Jogo perigoso

Com Hush, a morte ouve e Ouija, a origem do mal no currículo, o diretor Mike Flanagan é um especialista em filmes de suspense. O escritor Stephen King é um dos melhores escritores do gênero. Carla Gugino é uma excelente atriz, e realiza uma performance incrível. Pela lógica, tudo isso deveria tornar Jogo perigoso um bom filme, certo?

Há certos temas que se prestam mais à palavra escrita e passados para um roteiro não funcionam tão bem assim. Talvez possa ter sido esse o caso de Jogo perigoso, suspense que critica a superficialidade dos fetiches masculinos, produzido pela plataforma de streaming Netflix.

A premissa até que é interessante. Jessie (Carla Gugino) é atraída pelo marido Gerald a uma casa de praia isolada. O objetivo? Um fim de semana "caliente" para apimentar a relação ameaçada pela mesmice.

Gerald (Bruce Greenwood) vai tomar viagra, algemá-la e, pouco depois, morrer de ataque cardíaco.

(Isso não é spoiler. Se está no trailer, não é spoiler. Se a pessoa que lhe indicou o filme já contou, não é spoiler. Por último, mas não menos importante, se é algo que ocorre nos primeiros 15 minutos do filme, não é spoiler.)

O problema de Jogo perigoso é justamente este: Jessie está algemada à cama, o marido estatelado no chão, e ainda faltam 1h30 minutos de filme.

A história envereda num caminho movediço e instável do "suspense psicológico", nesse caso, talvez psicológico até demais.

O processo de verter o romance em filme (que muitos diziam ser "infilmável") foi uma aposta do diretor Mike Flanagan. Carla Gugino e Bruce Greenwood contam nesta entrevista um pouco de como foi esse processo.

ATENÇÃO: AGORA PODEM SURGIR ALGUNS POSSÍVEIS SPOILERS




A ação limita-se à presença de um vira-latas faminto que vagava pelas redondezas e aparece no quarto, pois o casal havia deixado as portas abertas.

Até nisso o filme peca um pouco. O cachorro não chega a assustar, é um cão simpático, que parece bonzinho, apesar do tamanho.

A estratégia (perigosa) do roteiro para fazer a coisa tentar andar baseia-se em diálogos entre o morto e Jessie, entre a própria Jessie reprojetada e o morto, tudo isso culminando com uma sequência de flashback que remete à outra obra de Stephen King, também lançada em 1992, e também convertida em filme: Dolores Claiborne.

Os mesmos temas debatidos em Dolores (abuso sexual, influência do eclipse no comportamento humano) são tratados nesse flashback. E isso não é por acaso: os dois livros foram planejados para complementar um ao outro.

Outra trama paralela em Jogo perigoso é o caso de um profanador de túmulos que age nas redondezas. Durante seus delírios, Jessie imagina ver um vulto acromegálico com uma canastra repleta de relíquias. Terá sido fruto da imaginação dela ou verdade?

FIM DOS POSSÍVEIS SPOILERS

Será que os esforços para transformar o livro em filme valeram a pena? A julgar pela aceitação do filme na plataforma, sim. Existe um pequeno séquito de seguidores e cultuadores do filme, que o indicam a pessoas que assinam o Netflix.

A voz do povo é a voz de Deus, segundo dizem. Mike Flanagan provou que era possível, no fim das contas, adaptar Gerald's Game para as telas.

Porém, em se tratando de filmes inspirados na obra de Stephen King, o nível de exigência é alto. São muitos clássicos que foram vertidos para a telona com maestria. Carrie, a estranha (1976, Brian De Palma), O iluminado (1980, Stanley Kubrick), Conta comigo (1986, Rob Reiner), Louca obsessão (1992, Rob Reiner), Um sonho de liberdade (1994, Frank Darabont) e O nevoeiro (2007, Frank Darabont), para citar apenas alguns dos mais memoráveis.

Com pegada feminista e importantes comentários sobre temas que precisam ser debatidos, Jogo perigoso conseguiu o seu lugar na estante dos "Filmes Adaptados de Livros de Stephen King". O tempo dirá se o filme será ou não considerado um dos mais relevantes nessa categoria.