quinta-feira, janeiro 16, 2025

Ode a David Lynch


 Ó David, meu amado David.

Você que fez Eraserhead, o cult movie que desconcerta o espectador de um modo que ninguém mais se esquece, talvez o filme mais influente da segunda metade do século XX, o filme que assisti no "cinema cofre" do cine Santander de Porto Alegre, na primeira sessão pública em terras gaúchas.

Você que fez O homem elefante, sobre um homem julgado um monstro pela sua aparência horrenda, mas uma pessoa bonita por dentro, muito castigada pela vida, pelo preconceito, pelo julgamento precipitado, pela ignorância humana de não querer conhecer o diferente. Recentemente revi o clássico em versão com extras, que contam a história do verdadeiro homem elefante. 

Você que fez Coração selvagem, o filme que todas as mulheres por quem me apaixonei foram "obrigadas" a ver. O filme que resume a minha personalidade, do qual pincei o toque de meu celular, o filme que se você for mulher, e não viu, e quiser ver comigo, não vai ver, porque agora estou casado e bem casado, mas pode ver com seu amorzinho, se ele for um cara cabeça aberta, um cara alternativo, inteligente, de bom gosto, que aprecia cenas violentas, cenas engraçadas, cenas patéticas, cenas de pura declaração de amor entre um casal, cenas de louvor à liberdade pessoal.

Você que fez Duna, o Duna primordial, que a crítica malhou, que o público não gostou, mas o único que tem o Kyle, portanto o Duna com o protagonista mais carismático, o Duna com as cores mais fortes, o Duna com o Sting, o Duna que todo fã de Duna tem que assistir, porque é o Duna de David Lynch, for God's sake.

Você que fez História real, o filme mais normal de sua filmografia de 10 filmes, o mais inusitado "road movie" já feito, com certeza, o mais lento, afinal o veículo é um cortador de grama John Deere. Na jornada Alvin Straight conhece pessoas que mudam ao conhecê-lo, uma moça grávida que está fugindo da família, uma motorista que atropela cervos, um padre que aconselha os andarilhos, um bom samaritano que o ajuda a consertar o veículo, uma dupla de mecânicos atrapalhados que recebe uma lição... tudo para se encontrar com o irmão e fazer as pazes com ele.

Você que fez A estrada perdida, sessão odiada por alguns amigos que foram comigo, e quanto mais as pessoas odeiam David Lynch, mais eu entendo porque eu gosto dele, foi assim também com a série Twin Peaks, indiquei o piloto para um colega de Ensino Médio e o cara odiou e veio me tirar satisfação, por que eu havia indicado aquela porcaria para ele? Com isso aprendi que não devo indicar nada para ninguém, afinal, eu que devo estar perdido em minha estrada alucinógena pilotada por um onírico David Lynch.

Falando em onírico, você que fez Cidade dos sonhos, O império dos sonhos e Twin Peaks: Fire Walks With Me, filmes que nos fazem andar na corda bamba entre a realidade e o sonho, a mentira e a verdade, o sólido e o etéreo...

Você que fez o sadomasoquista "Hit me!" Veludo azul, embalado pelas canções celestiais de Angelo Badalamenti, estrelando a sua musa fatal Isabela Rosselini, com um Dennis Hopper mais doido do que em Born to Be Wild.

David, você que nasceu para ser selvagem e foi doce, que me encantou e me emocionou, 

muito obrigado, 

David, pelas cenas sobre as lavouras de milho em História real,

pela cena dos gravetos que não se vergam quando amarrados, símbolo de família forte,

Ó David que nos fez rir muito nos episódios de Twin Peaks, com um humor mais revigorante que já passou nas telas da televisão mundial,

Ó David que veio ao Brasil para o Fronteiras e que me autografou seu livro, ó David que vai deixar saudades infinitas.

Amanhã acordarei num mundo sem David Lynch, um mundo menos desafiador.

O cinema sem David Lynch é um cinema menos rebelde.

E não haverá um "novo" David Lynch, ao menos não para mim, porque não existe outra pessoa capaz de juntar tantas coisas que me agradem no mesmo filme.

Restam os 10 filmes e as 3 temporadas de Twin Peaks...

Restam as cenas que jamais saem da retina. 

E a convicção de que sou um cara de sorte.

Sorte de ter acompanhado "em tempo real" a trajetória desse cineasta. 


domingo, janeiro 05, 2025

A substância



Desde já, A substância fica sendo o suprassumo do filme sobre autodestruição. 

E autodestruição em A substância não é metáfora, é o retrato literal do que acontece com uma pessoa insatisfeita com a própria aparência.

O maior barato do filme é como ele mistura gêneros, transitando com muita leveza e desenvoltura da ficção científica ao drama, do horror à comédia...

Influências lynchnianas e aronofskyanas pululam em A substância, filme que é ao mesmo tempo original e uma colagem de muitos outros...

Na sequência final do filme de Coralie Fargeat é inevitável lembrar-se da cena final de Carrie, a estranha.

E isso acontece em muitos e muitos momentos.

A obsessão com a tevê, a solitude e a loucura da personagem de Demi Moore nos remete à assustadora transformação de Ellen Burstyn em Réquiem para um sonho, de Darren Aronofsky. E outra coisa os dois filmes têm em comum: a chaga no braço de Jared Leto parece ter uma ligação direta com a chaga na medula de Demi Moore. Com a diferença que na primeira, a agulha da seringa é inserida para injetar heroína até o braço do herói apodrecer, e na segunda a agulha da seringa penetra insistentemente na medula da heroína para retirar a substância que rejuvenesce, até a chaga por fim também entrar em putrefação. 

Por sinal, o body horror é levado ao extremo em A substância, filme em que Dennis Quaid rouba a cena como um produtor asqueroso. Decididamente não é para estômagos fracos, não vá ao cinema nem tente ver em casa se você tem a tendência de se impressionar com cenas chocantes. Para quem gosta de se autodesafiar, são muitas e muitas cenas de degradação física e mental.

O cinema de David Lynch é homenageado em cenas como a conversa no café, e à medida que as coisas começam a dar errado no experimento, o filme nos remete a cults do horror como Freaks, mas nunca a deformação humana foi explorada com tanta sensibilidade quanto em O homem elefante de David Lynch. 

A obsessão com a aparência e o porco-chauvinismo são temas de Coralie, mas o filme também satiriza a busca da fama e o patético das almas solitárias.



O que salva A substância de se tornar um pastiche não é apenas o ritmo frenético e a inteligente mescla de gêneros, mas um humor subliminar que aflora muito forte em certos momentos, sempre em forma de crítica social, como nas partes em que o repulsivo personagem de Dennis Quaid está em cena.  

Como o nome deste blog poderia ser intertexto, aí vai uma canção do álbum Substance do Joy Division, cujo refrão descreve um pouco a saga de Elizabeth e Sue em A substância.



Nosferatu

 


Segue a minha relação ambígua com o cinema de Robert Eggers.

Diferentemente de um Peter Weir, um David Lynch e um Darren Aronofsky, Eggers é um cineasta que mexe com meu intelecto, mas nem sempre consegue fazer o mesmo com minhas emoções.

Visualmente, Nosferatu é um triunfo.

Tem cenas que merecem ser emolduradas como clássicas do cinema gótico.

Depois do palhaço Pennywise em It, o sueco Bill Skarsgård segue sua senda de monstros encarnados.

A sorumbática protagonista lembra a imagem de uma Emily Dickinson, a poetisa da solidão e da angústia, misturada com o tormento interno das personagens arrebatadoras de uma Emily Brontë, autora de outro clássico da literatura fantástica (O morro dos ventos uivantes).

Outro porque Drácula de Bram Stoker está no livro O horror sobrenatural na literatura de ninguém menos que H. P. Lovecraft, e Drácula é o gatilho que levou Murnau a lançar o filme Nosferatu em 1922, película que depois foi condenada por quebra de direitos autorais. Na década de 70, também da Alemanha, veio o remake de Werner Herzog, com Klaus Kinski no papel principal.

Agora temos um filme mais americanizado, moderninho, com cenas que lembram cenas de possessão, devido ao domínio a distância que a criatura exerce sobre a heroína, que sofre transes e acessos oníricos.

O foco de Eggers é provocar o medo, mas sua obsessão com a estética às vezes perturba os seus objetivos. Entre criar uma imagem bonita e um efeito eficiente, parece que Eggers sempre escolha a primeira opção. Quando as duas coisas convergem o seu cinema funciona, e é bom frisar que isso acontece em 80% das cenas.

Meu problema é com esses 20% restantes, em que a plateia está em silêncio e eu caio na risada por achar um exagero, ou porque a cena não me convenceu. Em vez de pavor, a cena me insuflou perplexidade... Seriously?

Então, é isso, mas não vou cuspir no prato que me nutriu, e claro que vou continuar a acompanhar a interessante trajetória de Eggers, sem me empolgar, mas sem me privar desses momentos de "self-indulgement".



Zona de interesse x Triângulo da tristeza (Oscar x Cannes)




    Cinéfilo que se preze é cinéfilo que busca estar por dentro do melhor do cinema não só americano e brasileiro, mas mundial.

      Para essa tarefa, mantém em seu radar os filmes ganhadores de Oscar de Melhor Filme Internacional e da Palma de Ouro em Cannes. Manter no radar nem sempre significa ter acesso a esses filmes em salas de cinema, mas o prêmio de consolação é poder conferir mais tarde, em algumas das plataformas disponíveis.



É o caso do vencedor do Oscar de Melhor Filme Internacional de 2024, Zona de interesse, do britânico Jonathan Glazer, e do ganhador da Palma de Ouro de 2022, Triângulo da tristeza, do sueco Ruben Östlund.



Zona de interesse, Oscar de Melhor Filme Internacional

2023, o ano de ouro da atriz Sandra Hüller. De rosto desconhecido no mundo, protagonizou dois filmes que lhe deram extrema notoriedade, fama e reconhecimento.

De atriz underground a atriz mais badalada no ano.

É o dilema de Sandra.

Quis o destino que Jonathan Glazer e Justine Triet a chamassem para dois filmes que seriam agraciados com prêmios importantíssimos. 

O filme de Glazer é emblemático porque toca na ferida do holocausto de um modo diferente, abordando a rotina prosaica da família de um oficial de alta patente responsável por cuidar da parte operacional de um dos mais famosos campos de concentração, Auschwitz. 

O drama enfatiza a ironia da situação de uma família que finge ignorar as atrocidades que acontecem do outro lado do muro.

Tenho lá minhas dúvidas sobre uma parte do filme, que não posso contar, porque seria spoiler. Será que o filme não seria mais contundente sem aquele momento de quebra de paredes e paradigmas?

Jonathan Glazer, o diretor do filme não se omitiu na cerimônia do Oscar e em seu discurso de agradecimento quebrou o protocolo para tecer uma crítica ao governo de Israel e à matança de inocentes na Faixa de Gaza.




Triângulo da tristeza, Palma de Ouro em Cannes

A transformação de patriarcado em matriarcado, a migração do poder, a corrupção do ser humano são temas dessa fábula moderna que coloca um naufrágio provocado como elemento desencadeador dessas mudanças.

O sueco Östlund não é exatamente um novato em se tratando de premiações em Cannes, em 2017 já tinha levado a Palma de Ouro com o filme Square: a arte da discórdia, resenhado neste blog.

A principal característica do cinema de Ruben é ser provocador e tirar o espectador da zona de conforto.

Se a sua zona de interesse é sair de seu triângulo da tristeza, esses dois filmes são uma boa pedida.