofício.

E se no cinema comparado um filme serve de trampolim para a compreensão do outro, Tristana ilumina Furiosa e vice-versa, no sentido de serem estudos da alma feminina na difícil busca de redenção e plenitude. 



 

quarta-feira, maio 01, 2024

O dublê

 



A trajetória de David Leitch na indústria do cinema é admirável. De dublê a diretor de cinema respeitado, um cineasta especializado em filmes de ação com pitadas autorais.

Além da trajetória inusitada, de alguém que galgou degraus na indústria desde pau-pra-toda-obra anônimo até o detentor do mérito artístico, outra coisa que chama a atenção nesse diretor nascido em Wisconsin em 1975 é o nome.

Não é qualquer diretor cujo nome é uma mistura do nome de um diretor clássico,

David Lean (Lawrence da Arábia, Desencanto, A ponte do rio Kwai)

e de um diretor cult,

David Lynch (O homem-elefante, A história real, Eraserhead).

Com essas credenciais, David Leitch está construindo uma filmografia consistente, coerente e coesa, que inclui Atômica (2017) e Trem-bala (2022), além de um filme da série Velozes e furiosos e um spin-off da mesma franquia.

O dublê é o auge de sua carreira até aqui, resume tudo que ele fez, reúne todas as suas qualidades e as involucra num produto de ritmo alucinante, e ao mesmo tempo dá uma ideia de onde ele pode chegar na indústria, cada vez mais longe.




O roteiro, assinado por Drew Pearce, é uma espécie de homenagem ao seriado The Fall Guy, estrelado por Lee Majors na década de 80.

Com esse nome e sobrenome e com esse currículo, para David Leitch, o céu é o limite.

Na vida real conta com o apoio da esposa, a produtora Kelly McCormick, um amor que espelha o amor do casal protagonista de O dublê.

O que desemboca na discussão clichê em filmes dessa natureza, em que o romance permeia a ação: existe "química" entre o casal encarnado por Emily Blunt e Ryan Gosling?

Se você respondeu "sim" à pergunta deve ter adorado o filme, 

se respondeu "não", é uma pessoa muito cínica e muito crítica,

o tipo de pessoa que odeia filmes dublados, 

o tipo de pessoa que não curte Kiss e a canção

I Was Made For Lovin' You,

que permeia o filme nas mais variadas versões.

Ame ou odeie, vale conferir O dublê,

nem que seja para descobrir que tipo de pessoa você é e quer ser.




  



sábado, abril 13, 2024

A arte de Sergio Corbucci em três anos, três filmes e três frases

NAVAJO JOE, O PISTOLEIRO IMPLACÁVEL (NAVAJO JOE, 1967)

A alma do povo nativo-americano pulsa em cada fotograma e cada belo acorde da trilha sonora de Ennio Morricone nesta saga de vingança; Navajo Joe tem a esposa escalpelada por caras-pálidas que dizimam tribos indígenas por dinheiro e só vai descansar após matar um por um dos facínoras. 




OS VIOLENTOS VÃO PARA O INFERNO (THE MERCENARY, 1968)

Elementos que se repetem na filmografia de Corbucci aqui se delineiam de forma expressiva: a amizade entre um revolucionário e um mercenário, uma garota disputada por ambos, a hipnotizante trilha sonora de Morricone; em 1970, Corbucci faria uma espécie de remake deste filme em versão mais descontraída, Vamos a matar, companheiros




O VINGADOR SILENCIOSO (THE GREAT SILENCE, 1969)

Com a imortal trilha sonora de Morricone, fotografia belíssima de paisagens nevadas, uma história sangrenta e visceral com um desfecho dos mais impactantes da história do cinema spaghetti, O vingador silencioso representa o ápice da arte na filmografia de Corbucci.




segunda-feira, abril 01, 2024

O menino e a garça



 Dizia minha saudosa vó Godiva, "O mundo é dos reclamadores". A expressão passou de geração em geração em minha família, é um dos valores que cultivamos. Quando temos uma coisa a reclamar, reclamamos, com educação, é claro.

Pois na segunda-feira reclamei aqui sobre a programação dos cinemas regionais e na quinta-feira entra em cartaz um filme pra lá de alternativo, um filme cuja adjetivação bem pode incluir a palavra "artístico".

Nada mais, nada menos, que O menino e a garça, o vencedor do Oscar de Melhor Filme de Animação, do Studio Ghibli, com direção do lendário Hayao Miyazaki (nascido em 1941).

Se puder, faça um favor para seus sentidos e neurônios, assista a O menino e a garça em uma sala de cinema.



É uma experiência sensorial impactante, uma imersão em mundos fantásticos, onde pulsam emoções, delicadezas, sentimentos.

Sempre surpreendente e tocante, o roteiro acompanha a saga de Mahito. O menino sensível que, às vezes, se torna um pouco marrento por necessidade, mora em Tóquio durante a Segunda Guerra Mundial. A mãe dele trabalha em um hospital que é bombardeado e pega fogo. O pai leva o garoto órfão para se refugiar no idílico interior do Japão, onde o menino passará por um processo de amadurecimento à força, submetido à repugnância dos meninos locais, à presença de uma estranha garça e à companhia de 7 senhorinhas bizarras.

Mas quem deve cuidar de Mahito é uma moça bonita, muito parecida com a mãe dele.

Quem será ela? Qual a natureza real daquela esquisita garça? Que mistérios escondem a vila e o casarão onde Mahito vai passar os próximos meses?

Os detalhes do roteiro são muitos, é uma composição em várias camadas. Você não precisa tentar interpretar, ou buscar uma explicação, em um primeiro momento. Apenas dê a mão para Hayao e ao codiretor, Toshio Suzuki, e deixe-se levar nessa aventura desconcertante e bonita. 

Finda a experiência, dê tratos à bola para encontrar "explicações" e entender tudo que viu, de preferência com a ajuda de outro(s) cérebro(s) pensantes e argutos. Discutir um filme desses em família é outro dos prazeres que ele proporciona.



NÃO LEIA AGORA SE AINDA NÃO ASSISTIU AO FILME 

A solução mais óbvia nos remete a Lewis Carroll. O menino e a garça seria uma Alice no país das maravilhas às avessas, em que a bizarra garça faz as vezes do coelho e conduz o protagonista a essa terra da qual Mahito voltará uma pessoa diferente. Enquanto em Carroll Alice se deixa levar por curiosidade, em Miyazaki Mahito mergulha como fuga de seu  doloroso luto, do inescapável bullying que sofre dos meninos locais, da dor de descobrir algumas verdades sobre a vida. Kimitachi wa Dō Ikiru ka (君たちはどう生きるか) nos conduz a um universo paralelo, um no qual a vida de Mahito se torna tolerável. Um mundo em que ele encontra novas amizades, novas responsabilidades e novas perspectivas. Um mundo no qual ele deixa de ser Marrento para se tornar Mahito.