segunda-feira, dezembro 01, 2025

Cinema francês em dose dupla

 


O que faz um pai cinéfilo à beira de um ataque de nervos, em Porto Alegre, na tarde do segundo dia do vestibular, angustiado enquanto o filho está fazendo a exaustiva prova de 5 horas e meia da UFRGS?

Engata duas sessões encordoadas no Festival de Cinema Francês no Cineflix do Shopping Total.

Primeira sessão (14 h): A cabra, de Francis Veber, com Gerard Depardieu e Pierre Richard, filme de 1981.

Segunda sessão (16 h, após um sorvete duplo na Troppo Buono): O apego, de Carine Tardieu, com Valeria Bruni Tedeschi, Pio Marmaï, Vimala Pons, filme de 2024.

A cabra é uma boa comédia, apenas o título brasileiro é bizarro, porque não remete ao significado abaixo descrito. Não existe cabra alguma no filme, pelo menos que eu me lembre.

Tudo indica se tratar de uma expressão idiomática francesa, que chama de "chèvre" uma pessoa ruim em algo ou apenas um tolo (ver descrição a seguir).

La chèvreBesides meaning goat or goat cheese, “la chèvre” is “the worst.” If someone is really bad at something or just a fool, call them a chèvre.


O cabra talvez remetesse um pouco mais. No caso um cabra não safado e sim "azarado".

Qual é o significado da gíria "cabra"?
Na região Nordeste do Brasil, cabra é sinônimo de pessoa, sem conotação pejorativa. Qualquer indivíduo é mais um “cabra” na linguagem atual e corrente. Primitivamente, o termo correspondia a capanga, pistoleiro, sujeito subalterno em grupo de cangaceiros.
Eis que o personagem interpretado por Pierre Richard, ator homenageado no Festival, é um sujeito muito pateta e desastrado.
Dono de um azar que desafia a lógica, é enviado ao México em companhia de um detetive experiente (Depardieu) para descobrirem o paradeiro de uma jovem desaparecida.
Pierre Richard personaliza um humor que lembra muito o de Peter Sellers em filmes como Um convidado bem trapalhão e a série da Pantera Cor-de-Rosa, um humor físico, cheio de tropeços, quedas e infortúnios, realmente coisa de uma das pessoas mais desventuradas da face da Terra. Mas por incrível que pareça cada mancada e cada situação vão aproximando a dupla de enviados do seu objetivo de encontrar a moça desaparecida.
O apego
Outra face da moeda do cinema francês, o drama contemporâneo, realizado em 2024, um filme que provoca pouco riso e mais reflexão, afinal, aborda assuntos complexos como a diferença entre apego e amor.
Antes de ir à maternidade para ter o segundo filho, um casal precisa deixar o filho pequeno a cuidados da vizinha de porta.
Uma tragédia acontece na maternidade. 
O viúvo fica em uma situação deplorável, sem a esposa, com dois filhos para criar, a recém-nascida e o garoto, cujo pai é o primeiro marido da falecida.
Com a proximidade e o convívio nesses dias de sofrimento, o viúvo pensa ter se apaixonado pela vizinha, bem mais velha do que ele, porque ela lhe dá um ombro amigo e ajuda a cuidar do enteado.
Ela, dona de uma livraria especializada em obras de cunho feminista, o convence de que está enganado, que é só uma tentativa de processar o luto, e evita se envolver em um relacionamento sexual. 
Tudo ficou apenas em um beijo na boca tímido.
Logo o viúvo pula nos braços de uma mulher mais jovem, sem se dar conta de que estava tentando ainda se agarrar a uma tábua de salvação.
Dessa vez, porém, a moça também está carente e solitária, e um romance se principia.
O pai biológico do menino é outro personagem que vai atuar nesse cadinho de sentimentos borbulhantes e confusos, que leva o espectador, inevitavelmente, a fazer paralelos e avaliações com a sua própria vida.
Por isso que é bom ser cinéfilo.
O cinema sempre pode ser um refúgio, um lugar para se esconder, mas também para se acalmar.
Dois ótimos filmes que melhoraram o meu dia, o primeiro, me fazendo rir, o segundo, me fazendo ter orgulho da família que formei com minha esposa, que mesmo feminista me deu dois filhos, e mais orgulho ainda vou ter, é claro, se o primogênito passar no vestibular.
Sem pressões, é claro.




quarta-feira, novembro 19, 2025

Um lobo entre os cisnes é o grande vencedor do Festival Int'l de Cinema de Carazinho

 Em cerimônia encantadora, que contou com a participação da impecável OSINCA - Orquestra Sinfônica de Carazinho, conduzida pelo maestro Fernando Cordella, e apresentações da cultura gaúcha, como a bela interpretação da canção "A delicada" por Júlia Schu, realizada na Bier Site, em Carazinho, na noite do dia 18 de novembro, os premiados do primeiro Festival Internacional de Cinema de Carazinho foram sendo revelados, um a um.

Os anfitriões da noite, o diretor geral do festival, Diego Esteve, e a diretora artística,Yasmin Martins, chamavam ao palco os convidados para apresentar cada prêmio. Em seguida um vídeo com os concorrentes aparecia no telão ondulado.

Foi uma noite primorosa para quem ama o cinema, com destaques para os prêmios de LIFE ACHIEVEMENT concedidos a duas personalidades importantes, diretores de cinema que, cada qual a seu modo especial, foram precursores e revolucionários: Adélia Sampaio, a primeira mulher negra a dirigir um longa-metragem no Brasil, e Jayme Monjardim, que em sua rica filmografia revelou a essência da alma feminina.

Ambos foram ovacionados pelo público presente e aplaudidos de pé.

Outro momento de emoção foi quando o prêmio de Melhor Curta-Metragem foi anunciado. A equipe realizadora do filme Vespas comemorou bastante a conquista e mal cabia em si de contentamento.

A noite foi dominada por dois filmes, Passagrana, com dois Carás de Ouro, e Um lobo entre os cisnes, que abiscoitou nada menos que 5 estatuetas.

A lista dos indicados pode ser conferida aqui.

Abaixo a lista dos principais vencedores:

Melhor Filme: Um lobo entre os cisnes

Melhor Atriz Protagonista: Mel Lisboa, pelo filme Atena

Melhor Ator Protagonista: Matheus Abreu (Um lobo entre os cisnes)

Melhor Atriz Coadjuvante: Julia Lund (Ezequiel & Estevão)

Melhor Ator Coadjuvante: Dario Grandinetti (Um lobo entre os cisnes)

Melhor Direção: Helena Varvaki e Marcos Schechtman (Um lobo entre os cisnes)

Melhor Direção de Fotografia: Carlos André Zalasik (Passagrana)

Melhor Trilha Sonora: Fabio Gois (Passagrana)

Melhor Roteiro: Camila Agustini (Um lobo entre os cisnes)

Melhor Curta-Metragem: Vespas, de Guilherme Fernandes

Melhor Documentário: Travessia, de Karol Felicio.

Melhor Animação: O armário interior (direção de João Mendes Neto e Amalia Brandolff)

Uma noite inesquecível, vida longa ao Festival. Abaixo uma palhinha da OSINCA interpretando o tema do clássico E. T., de John Williams.



Para quem desejar conferir a cerimônia na íntegra, está disponível no YouTube


segunda-feira, novembro 17, 2025

Nosso sonho

 


Concorrendo a seis categorias no Festival de Cinema Internacional de Carazinho, o longa-metragem Nosso sonho, de Eduardo Albergaria, que conta a trajetória da dupla de funk melody Claudinho & Buchecha, teve sua sessão no Cine Lúmine domingo, dia 16 de novembro, às 21 h.

O Festival é um sonho tornado realidade por duas pessoas em destaque nesta reportagem da Rolling Stone.

A sessão seria na Sala 1, mas por motivos técnicos foi realizada na Sala 2.

A lotação para um Festival gratuito, de um filme de alto nível, poderia ser maior. 

Mas considerando que o público carazinhense não sai de casa em dias de chuva, até podemos considerar que foi razoável o número de pessoas presentes.

A nossa família compareceu em peso e gostou muito do filme.

Já temos o nosso preferido para abiscoitar algumas das categorias a que concorre:

Melhor Filme

Melhor Ator (Lucas Penteado, o ator que interpreta o Claudinho)

Melhor Atriz Coadjuvante (Tatiana Tibúrcio, a atriz que interpreta a mãe do Buchecha)

Melhor Roteiro

Melhor Fotografia

Melhor Trilha Sonora

De todas essas categorias, eu diria que o filme tem mais chance de ganhar Melhor Roteiro, pois é bastante feliz em suas escolhas, enfatizando a complexa relação de Buchecha com o pai, e também o uso de palavras difíceis pela dupla em suas letras.

Uma cena é absolutamente hilária, a que os dois entregam um cartão para os caras da Gravadora e ficam esperando o retorno em um orelhão.

Alternando com essas cenas alegres o tom mescla a resistência de dois jovens em busca de seu sonho, com o bordão "Quem tem talento não tem patrão" sendo repetido para acentuar o momento em que Buchecha precisa decidir entre o emprego de office-boy e a carreira artística.

O trabalho de Lucas Penteado, com toda a parte que envolve a pronúncia dos fonemas, particularidade da fala de Claudinho, também mereceria um prêmio.

Melhor Filme, não sei, não consegui assistir aos demais longas que concorrem, mas com certeza se vencer estará em boas mãos, porque é um filme importante sobre a essência da cultura e do povo brasileiros. 




quarta-feira, novembro 12, 2025

Os seus, os meus e os nossos


O saudoso Roger Ebert resenhou este filme em 1968 por ocasião de sua estreia nos cinemas. Foi uma resenha bastante favorável, que atribuiu 3,5 estrelas em 4 possíveis, destacando as atuações de Henry Fonda (nascido em 1905) e Lucille Ball (nascida em 1911), como dois viúvos, o primeiro com 10 filhos e a segunda com 8, que se apaixonam e juntam as duas famílias sob o mesmo teto.

A parte em que os dois estão se conhecendo é muito interessante e divertida, em especial a sequência no restaurante japonês, em que os dois tentam sair com pessoas diferentes, só para descobrir que foram feitos um para o outro.

Tomada a difícil decisão de um segundo matrimônio, a próxima parte do filme aborda as dificuldades logísticas e emocionais que envolvem administrar uma família com 20 integrantes.

Uma surpresa no final é a cereja do bolo para essa comédia clássica, com roteiro bem elaborado e personagens construídos com desenvoltura e naturalidade.

Para quem gostar do original, também existe uma versão de 2005, com Dennis Quaid e Rene Russo nos papéis principais.




sexta-feira, outubro 31, 2025

Frankenstein com spoiler na primeira frase da resenha


CONTÉM SPOILERS, LEITURA NÃO RECOMENDADA PARA QUEM AINDA NÃO ASSISTIU AO FILME


Guillermo Del Toro, eu te perdoo.

Quem já viu o filme sabe por que essa frase é um spoiler, quem não viu ainda, bem, peço perdão pelo spoiler, mas não foi por falta de aviso.

Também não é culpa minha que Del Toro transformou o seu filme em uma parábola sobre a importância da capacidade de perdoar.

A cena final do Frankenstein (2025) da Netflix é um misto de pieguice com ternura, conforme o nível de rigor de quem assiste.

A minha história com Del Toro partiu da admiração à decepção.

Admiração pelos tempos de O labirinto do fauno e A colina escarlate, decepção com a acusação de plágio de A forma da água e a megalomania de Pinóquio de Guillermo del Toro.

Já que o tema principal de Frankenstein acaba sendo o perdão, nada mais adequado que eu aproveite o cavalo que passa encilhado e suba no lombo dessa onda de forgiveness.




Guillermo Del Toro, estás perdoado.

Não que um cineasta ególatra precise do perdão de um cinéfilo obscuro, mas fica registrado aqui, este filme que você fez no ano de 2025 com dinheiro da Netflix é uma visão "bonitinha" da história, uma visão pró-monstro.

A criatura é a vítima da ganância e da megalomania de seus criadores.

A criatura interpretada pelo ator australiano Jacob Elordi, do alto de seus 1,96 m, é talvez o "Frankenstein" mais frágil de todos os tempos. A fragilidade no sentido de vitimização, de um ser que não pediu para ser como é, mas sofre na pele e na alma a maldição de estar vivo e enfrentar a rejeição de quem não compreende a sua essência.



Por abordar e explorar esses temas com mais apuro que outras adaptações, Guillermo Del Toro realiza um trabalho importante em preservar a lenda e insuflar nela um novo sopro vital, o sopro de quem consegue transformar o desdém e a raiva em perdão. 

 

sexta-feira, outubro 10, 2025

Uma batalha após a outra

 


O novo filme do diretor Paul Thomas Anderson está sendo alvo de polarização. O público vai assistir e, se for bolsonarista, se revolta. Se for lulista, leva muito a sério e levanta bandeiras.

Mas quem mais se diverte é o centrista.

Para mim, o filme funciona bem como filme de ação com boas pitadas de comédia intercaladas.

Não creio que o filme tenha a intenção de se tornar um libelo anti-isso ou antiaquilo ou pró-isso ou pró-aquilo.

Mas está sendo abraçado dessa forma por uma parte da crítica, tanto que o Brian Tallerico, do site Roger Ebert, termina a sua resenha com uma "chamada à ação": 

Keep fighting.




Ok, todos nós de alguma forma estamos precisando sempre batalhar, vencer uma batalha após a outra, um dia após o outro, resolver toda sorte de perrengues que vão surgindo, e tentando sermos felizes no processo.

Direita, esquerda ou centro, somos todos humanos, demasiado humanos, mas creio que as pessoas que atualmente se posicionam nos polos deixam de curtir um pouco as graças da vida.

Para começar, deixam de achar graça dos ridículos da direita e dos ridículos da esquerda. Ficam dourando a pílula quando aperta o próprio sapato.

E o filme de PTA acaba ridicularizando a direita e a esquerda, embora sua mensagem revolucionária tenda um pouco a romantizar a esquerda. O fato de que o filme satiriza os dois lados também é enfatizado na resenha de Derek Jacobs, do site Plot & Theme, onde afirma que, do começo ao fim, OBAA satiriza os extremos políticos (One Battle After Another is a satire of political extremes, from start to finish). 

A propósito, muita gente abandonou a sessão, será que foi por essa questão política ou acharam o filme chato?

No meu ponto de vista, de chato o filme não tem nada, é do tipo uma coisa puxa outra e quase de ação ininterrupta.

As perseguições na erma rodovia no fim do filme são um triunfo cinemático, o espectador chega a sentir vertigens pelo modo com que as câmeras são instaladas no veículo junto ao asfalto ondulante.

As atuações de DiCaprio e Del Toro são complementares e bem-humoradas.

Sean Penn é candidato a mais um Oscar?

Teiana Taylor, Chase Infiniti e Regina Hall imprimem veracidade a seus papéis.

No frigir dos ovos, Uma batalha após a outra se enquadra como bom entretenimento, com algum estofo para se pensar, mas principalmente na parte de relacionamentos, sangue versus criação...




Na parte política, mostra o quanto um grupo revolucionário pode ser implacável e matar inocentes. Os fins justificam os meios, é isso?

E também mostra o quanto um grupo racista pode ser pernicioso e assustador.

Não entendo porque o filme possa ser abraçado por um dos lados e rejeitado pelo outro.

Longe de ser um libelo, Uma batalha após a outra traz elementos que provocam debate involucrados em um produto palatável, que honra a melhor tradição do cinema americano.



domingo, setembro 14, 2025

A vida de Chuck

 


A vida de Chuck
é um filme com diversos ingredientes capazes de atrair e agradar aos espectadores que curtem ciência, dança, astronomia e a obra de Stephen King.

Carl Sagan e sua obra e seriado mais famosos, "Cosmos", são citados ao longo do filme para denotar a irrelevância do ser humano e do tempo em que vivemos no contexto astronômico. 

Uma forma humilde de encarar o universo e a perspectiva do que é importante e "grande".

Ao mesmo tempo em que o filme nos conduz a esse ponto de vista mais amplo, nos faz mergulhar na individualidade de um professor que vê o mundo (esse nosso mundinho cotidiano, do trânsito, do solucionar os perrengues do dia a dia) se desintegrando ao seu redor.

Coisas estranhíssimas estão acontecendo em sua rotina, sem que ele consiga encontrar uma explicação plausível, mesmo sendo um sujeito com pés no chão e científico.

A situação caótica o leva a buscar uma reaproximação com a esposa de quem está separado.

Esse é o "Terceiro Ato" do filme, que na montagem vem por primeiro lugar.

No segundo ato, o mais divertido e leve do filme, o personagem principal, Chuck, assume o protagonismo em todos os planos da narrativa.

Ele está participando de um simpósio sobre contabilidade e no intervalo passa por uma artista de rua, tocando uma bateria em praça pública.

E o inesperado acontece.

Esta sequência é do tipo que surpreende, encanta e enternece, e tem gente que criticou o filme justamente por causa disso.

Gente que não tem sangue nas veias.

Gente que não concorda com Tobias Barreto:

"O coração também é um metafísico:

 Estremece por formas invisíveis, 

Anda a sonhar uns mundos encantados, 

E a querer umas coisas impossíveis…"

Todas essas pessoas que chinelearam

A vida de Chuck 

criticaram o filme por seus insights 

astronômicos e conversas astrofísicas,

isso é cansativo para elas.

Sim, estofo e conteúdo exigem mais do 

espectador que o intensivo 

"tcha-tchaka-na-butchaka" 

de Anora e quejandos.

Justamente o que cansa uns encanta outros.


O terceiro ato é um enternecedor mergulho na 

vida de um garoto que precisa enfrentar 

muitas perdas, e ainda assim não desiste, 

segue a sua vida inspiradora.

O meu filho de 13 anos disse ao final do filme 

que devemos aproveitar a vida, foi esse o 

moral do filme para ele.

Acho que o Stephen King ficaria satisfeito com essa análise simples.

Afinal, a singeleza de valorizar as pequenas coisas e cada momento é a essência de A vida de Chuck, a mais nova adaptação fílmica da vertente literária de King menos ligada ao terror, e que nos rendeu 

Um sonho de liberdade

Conta comigo

À espera de um milagre. 

Não sei explicar direito, mas sei que é bom sair do cinema com a sensação de ter "lavado a alma" e visto cenas catárticas, que reforçam a esperança em um cinema íntegro, que suscita debates e que permite diferentes interpretações.

Em tempo: não vou me surpreender se este filme receber indicações para o Oscar, como, por exemplo, Mark Hamill a Melhor Ator Coadjuvante.




quarta-feira, setembro 03, 2025

Planas ou redondas? Givin' Anora a Chance: análise das personagens de acordo com a Teoria Literária

 


Uma das coisas que mais abomino é a injustiça.

E uma injustiça cometida por mim mesmo é a mais abominável. 

Portanto, para não cometer injustiças com o badaladíssimo e premiadíssimo filme Anora, volto a me dedicar a ele, agora para analisar uma a uma das personagens segundo a Teoria Literária.

Lulu (Luna Sofia Miranda): colega de Anora como strip no clube noturno, é convidada por Anora para ir a uma festa de Ano-Novo na mansão de Vanya. As motivações e atos de Lulu são flats e planas como uma panqueca. Como diria Hamlet, Frivolidade, teu nome é mulher!

Tom (Anton Bitter): um dos amigos de Vanya, trabalha em uma loja de doces e protagoniza uma das cenas mais estapafúrdias do filme em que pretende dar uma de corajoso diante dos capangas do oligarca russo. Brande um bastão de beisebol que é tomado de seus braços como um adulto tira um doce da mão de uma criança. A definição de personagem plana é aquela que tem "emoções, motivações e personalidades simples". Mais plano que Tom apenas Crystal.

Crystal (Ivy Wolk): namorada de Tom e parte da gangue de Vanya, um grupo de pessoas desintelectualizadas ao extremo, sem nada a acrescentar para a humanidade, ao menos pelas cenas que Sean Baker nos mostra e pelas falas que saem das bocas dessas personagens moralmente constrangedoras.

Diamond (Lindsay Normington): Diamond é a rival de Anora no strip-club e quando Anora pede as contas e vai embora para viver seu conto de fadas, ela vaticina: não vai durar duas semanas o casamento. Vias de fato é claro vão acontecer entre as duas, em uma das mais convincentes demonstrações de "personagem-planismo" dos últimos tempos.

Galina Zhakarov (Darya Ekamasova): a mãe do noivo é uma bruxa malvada, uma megera de cuja boca só emergem maldades e falas preconceituosas contra a pobrezinha Anora. Flat, extremamente flat, pra cair os butiá do bolso de você, de mim e de todo mundo.

Nikolai Zhakarov (Aleksei Serebryakov): o pai do noivo é um pândego que acha graça de tudo, é o criador (Sean Baker) se revoltando contra a própria criatura, sem dó nem piedade, um personagem que tem lá sua graça, mas flat as flat can be.

Toros (Karren Karagulian): ele abandona um batizado para iniciar o processo de "colocar as coisas nos eixos", coisas que saíram de seu controle quando Vanya se casa com Anora. As motivações dele são simplórias, nada nele é profundo, superficialidade extrema na construção do personagem e na escolha de suas falas.

Garnick (Vache Tomvasyan): irmão mais novo de Toros, é nitidamente escolhido como o saco de pancadas do filme, alívio cômico, mas até nisso o roteiro soçobra, porque Garnick é um personagem que não oferece uma graça autêntica, é tudo muito forçado. Garnick é plano porque "permanece praticamente inalterado ao longo da história, (...) têm um ou dois traços ou características dominantes que são claramente definidos e não evoluem".

Ivan "Vanya" Zhakarov (Mark Eidelshtein): o filho de magnata é o protótipo de um riquinho mimado, o roteiro não se dá ao trabalho de tentar mostrar alguma qualidade do pobre Ivan, só seu lado tênue e superficial. O uso de personagens planos e essa falta de profundidade geralmente servem a um propósito específico na narrativa, como apoiar o desenvolvimento de personagens redondos ou aprimorar os temas da narrativa. Mas a pergunta que não quer calar: existe algum personagem redondo no filme?

Anora (Mikey Madison): uma cena da vida cotidiana de Anora é a única que nos dá um insight de sua personalidade "fora do mundo do strip". Ela chega em casa e vai dormir, a amiga com quem mora reclama que o combinado era ela ter comprado o leite, e ela ironiza. O comportamento de Anora se mantém previsível a maior parte do tempo. 

AVISO DE SPOILER 

Na última cena ela revela algo que pode ser considerado uma evolução, uma reação emotiva, um fluxo torrentoso de dúvida e fragilidade. É justamente nessa cena que Anora, construída o filme inteiro como personagem plana, dá um passo para se tornar uma personagem redonda. Mas daí o filme acaba e a gente não tem mais tempo de conhecer a verdadeira Anora. Ou alguém imagina que haverá um Anora 2?

Igor (Yura Borisov): creio que Igor, apesar de sua aparente truculência, consegue demonstrar em algumas atitudes certa profundidade de caráter, certa capacidade de nos surpreender. É muito pouco para um filme tão premiado, mas então, reconheço aqui, Igor é redondo, não é um capanga tradicional.

AVISO DE SPOILER

Não que a ideia de uma "síndrome de Estocolmo" entre a raptada Anora e Igor, um dos sequestradores, seja algo original, é um clichê dos mais óbvios. 

Mas estou aqui tentando reparar uma injustiça que posso ter cometido com Anora, e fazendo algumas observações adicionais que talvez amenizem o rigor de minha avaliação inicial.

E, mesmo com a melhor das intenções, constato que pela Teoria Literária Sean Baker não se esforçou para criar personagens redondos, além de Igor.

E Anora, a personagem? Bem, como observei, Anora mostrou uma faceta nova apenas no fim da história, e para mim isso foi decepcionante, ela permanece e age como uma personagem plana o tempo inteiro, e só no fim mostra ser "gente como a gente". 

Ainda vou ter que fazer um post só para comentar a última cena do filme.

Mas, como assim, se o filme é tão ruim, por que você se dá ao trabalho de fazer 3 posts sobre ele? Ou será que Anora não é tão ruim assim?


Em tempo: Joana Araci, no artigo "Why Anora Exposes Everything Wrong with the Oscars", explica porque ela, também, como eu e outras muitas pessoas, considerou Anora indigno do Oscar de Melhor Filme.

O último azul: The Blue Trail


Uma das coisas que eu mais prezo é a coerência. 

E quem lê este blog sabe das vicissitudes de um amante do cinema que mora no interior, longe da capital.

Sabe que eu vivo comentando o quanto é difícil filmes de arte chegarem aqui.

Então seria muita incoerência de minha parte não ir assistir a O último azul no Cine Lumine de Carazinho.

Ainda por cima na semana em que o ingresso está a 10 pila.

Com direção de Gabriel Mascaro e elenco liderado por Rodrigo Santoro e Denise Weinberg, o filme brasileiro foi consagrado com o Urso de Prata do Grande Prêmio do Júri no Festival Internacional de Cinema de Berlim, segunda maior honraria do festival (só perdendo para o Urso de Ouro).

O roteiro focaliza a saga de Tereza (Denise Weinberg) que, aos 77 anos, recebe do governo a ordem de ser levada compulsoriamente à colônia dos idosos. Ela reluta porque tem outros planos.

Dispensada dos trabalhos no frigorífico de jacarés onde trabalha na linha de abate e esfola, Tereza se vê tolhida por um sistema governamental autoritário, pelo qual ela deve usar fraldas e morar longe dos familiares mais jovens.

Rebelde, ela dribla a equipe responsável pela "coleta" dos idosos e parte para uma viagem em busca de redenção e livramento.

A jornada que ela faz é pelas águas, e em cada embarque vai conhecendo pessoas e tendo experiências diferentes.

Um dos barcos é pilotado por Cadu (Rodrigo Santoro), que a ensina como conduzir o leme e acionar as alavancas de comando. 

Entre um aprendizado e outro, Tereza mergulha nos mistérios das águas amazônicas e no poder místico e esotérico de um caracol que solta um muco azul.

Cadu mostra à Tereza que, ao pingar esse muco nos olhos, as pupilas dilatam e a parte branca do olhos se colore de anil, com a pessoa entrando em um transe ou delírio sensorial.

Algo que remete o espectador às experiências psicodélicas do livro As portas da percepção, de Aldous Huxley, em que o autor narra suas experiências com a mescalina, livro que inspirou Jim Morrison a criar a banda The Doors.

Outro livro que dialoga com o filme de Mascaro é um que li recentemente, escrito por Drauzio Varella: O sentido das águas: Histórias do Rio Negro

Enquanto Tereza deslizava pelas misteriosas águas amazônicas na tela, recordei de algumas histórias contadas no livro do famoso médico brasileiro, histórias reais, histórias de casas flutuantes e de palafitas, histórias sobre os indígenas, flagrantes intimistas de esperança e singeleza, exemplos de preservação histórica e da natureza, mas também sobre o pior que o ser humano é capaz.

No distópico mergulho ao futuro brasileiro de Mascaro, esse contato com a natureza nos faz migrar do bucólico e romântico ao cruel e ganancioso, e isso chega ao auge em uma sequência emblemática, em que Tereza, desesperada para conseguir dinheiro para comprar sua liberdade, aposta tudo que tem e até o barco em uma briga mortal de peixes-beta. 

Em O último azul, a beleza da natureza está sempre contrastada com a rudeza dos homens.




sábado, agosto 23, 2025

A hora do mal: Weapons

 


Acho engraçado quando pessoas cultas, inclusive jornalistas, artistas e escritores, se confundem na hora de se expressar sobre um assunto que envolve a escolha de títulos de filmes.

Só para dar um exemplo, o escritor José Roberto de Castro Neves, na obra Shakespeare e os Beatles: o caminho do gênio, fez o seguinte comentário:

"(...) Os reis do iê-iê-iê (a tradução feiosa de A Hard Day's Night) ".

Como se a "culpa" do título escolhido fosse de um tradutor.

Desconhecimento de como se faz a escolha de títulos. 

Nem sempre (ou talvez o mais exato seria dizer raramente?) a equipe de tradução é ouvida, ou se é ouvida, a opinião dela não é levada em conta.

Seja como for, em muitos casos é realmente necessário uma adaptação, porque a tradução literal "não funciona" culturalmente ou até mesmo afugentaria o público.

No caso citado acima, chama atenção o fato de que o autor, recentemente escolhido para a Academia Brasileira de Letras, se acha engraçadinho ao criticar a "feiura" da tradução, mas prefere, é claro, ficar longe de tentar uma "tradução" melhor.

Do ponto de vista de um tradutor profissional, eu preciso elogiar, primeiro, o trabalho da tradução das dublagens brasileiras (outra coisa que os arrogantes que acham que sabem inglês vivem criticando, sempre se apressando a declarar que só assistem a filmes legendados, afinal, é claro, assistir a filme dublado é coisa do povão).

E em segundo lugar, vai meu elogio também aos gênios que colocam títulos brasileiros nos filmes.

Muitas sacadas são geniais e os títulos originais são superados (p. ex. Levada da breca, O poderoso chefão, Curtindo a vida adoidado, etc.) 


Quem são esses gênios?

Eu gostaria de saber.

Funcionários e executivos da distribuição de filmes, imagino eu.

Em mesas-redondas, se reúnem para tomar a decisão.

"Armas", sugere o tradutor literal.

"Armas do crime", palpita o tradutor explicativo.

Um debate sobre o filme se segue, e a especialista em plots avisa:

"O título original não vai funcionar e ainda por cima é spoiler."

E explica os motivos.

O estagiário levanta a mão:

"Tenho uma ideia. O fato desencadeador acontece às 2:17 da madrugada. Que tal 'A hora fatal?'."

O tradutor explicativo protesta dizendo que nesse caso deveria ser "O horário fatal".

Um brainstorm se segue, em que vêm à tona vários títulos nessa linha, entre eles, "A hora da bruxaria", "A hora das armas" (sugerida pelo tradutor literal), e "A hora do enigma".

Até que o executivo-chefe, em sua poltrona maior na cabeceira da mesa, com seu infalível faro comercial, vaticina:

"A hora do mal".

Aplausos e comemorações se seguem, e o grupo sai dali direto a um happy hour.

Tudo isso para dizer que Weapons é um bom filme de Zach Cregger, cujo título original "Armas" não funcionaria, além de ser meio spoiler, e por isso foi bem ou mal substituído pelo genérico e insosso A hora do mal.

E por que é spoiler? Se eu explicar aqui, vou estar dando spoiler.

A estrutura do filme, arquitetada em sequências contadas sob diferentes pontos de vista, cada qual intitulada com o nome do personagem em questão, é um dos pontos fortes do roteiro.

Permite ao espectador reconstruir os fatos sem pressa e compreender as  angústias e intenções de cada pessoa envolvida.

O fato de Zack Cregger ser um comediante que está se especializando em filmes de terror é algo digno de nota, e explica o constante e eficiente uso de alívios cômicos ao longo da tensa narrativa.

Que a indústria não absorva mais esse novo talento em franquias.



domingo, agosto 10, 2025

Ennio, o maestro

 O melhor antídoto para um filme muito ruim é um filme muito bom.

Lançado em 2022, o documentário de Giuseppe Tornatore, o cineasta de Cinema Paradiso, é um excelente resumo da trajetória do compositor Ennio Morricone.

Um invejável rol de cineastas significativos desfila ao longo de 2h30, alguns em entrevistas especiais para o longa, como Clint Eastwood, Liliana Cavani, Bernardo Bertolucci, Roland Joffé, Tarantino e os irmãos Taviani, outros em imagens de bastidores, como Sergio Leone, Brian De Palma e Terrence Malick.

Pessoas do meio acadêmico, colegas compositores, críticos, cantores, cantoras, produtores musicais e produtores de cinema, enfim, muita gente boa vem dar o seu depoimento e ajudar a contar a história de Ennio Morricone.

Começou a estudar trompete por determinação paterna, Ennio na verdade queria ser médico. As origens humildes, quando o dinheiro da música mal dava para a alimentação, não o deixaram esmorecer.

Matriculado em uma das escolas de músicas mais bem conceituadas da Europa, a Academia Nacional Santa Cecília de Roma, Ennio foi se tornando um profissional do trompete, mas se encontrou mesmo quando começou a estudar composição, incentivado por professores que perceberam o seu talento.

Após concluir os estudos trabalhou em várias funções, mas começou a se destacar como arranjador da RCA Victor, fazendo arranjos inventivos e muito populares para gente como Paul Anka, vide a canção "Ogni Volta":


Ali Ennio já mostrava uma queda por frases musicais melódicas e desconcertantes, que mais tarde fariam parte de seu estilo inconfundível nas trilhas sonoras para filmes, gênero em que se tornou especialista.

A estreia no cinema se deu aos 33 anos e inicialmente sofreu com a crítica dos pares, que arrogantemente desdenhavam esse tipo de composição, considerando uma atividade indigna de um compositor de verdade.

A grande habilidade de escolher os acordes e a música certos para cada cena, o dom de entender a psicologia de cada realizador, tudo isso Ennio foi mostrando e aprimorando, mas o grande talento sempre esteve à mostra, desde o começo.

Prova disso é o quanto é difícil para quem conhece suas trilhas escolher uma década preferida.

A década de 60, com as trilhas de Por um punhado de dólares, O vingador silencioso, Três homens em conflito e Era uma vez no Oeste?



A decada de 70, com as trilhas de Investigação sobre um cidadão acima de qualquer suspeita, Sacco & Vanzetti e Allonsanfàn?


Ou a de 80, com A missão, Os intocáveis e Cinema Paradiso?


O filme de Giuseppe Tornatore abrange todas as fases, inclusive as mais recentes, em que Tarantino o convidou para fazer a trilha de Os oito odiados, ironicamente, a que lhe valeu seu único Oscar de Melhor Trilha Sonora Original, trilha que segundo o próprio Ennio marca uma ruptura ou "vingança" dos filmes de faroeste, pois compôs uma sinfonia completa.

A colaboração com a cantora portuguesa Dulce Pontes também ganha destaque no filme, e a influência da obra de Morricone na música pop e no rock, em samplings e covers de bandas como Metallica.

Bruce Springsteen e Pat Metheny declaram no documentário a influência de Morricone em suas respectivas carreiras e a sua admiração pela obra dele.

Emocionante e esclarecedor, Ennio, o maestro é um filme imperdível para quem ama cinema.

Bônus:





 

sábado, agosto 09, 2025

Anora


 Com a conquista do Oscar e da Palma de Ouro em Cannes, Anora se junta ao clube seleto de três filmes que fizeram essa façanha: Lost Weekend (Farrapo humano, 1946), Marty (1955) e Parasita (2019).

E agora que o filme entrou no Prime Video na categoria "Incluído no Prime", sem custos adicionais, eu, na condição de cinéfilo que acompanha ambos os prêmios, tive de conferir, não sem uma grande expectativa.

A decepção foi, contudo, inevitável.

Trata-se de um filme que em raríssimos momentos conseguiu me envolver, um filme cujo roteiro fraco tem diálogos tacanhos e cenas que não funcionam, um filme cujos personagens sem carisma não permitem uma identificação, um filme, enfim, que não merecia ter vencido a Palma de Ouro e muito menos o Oscar.

Uma hype e um diretor badalado então provocaram uma histeria coletiva que gerou essas premiações?

Eu que sou um cinéfilo ultrapassado e anti-humanista, afinal de contas, o cinema de Sean Baker é humano, demasiadamente humano?

Eu que não entendi a proposta, que não achei graça em cenas incrivelmente divertidas, que não percebi o humor por trás do tétrico, o profundo por trás do raso, o filosófico por trás do previsível?

O filme foi passando e eu não conseguia acreditar em meus olhos: como este filme ruim ganhou os dois maiores prêmios do cinema? Qual o futuro do cinema como arte se a enganação é marca do cinema atual?

Sean Baker é o maior enganador da história.

Fez uma cena bem-feita (a última) e achou que isso consertaria um amontoado de cenas malfeitas.

Pelo jeito conseguiu enganar muita gente, de críticos a pessoas que votam em Cannes e na Academia.

A vitória da atriz esforçada e iniciante Mikey Madison é um acinte, levando em conta as concorrentes brilhantes, Demi Moore e Fernanda Torres, em filmes muito mais significativos.

O emblema de Anora é o personagem Vanya, o apelido de Ivan, o personagem mais ridículo de todos os tempos do cinema, e como a personagem principal consegue "se apaixonar" por um babaca tão grande é que é a pergunta que não quer calar.

É como se o coitadismo da situação vulnerável de Anora servisse como justificativa para que ela transformasse uma relação de uma semana, em que o mancebo filhinho-de-papai-oligarca-russo a contratou para ser sua "namorada" em uma viagem com amigos tão idiotas quanto ele próprio, para participar de festas idiotas com músicas idiotas e drogas idiotas, em um conto de fadas. E como se o dinheiro do namoradinho rico a impedisse de ver o babaca que ele era, ou que só porque alguém lhe presenteia com um anel caro esse certo alguém se transforme em um príncipe encantado.

Os personagens de Sean Baker são patéticos, incoerentes e profundamente odiáveis.

Você não consegue criar empatia por ninguém até a última cena, quando talvez surja um pouco de simpatia por um personagem que até então oscilou entre o truculento, o violento e o asqueroso.

As cenas vão se sucedendo, uma após a outra, e a raiva só aumenta, porque nada faz sentido, culminando com o instante em que os "babás" de Vanya entram em ação, um senhor das antigas e seus dois capangas trapalhões e atrapalhados. 

Menos pior que outros mundo afora reagiram como eu ao assistir à "obra-prima" de Baker.

Em dezembro de 2024, Elena Ringo classificou Anora como "A vulgar ass-ault on cinema". Em sua carta aberta a Sean Baker, The Sunshine Man menciona a acusação de plágio e que daqui a 5 anos ninguém estará falando de Anora.

É esta a mesma sensação que eu tive ao ver Anora, a de estar vendo um filme descartável, com muito sexo explícito e pouca densidade.

É como se no mundo de hoje querer gostar de algo fosse suficiente para dar consistência a algo.

Mas por mais que alguém se esforce para gostar de Anora, a personagem, ou de Anora, o filme, o mais que a gente consegue é ter pena de ambos.

 Anora é uma menina perdida que aparentemente se deixou desumanizar pelo sistema em que está inserida, mas um filme que usa isso como artifício para justificar suas fraquezas comete um "golpe baixo". É como se eu ao declarar aqui que não gostei de Anora (o filme), eu estivesse declarando a minha insensibilidade pela situação das Anoras mundo afora.

Não é verdade, tanto que reconheço a força da cena final, mas, como eu disse, não tem como uma cena, por mais boa e comovente que seja, consertar todas as cenas grotescas que vieram antes.

Filmes vencedores da Palma de Ouro são filmes imortais, que não envelhecem, filmes da estirpe de Coração selvagem, Os guarda-chuvas do amor e O espantalho. Filmes que podem ser vistos e revistos e que ainda hoje encantam e emocionam.

E vencedores do Oscar de Melhor Filme são em geral épicos e inesquecíveis, grandiosos, obras-primas indiscutíveis do cinema, tradição que se cristaliza em títulos como A lista de Schindler, Titanic e Um estranho no ninho.

A premiação do caquético Anora desvitaliza esses dois prêmios de uma forma que o cinema jamais vai se recuperar.

O futuro dirá se vivemos em 2024 e 2025 uma insanidade no mundo das avaliações cinematográficas, em que um filme ruim ganhou dois prêmios importantes, revelando o quanto o cinema está à mercê de hypes e das redes sociais, e o quanto a ânsia de "causar" e a vontade de receber "likes" superam o trabalho honesto e o talento verdadeiro.

Ou se os detratores de Anora são uns retrógrados incapazes de reconhecer a genialidade no trivial.


 






quarta-feira, maio 28, 2025

Lilo & Stitch: minha terra natal volta a ter um cinema

 No coração do Planalto Médio Rio-grandense, Carazinho, capital da hospitalidade, da logística e do galeto com massa, sita a 280 km de Porto Alegre e 40 km de Passo Fundo, não é uma cidade que se destaca das outras. 

Com cerca de 60 mil habitantes há vários censos, a população não cresce, nem diminui. É uma cidade de passagem, um ponto de parada, um entroncamento rodoviário importante, entre a BR-285 e a BR-386, e sua avenida principal, a avenida Flores da Cunha, é um divisor de águas entre duas importantes bacias, a Bacia do Jacuí e a Bacia do Uruguai. A chuva que cai de um lado (mais a leste) da avenida corre ao Rio Glória, afluente do Rio Jacuí, e a que cai do outro lado (mais a oeste) corre ao Rio da Várzea, afluente do Rio Uruguai. 

Carazinho é importante para mim não só por ser a cidade natal minha e de meus três irmãos, mas também porque foi pra cá (a propósito, entre as explicações do nome estão o peixe cará, o nome de uma taquara e a expressão "cá é rasinho") que meu avô, nos fins da década de 1920, participou da comissão de emancipação e se tornou o primeiro prefeito do novo município, em 24 de janeiro de 1931. 

Sei que o meu avô Homero Guerra, formado em engenharia-civil, lia francês e inglês, era um homem culto, industrial, empreendedor e produtor rural, amava as ciências e os livros, mas não sei se era cinéfilo como a nora dele, a Dona Nídia, homenageada neste post

Sei que Carazinho, nos tempos áureos do cinema como entretenimento, tinha três cinemas, o Glória, o Recreio e o Brasília. E sei que tenho uma série aqui no meu blog chamada "Eu vi no Brasília", que homenageia o finado e mais importante cinema da cidade, até hoje.

Até hoje, sim, porque o mais importante, hoje, não é um cinema do passado, e sim o cinema do presente, um cinema concreto, não uma ficção.

É o Cine Lúmine, recém-inaugurado na Estação 599, local com várias opções culinárias, supermercado e agora também um cinema moderno.

Com a esposa e os filhos conferimos a sessão das 21h de terça-feira. O filme não importava muito, importava era marcar presença nesse momento histórico.

Eis que, por acaso do destino, as aventuras da resiliente havaianinha Lilo e seu amigo alienígena Stitch servirão para sempre como símbolo dessa retomada, um símbolo do vínculo que a comunidade local tem com a cultura, a cultura popular do cinema, arte não excludente, arte do povo.



A frase clichê "Carazinho não tem sequer um cinema", que foi válida desde que o Brasília fechou, há 14 anos (esteve em operação de 1955 a 2011, conforme esta reportagem do ZH) agora se tornou obsoleta.

Com resiliência, o povo de Carazinho resistiu um tempo sem cinema, e agora, pode estufar o peito e dizer: minha cidade tem cinema!

Vida longa ao Cine Lúmine de Carazinho, e que o povo continue lotando as sessões como nesta semana de estreia.

   

segunda-feira, março 31, 2025

Novocaine

 




Provoca no cinéfilo uma certa sensação de reconforto assistir a um filme estrelado pelo filho de Dennis Quaid com a Meg Ryan, cujo vilão é interpretado pelo filho de Jack Nicholson.

Eis que Jack Quaid e Ray Nicholson não são meros "nepobabies" a serviço da indústria, mas sim jovens talentosos que elevam a qualidade deste filme difícil de classificar.

Com pitadas de romance, estudo de personagem, ação ininterrupta, estudo de condição genética rara, roubo de banco, é um filme que lembra muitos outros filmes.

No quesito romance, lembra todos os filmes em que alguém "acaba se envolvendo", e se eu falar mais estarei cometendo spoiler.

No quesito estudo de personagem, a rotina e as agruras do protagonista Nathan Caine são dissecadas. Portador de uma síndrome rara que o impede de sentir dor, ele tem perspectiva de vida curta, mas tem aprendido a conviver com sua condição, embora isso reflita em sua vida antissocial de pessoa reclusa, que não sai de casa, cuja distração única se resume a jogos de computador com um amigo virtual.

No quesito ação ininterrupta, entra na linha de muitos filmes atuais, em que a ação é de "tirar o fôlego", uma cena trepidante emenda na outra, anestesiando o espectador com tanta violência, sangue e brutalidade.

No quesito estudo de condição genética rara, leva ao extremo a ironia de viver em um mundo em que, como diria Buda e Renato Russo, "Toda dor vem do desejo de não sentirmos dor", em que a dor é um tabu, a dor preocupa, a dor castiga, a dor irradia, a dor oprime, a dor debilita, a dor transcende, a dor limita, a dor explode, a dor impede, a dor liberta, um mundo em que não sentir dor é o que todo mundo quer, mas em que sentir dor nenhuma pode ser um problema doloroso.

No quesito roubo de banco, lembra Um dia de cão, Caçadores de emoção, etc. etc. gênero em extinção porque muitos bancos já nem têm mais caixa e não trabalham com dinheiro físico em suas agências.

E o que a pessoa constata ao assistir esse filme que mescla tantos gêneros e se propõe a uma lúdica "brincadeira" com o espectador, responder a pergunta: até quando você vai aguentar sem fechar os olhos ou, pior ainda, levantar-se e abandonar a sessão?

Das 8 pessoas que estavam na sala, 25% se retiraram antes da perseguição da ambulância. Nadaram, nadaram e morreram na praia. Indignadas, as duas pessoas saíram, certas de que não iam perder nada, certas de que já haviam sofrido o suficiente, certas de que o cinema não tem mais presente nem futuro, certas de que elas são donas da razão, do seu dinheiro, certas de que foram vítimas de propaganda enganosa, certas de que alguém vendeu o filme de um jeito e entregaram outro produto, bem diferente.

Não tiro a razão delas, afinal de contas, se você ler a sinopse, não há um aviso de isenção de responsabilidade, dizendo, atenção, este é um filme para quem tem estômago forte e bem forte, é um filme alternativo, não é um filmeco qualquer facilmente deglutível.

Complicado um filme desses entrar no circuito assim, é estranho como esses empresários do ramo de distribuição raciocinam (?), mas talvez a rigorosa classificação indicativa pudesse ter servido como alerta aos incautos.

Mas Novocaine é fichinha para quem não se abala com essas suscetibilidades, afinal, assistiu ainda criança sozinho no cinema o filme com mais suplícios que um protagonista criança já sofreu nas telas (Dirkie, perdido no deserto)

O cinema também serve para nos educar e nos preparar para a vida, não se abalar por coisas pequenas, a aguentar o suplício até o fim, nem que este suplício seja um filme para o qual você não estava preparado, seja por desinformação, seja por um problema inerente a sua personalidade, qual seja, ter uma alma sensível e delicada.

A discussão sobre a dor está no cerne da vida de todos nós, é um tema palpitante. Quantas pessoas que conhecemos têm uma qualidade de vida que elas consideram precária devido às dores crônicas ou agudas que sentem?

Pimenta nos olhos do outros é refresco, e nem todos sentem empatia com a dor alheia, por mais que a Bíblia pregue esse sentimento.

 Conversa de eleva-dor:

"Não consigo correr porque sinto muita dor nas panturrilhas".

"Dor é vida."

Você não precisa ser um detetive para concluir quem falou a segunda frase, levando em conta que sou um corredor que corre 11 km e sente muitas dores enquanto está correndo, correr é sinônimo de sentir dor, primeiro é a dor psicológica de ter que correr, afinal de contas é bem mais fácil não correr do que correr, depois vem as dores do corpo que se esforça para se equilibrar durante o exercício.

Há duas décadas corro duas vezes por semana, com sol ou chuva, com pouca dor ou muita dor, é uma questão de disciplina, não de dor. 

Para os dengosos que sempre inventam uma dorzinha como desculpa, Novocaine deve ser uma ofensa máxima.